sexta-feira, 20 de maio de 2005

Guiné 63/74 - P22: O inferno das colunas logísticas na estrada Bambadinca-Mansambo-Xitole-Saltinho (Luís Graça)

1. Desde Novembro de 1968 que o itinerário Mansambo-Xitole estava interdito. Nessa altura, uma coluna logística do BCAÇ 2852, no regresso a Bambadinca, sofrera duas emboscadas (uma das quais, a primeira, com mina comandada), a cerca de 2km da Ponte dos Fulas, na zona de acção da unidade de quadrícula aquartelada no Xitole (CART 2413). A coluna prosseguiu com apoio aéreo.

Nove meses depois, fez-se a abertura desse itinerário, mais exactamente a 4 de Agosto de 1969. Na Op Belo Dia, participou o 2º Gr Comb da CCAÇ 12 com forças da CART 2339 (Mansambo), formando o Destacamento A.

Nessa operação, não foram encontradas minas nem abatizes mas o IN emboscou 1 Gr Com do Dest B, constituído por forças da CART 2413 do Xitole, na Ponte dos Fulas, quando as NT estavam a reabastecer-se de água.

O mês de Agosto de 1969 foi de actividade operacional intensa no regulado do Corubal, onde o IN se tinha instalado, dispondo de uma cadeia de acampamentos temporários que lhe dava ligação às suas bases mais recuadas, junto ao Rio Corubal, a oeste portanto da estrada Bambadinca-Mansambo-Xitole.

Nesse mês, as tabancas em autodefesa de Afiá, Candamã e Camará, e as NT (CCAÇ 12 e CART 2339) tinham sido atacadas ou flageladas. Por exemplo, a 15 de Agosto, Camará tinha sido duramente atacada por um grupo IN, com armas automáticas, morteiro 82 e metralhadora pesada 12.7,, sofrendo a população (fula) três mortos e nove feridos.

A actividade operacional no mês de Agosto culminaria com a Op Nada Consta, em que intervieram forças paraquedistas, que fizeram um heli-assalto a um acampamento IN previamente identificado, na região de Camará, enquanto as restantes forças das NT (CCAÇ 12, PEL CAÇ 53 e CART 2339) faziam manobras de emboscada, cerco e eventual perseguição, nas proximidades da bolanha do Rio Biesse.

Tratou-se de uma operação conjunta do Sector L1 (Bambadinca) e do COP 7 (Zona Leste, Bafatá). Na primeira vaga de assalto, os paras fizeram um prisioneiro, armado de RGP-2, de seu nome Malan Mané. Através dele soube-se que no local havia 80 homens, comandados por Mamadu Indjai, dispersos em pequenos grupos pela mata. Nessa operação, o IN sofreu ainda dois mortos e vários feridos graves, entre os quais o seu comandante (soube-se mais tarde), vítima de emboscada pelas forças da CART 2339, montada no itinerário Mansambo-Xitole.

O IN retirou na direcção de Biro.Os paras foram a este acampamento no dia seguinte, capturando mais material.

2. A 30 de Agosto, os 1º, 3º e 4º Gr Comb da CCAÇ 12 fizeram um patrulhamento ofensivo na região do Rio Biesse, passando por Demba Ioba, Sambel Bere e Sinchã Mamadi, até à estrada de Mansambo. Ao longo trajecto, e utilizando o prisioneiro como guia, percorreram nada mais do que seis acampamentos do IN, recém-abandonados, ao longo de um trilho principal que conduzia à região de Biro.

No primeiro acampamento, encontrou-se o cadáver de um chefe IN, identificado pelo guia e prisioneiro, e que teria morrido em consequência de ferimentos recebidos em combate, durante a Op Nada Consta, a 18 de Agosto. Em escassos dias, em menos de duas semanas, as formigas carnívoras e os abutres tinham-no reduzido a um esqueleto desconjuntado. Vestia uma espécie de dólmen impermeável, ainda em bom estado, assim como as botas. Num outro acampamento a seguir, foi encontrado um maço de cartas escritas em árabe (Mamadu Indjai era mandinga e muçulmano), com a planta do aquartelamento de Mansambo, as posições da artilharia, a localização dos abrigos-casernas e dos espaldões de morteiro.

3. Para dar uma ideia do carácter quase pioneiro das primeiras colunas que a CCAÇ 12 efectuou na estrada Mansambo-Xitole, com viaturas exclusivamente militares e num itinerário em muitos troços intransitável, esburacado pelas minas e pela erosão das chuvas, invadido pelo capim e pelos arbustos, em que se tornava necessário fazer a picagem de mais de 3O Km, e sempre com o fantasma do IN a acompanhar as NT, vale a pena transcrever aqui um trecho do relatório da Op Belo Dia III, em que participaram o 2º e o 4º Gr Comb da CCAÇ 12, juntamente com forças da CART 2339 (Mansambo), formando o Dest A (A distância de Bambadinca, a Mansambo, Ponte dos Fulas, XItole e Saltinho era, respectivamente, 18, 33, 35 e 55 quilómetros, segundo informação do Humberto Reis, que dispõe dos 73 mapas cartográficos da Guiné-Bissau à escala de 1/50000):

"A coluna de reabastecimento atingiu Mansambo, proveniente de Bambadinca, às 17.30h do dia 7 de Novembro de 1969, tendo 1 Gr Comb da CART 2339 patrulhado e picado o itinerário até ao limite N da sua ZA [Na prática, percorreu a distância de 18 km., entre Bambadinca e Mansambo à velocidade de 1 quilómetro e meio por hora].

"O Dest A [CART 2339 e CCAÇ 12] partiu de Mansambo às 5.00h do dia seguinte para cumprimento da sua missão [ou seja, prosseguir com a coluna até ao Xitole]. A escassas dezenas de metros a sul da ponte do Rio Bissari foram detectadas e levantadas 2 minas A/P [antipessoal], tendo-se verificado pela sua análise que se encontravam montadas há muito tempo (fazendo parte provavelmente do campo de minas implantadas pelo IN e detectadas no decurso da Op Nada Consta).

"Entretanto fora tentada por várias vezes a montagem de guardas de flanco, sem contudo se ter conseguido devido à densa arborização do terreno, o mesmo se verificando a partir do Rio Bissari por a natureza do terreno, bolanha com muita altura de água, capim bastante alto com densas manchas de lianas entrançadas, impossibilitar a progressão.

"Num troço de 3 Km, compreendido entre 1 Km após a ponte do Rio Bissari e 1 Km antes da ponte do Rio Jagarajá, a coluna ia sofrendo atascamentos sucessivos conjugados com avarias [mecânicas]que impossibilitavam uma progressão normal.

"Entretanto verificou-se o atascamento da 7ª viatura que ficou completamente enterrada no lodaçal do itinerário, e de mais algumas viaturas que se Ihe seguiam e que foi impossível desatascar.

"Foi decidido então fraccionar o Destacamento A [CART 2339 e CCAÇ 12] deixando 2 Gr Comb no local a tentar desatascar as viaturas e mandar prosseguir o resto da coluna até ao encontro do Dest B [CART 2413, Xitole], o que se verificou pelas 15.30h.

"Feito o transbordo, foi decidido pelo PCV [posto de comando aéreo] que o Dest B regrasse ao Xitole, vindo no dia seguinte transportar a restante carga. Entretanto deixaria um Gr Com (-) a reforçar o Dest A que pernoitou junto das viaturas, montando segurança próxima à estrada.

"Às 5 da manhã do dia 9 [dois dias depois do início da operação], iniciou-se o transbordo da carga para as viaturas que estavam à frente da viatura imobilizada e que entretanto fora desatascada, embora continuasse avariada. Pelas 8h, contactou-se com o Dest B que entretanto se aproximara, fez-se o transbordo da carga, reorganizou-se a coluna e empreendeu-se o regresso a Mansambo que foi atingido pelas 11.45, não sem ter havido mais alguns atascamentos".


4. A próxima coluna logística realizar-se-ia a 30 de Novembro de 1969, segundo um novo conceito de execução (Op Alabarda Comprida). Foram constituídos 3 Destacamentos:

(i) Ao Dest A (2 Gr Comb da CCAC 12) coube a missão de escoltar a coluna até ao Xitole, formando três fracções (na testa, no meio e na rectaguarda) e reagindo pelo fogo e pela manobra a toda e qualquer acção IN;

(ii) Os Dest B e C (6 Gr Comb, das CART 2339 e 2413) constituíam uma força de segurança descontínua ao longo do itinerário Bambadinca-Mansambo-Xitole (cerca de 35 km), patrulhando e montando emboscadas nos locais de mais provável utilização pelo IN para uma eventual acção contra as NT.

A coluna decorreu normalmente, tendo chegado ao Xitole por volta das 11h da manhã e regressado nesse mesmo dia, contrariamente ao que se estava previsto (e se temia), uma vez que o estado do itinerário era péssimo. Pelo Dest C (CART 2413, Xitole) foram detectados vestígios recentes dum grupo IN, estimado em 20/50 elementos, que teria vindo do Galo Corubal em acção de reconhecimento.

A actividade operacional da CCAÇ 12, durante o mês de Outubro de 1969, caracterizar-se, de resto, pela ausência de contacto directo com o IN que não deixou, no entanto de manifestar-se, apesar de particularmente afectado pela destruição de três acampamentos importantes - Camará e Biro (Op Nada Consta, a 18 e 19 Agosto); e Poindon (Op Pato Rufia, 27 de Setembro) -, captura de material, baixas humanas e evacuação do comandante do Sector 2 (Mamadu Indjai, um dos míticos comandantes da guerrilha do PAIGC que já em 26 de Fevereiro de 1969 se destacara pelo ataque a duas lanchas da marinha no Rio Buba).

No referido mês de Outubro de 1969, o IN flagelou num só dia o destacamento de milícias de Taibatá (pelas 9.30 h.), o Xime (às 14h.) e Mansambo (16h.), estes útimos duas unidades da NT em quadrícula (CART 2520 e 2339, respectivamente).

A 14 de Novembro, a CCAÇ 12 efectuaria a última coluna logística para Xitole/Saltinho, integrada numa operação. Após o regresso, os Gr Com das unidades em quadrícula na área, empenhados na segurança da estrada Mansambo-Xitole, executariam um patrulhamento ofensivo entre os Rios Timinco e Buba, não tendo sido detectados quaisquer vestígios IN (Op Corça Encarnada).

A partir de então, estas colunas de reabastecimento das NT em unidades de quadrícula, aquarteladas em Mansambo, Xitole e Saltinho, tomariam um carácter de quase rotina, passando a realizar-se periodicamente (duas vezes por mês, em média), e com viaturas civis, escoltadas por forças da CCAÇ 12. A segurança ao longo do itinerário continuava, no entanto, a movimentar seis Gr Comb das unidades em quadrícula de Mansambo, Xitole e Saltinho. Na prática, isto significava que o abastecimento das NT nestas tês unidades implicava a mobilização de forças equivalentes a um batalhão (3 companhias).

O Saltinho, embora passasse a depender operacionalmente do Sector L5 (Galomaro), a partir da data em que as NT evacuaram Quirafo, continuava no entanto ligada ao Sector L1 para efeitos logísticos, uma vez que a estrada Galomaro-Saltinho se mantinha parcialmente interdita desde o início das chuvas devido à actividade do IN na região.

(Sobre a situção posterior nesta região, veja-se o depoimento de um operações especial, o Eusébio, que esteve no Saltinho, entre finais de 1971 e Março de 1974).

quarta-feira, 18 de maio de 2005

Guiné 63/74 - P21: O ataque e assalto do IN ao destacamento de Cantacunda (1968) (Marques Lopes)

Texto da autoria de A. Marques Lopes, coronel (DFA), na situação de reforma, que esteve, em 1967, na Zona Leste da Guiné, sub-sector de Geba, integrado na CART 1690:

Caros amigos:

Vou-vos, então, dizer alguma coisa sobre Cantacunda. Era um dos destacamentos da CART 1690, em 1967 e 1968 (regressou em Março de 1969), que tinha sede na tabanca de Geba. Esta companhia tinha uma quadrícula de 1.600 km2 na zona do Óio. Os nomes dos destacamentos estão indicados no mapa do Geba. Mas, desses nomes, Sinchã Jobel e Samba Culo eram bases do PAIGC. Um dia hei-de falar-vos deles.

Conheci bem este destacamento de Cantacunda. Caracterizava-se pelas péssimas condições das instalações do pessoal e pelos deficientíssimos meios e condições de defesa. Ficava a cerca de 50 kms da sede da companhia. Sem luz eléctrica (como todos os destacamentos da CART 1690), nem um miserável gerador. Estava, como se vê pelo relatório (e pelo mapa que vos envio), pegado à floresta.

O armamento era: umas ultrapassadas metralhadoras pesadas Dreyses e Bredas, morteiro 81 e 60. Os abrigos eram uns buracos (ver a fotografia que envio), de difícil acesso e sem condições interiores. E com poucos efectivos, um pelotão, normalmente. No dia deste ataque estavam lá apenas duas secções. Eu não estava, na altura. Situava-se relativamente perto da base de Samba Culo, do PAIGC.

O soldado Aguiar (João Alves Aguiar) foi o único que tentou resistir com a G3 à boca do abrigo e morreu, por isso. Onze foram capturados, entre eles o furriel que comandava o destacamento, o Vaz. Foram libertados, depois, aquando da tentativa de invasão na Guiné-Conakri (Operação Mar Verde). Menos o Armindo Correia Paulino e o Luís dos Santos Marques, que morreram lá de cólera. Apesar das péssimas condições e dos fracos efectivos, é evidente (e sei que foi assim, porque me contaram) que houve desleixo e facilitismo em excesso. Se não tivesse havido, não tenho dúvidas que as coisas não teriam sido tão fáceis para os atacantes.


Ataque a Catacunda. 10/11 de Abril de 1968. Desenrolar da acção:


"No dia 10 do corrente cerca das 00H00, o destacamento de Cantancunda foi atacado por numeroso grupo IN.

"Devido à hora a que o ataque foi realizado, a guarnição do destacamento encontrava-se quase toda a dormir na caserna. Devido à configuração do terreno (do lado Norte do destacamento existe uma floresta que dista, no máximo de 5 metros do arame farpado; do lado Poente essa floresta prolonga-se e verifica-se que havia 2 aberturas no arame farpado:uma que durante a noite era fechada com um cavalo de frisa, outra que devido às obras e construção da pista de aterragem se encontrava aberta; do lado Sul existia a tabanca cujas moranças confinavam com o arame farpado; do lado Nascente existe uma bolanha), e devido também à falta de iluminação exterior, o IN pôde aproximar-se do arame farpado sem ser detectado pelas sentinelas e abrir fogo com bazookas e lança rocketes sobre a caserna, tendo em seguida atacado pelos lados Norte, Poente e Sul: pelo lado Norte o IN atirou com troncos de árvores para cima do arame farpado tendo em seguida ultrapassado o mesmo; do lado Poente afastou o cavalo de frisa e penetrou por essa abertura, e pelo lado da pista; pelo lado Sul infiltrou-se pelas tabancas que queimou e em seguida penetrou no aquartelamento.

"Devido à simultaneidade com que os movimentos foram efectuados (os mesmos foram comandados do exterior por apitos), verificou-se que as NT não puderam atingir os abrigos e foram surpreendidos no meio da parada. Note-se, contudo, que alguns elementos das NT ainda conseguiram atingir os abrigos (por exemplo os 1°s. Cabos Esteves E Coutinho e os Soldados Areia e Aguiar, tendo este último sido morto no local e os restantes conseguido escapar).

"Devido ao numeroso grupo IN não foi possível contudo organizar uma defesa eficaz pelo que as NT foram obrigadas a abandonar o destacamento. No entanto só 9 elementos é que conseguiram escapar, tendo 11 desaparecido (provavelmente feitos prisioneiros) e 1 morto.

"Possíveis causas do insucesso das NT:

- O poder de fogo do IN;

-O grande numero de elementos que constituíam o grupo IN;

-A violência com que o ataque foi desencadeado;

-A pontaria certeira do grupo IN, que acertou os primeiros disparos na caserna das NT;

-O comando eficaz do grupo IN;

-A falta de iluminação existente no destacamento;

-Possível insuficiência de abrigos;

-As proximidades da mata do arame farpado;

-As proximidades da tabanca do arame farpado;

-O reduzido efectivo das NT;

-Possível abrandamento das condições de segurança;

-Longa distância deste destacamento à Sede da Companhia (cerca de 50 kms)

"Comentários: Posteriormente veio a saber-se, por declarações de alguns milícias e elementos da população civil detidos para averiguações, que o ataque teve a conivência do próprio Comandante da milícia e de elementos da população [local]. Todos os elementos que [o IN] precisava, tais como distâncias para colocar as armas pesadas, local da entrada no destacamento e vias de acesso ao mesmo, foram fornecidos por eles."

Um abraço.

A. Marques Lopes

Nota de L.G. - As fotos estão disponíveis na página Subsídios para a História da Guerra Colonial > Guiné (3) > Ontros Sectores da Zona Leste

terça-feira, 17 de maio de 2005

Guiné 63/74 - P20: Foi você que pediu uma Kalash ? (David Guimarães)

Texto da autoria de David. J. Guimarães (ex-CART 2716, Xitole, Sector L1, Zona Leste, Guiné, 1969/71):

Como é possível que nós tenhamos saudades... até de armas ? É verdade, a costureirinha, os RPG 2 e 7, os morteiros 62 e 82 bem como os 120 mm, os canhões em recuo, etc...

Pois, é verdade, aquele matraquear esquisito das Kalashnikov... Nas emboscadas nunca se sabia onde estavam elas, se à frente se por detrás de nós. Só quando já se tinha experiência de guerra conseguíamos distinguir bem [o som da kalash]...Era um estampido bem diferente das nossas G3... Mas, afinal, quem não sentiu isso?!

Isto, esta guerra tremenda, também tinha os seus episódios anedóticos, por falta de experiência [da nossa parte]. Lembro-me bem primeiro ataque ao quartel do Xitole: ai que nós estávamos lá há pouquinho tempo!... Bem, foi assim: no início da noite ouve-se uns estampidos de espingardas junto ao (mas do lado de fora do) aquartelamento. Todo o mundo correu para as valas e despejou-se em toda a volta do aquartelamento uns vinte minutos de fogo!!! Sabem o que estou a dizer. Isso mesmo, todos para seu lado, direitinhos como aqui tínhamos aprendido. Disparávamos para as zonas donde poderiam vir eles! Ouvimos cessar fogo, alguém aos berros....

As armas pesadas, os nossos morteiros 81, tinham resolvido o problema e eles tinham nos assustado mesmo. Deram meia dúzia de tiros e apanharam com granadas de morteiro nas costas... É claro que estes homens de armas pesadas eram aqueles que ficavam nas sobreposições e, durante um tempo, eram quem nos valia... Não fossem eles e nem faço ideia o que aconteceria...

Então comecei a perceber por que razão, logo ao desembarcar do Xime, a caminho do Xitole, via dedos em riste a chamar-nos periquitos... É isso mesmo, a guerra também tinha que ser aprendida no terreno... Nem Caldas da Rainha nem Vendas Novas nem nenhum campo militar daqui - nem tão pouco as urzes e tojos do monte de Santa Luzia, em Viana... Qual quê?!

Lembrei-me na altura de um aspirante de Lamego que em Viana explicava assim:
-Vocês façam isto, fitem o inimigo e atirem assim!...

Sábias palavras de quem fazia a guerra em Viana e enfim estava convicto que o que vinha nos livros é que estava certo:
- Não se esqueçam, caminhem curvados, o primeiro olha para a esquerda, o segundo para a direita, a arma aperrada à cintura.... Assim, sempre até ao último homem do grupo de combate... etc., etc., etc.

Um camarada que eu rendi na Ponte dos Fulas e que era de Almada (da companhia anterior, nem sei o nome) dizia-me:

- Olha, Guimarães, aqui não é a Metrópole, nós é que sabemos o que fazemos. Eles lá não percebem puto disto...

Ele tinha razão, pois tinha!...

Hoje envio três fotografias. Queria falar um pouco de algo que não vi nos filmes tão bem feitos que o Sousa e Castro fez o favor de me enviar e que se referem à visita dos camaradas à Guiné[em Novembro de 2000].

No Xitole, para lá da pista de aviões, a 5 Km há uma ponte que atravessa(ava) o Rio Corubal, ligando a estrada de Bambadinca-Xitole à Aldeia Formosa.... Essa ponte está interrompida com um pegão dentro da água... Essa ponte mantem-se lá, inoperante, e não foi reconstruída...

A história é que essa ponte teria sido interrompida pela nossas tropas no início da guerra. Outra versão é que que tinham sido os naturais. Uma terceira versão é que tinha sido o Corubal e as chuvas que teriam causado o colapso da ponte... Fico à espera que alguém me conte a versão verdadeira. Alguém da Guiné saberá? Desconfio que não, pois dela resta a história somente.

Seguem em anexo duas fotografias da tal ponte [a Ponte Marechal Carmona], pois ela é só meia ponte: a fotografia que mostra a interrupção, não saiu, que pena! Mas, enfim, é essa. Onde estou eu é exactamente na entrada do lado do caminho para o aquartelamento... Nota-se que ela está inclinada... Era importanete esta zona, pois que, como em todas as pontes, eram feitas operações de reconhecimento regulares...

Segue aí outra fotografia de um amigo. Um rapaz que na altura trabalhava na nossa ferrugem [a oficina de mecânica auto]. Hoje é motorista do Governador (...). Logo me chamou pelo nome recordando-se muito bem de mim, 30 anos depois:
- Saido Baldé (era o Saido)... Guimarães!!! A viola???

Isso mesmo, eu tocava viola também.... Sei que, em Bambadinca, Vacas de Carvalho e um Alferes Machado, do meu Batalhão, tocavam também. Um Português combatente terá sempre um instrumento de música ao lado, e gente ligada ao fado: é o nosso fado...

David J. Guimarães

segunda-feira, 16 de maio de 2005

Guiné 63/74 - P19: O festival das kalash, das "costureirinhas", dos rockets e dos katiousha (Luís Graça)

1. No Sector L1, na Zona Leste da Guiné, ao tempo da 1ª comissão da CCAÇ 12 (Maio de 1969/Março de 1971), o armamento utilizado pela guerrilha do PAIGC (o IN, para abreviar) era equivalente ou até superior ao nosso.

Esse armamento era praticamente todo de origem soviética, produzido na ex-URSS ou noutros países do bloco soviético. Mas também de origem chinesa. De facto, recordo-me de termos também apreendido material de fabrico chinês (por exemplo, granadas de RPG).

Na época, e pelo menos na Zona Leste, o IN não dispunha, naturalmente, de meios aéreos ou navais nem de artilharia pesada. Não me consta, por exemplo, que tivesse antiaéreas, apenas referenciadas no meu tempo nas zonas fronteiriças, no norte e no sul (Parece que a metralhadora mais usada pelo PAIGC, tal como pela FRELIMO, era a ZPU-4, uma arma de quatro canos, de calibre 14.5, de fabrico soviético, instalada em reboque).

De uma maneira geral, um bigrupo (40 a 50 guerrilheiros) estava equipado com o seguinte armamento ligeiro:

(i) pistolas-metralhadoras PPSH, de calibre 7.62, de origem russa(as famosas e enervantes “costureirinhas"): não tinha equivalente nas NT, já que no mato não usávamos a pistola-metralhadora fabricada na FBP; a PPSH (ou Shpagin) tinha uma cadência de tiro 700/900 por minuto, e usava dois tiposd e carregadores: um circular (tambor) e outro curvo;

(ii) espingardas automáticas Kalashnikov, dotadas de carregadores curvos de 30 munições de 7.62 (com uma cadência de tiro, portanto, superior à nossa G-3, que dispunha de carregadores de 20 munições, de 7.62); era considerada uma arma de elite, pelo que nem todos os combatentes do PAIG a podiam usar;

(iii) espingarda semiautomática Simonov, também de origem russa e do mesmo calibre, dotada de uma baioneta extensível (era vulgar encontrar-se nos acampamentos do IN, sendo possivelmenet mais utilizada por elementos da população em autodefesa, nas áeras controladas pela guerrilha);

(iv) metralhadoras ligeiras Degtyarev, também de calibre 7.62, com tambor (não sei se eram melhores ou piores que a nossa HK-21, de fita, que encravava com alguma facilidade, nas difíceis condições do mato, debaixo de fogo, com o calor, com a chuva, com o pó...);

(v) 2 morteiros de 60;

(v) vários RPG-2 ou RPG-7 (Os RPG são lança-granadas-foguetes antipessoal).

A kalash, a famosa AK-47, desenhada pelo russo Mikhail Timofeevich Kalashnikov (nascido em 1919) equipava na altura todos os exércitos de guerrilha do mundo, além dos exércitos do Pacto de Varsóvia. Até meados dos anos 90 calcula-se que se tenham fabricado mais de 70 milhões de kalash, de acordo com o modelo oficial ou em versões pirateadas.

Esta arma continua no imaginário de todos os ex-combatentes da Guiné. Recordo-me de em Bambadinca, no regresso da operação de invasão a Conakry (Op Mar Verde), alguns militares da 1ª Companhia de Comandos Africanos andarem a oferecer-nos kalash, novinhas em folha, que faziam parte parte dos seus roncos, pelo preço de três ou quatro garrafas de uísque velho ou dez de uísque novo (500 escudos).



2. Segundo informações de um prisioneiro feito pelas NT, na região do Xime, de nome Malan Mané, de etnia balanta, em Julho de 1969 o grupo especial de roqueteiros da zona do Poidon que se deslocavam todas as manhãs para Ponta Varela a fim de atacar as embarcações em circulação no Rio Geba e/ou defender a entrada do Rio Corubal, dispunham seis lança-granadas RPG-2.

O RPG (em inglês, rocket-propelled grenade launcher), e sobretudo o RPG-7, era a arma mais temida pelos nossos soldados não só nas emboscadas, nas estradas e picadas, como sobretudo no mato, nas emboscadas em L.

O RPG-2 era uma arma anticarro, de fabrico soviético. O carregamento da granada, de formato cónico, era feito pela boca. O caklibre do tubo, era de 40 mm. E o da granada, 82 mm. O seu alcance, contra pessoal, não ia além dos 150 metros. O RPG-7 era já mais sofisticado do ponto de vista tecnol+ogico: o seu sistema de autodestruição da granada permitaia que fosse disparada para o ar, tal como o nosso dilagrama, provocando uma chuva de terríveis estilhaços.

As mortíferas lâminas de aço dos rockets foram responsáveis pela maior parte das 15 baixas (6 mortos e 9 nove feridos) sofridas pelas NT no decurso da Operação Abencerragem Candente, em 26 de Novembro de 1970, que sofremos a caminho da Ponta do Inglês.

Tanto o RPG-2 como o RPG-7 também eram muito eficazes contra as nossas viaturas, embora não praticamente não utilizassemos viatuars blindas na Guuiné (No Sector L1, havia apenas um PEL REC, praticamente inoperacional...). Contra alvos fixos o RPG era eficaz até 100 metros (O RPG-7 tinha mais alcance: 500 metros).

Muito certeiro e de fácil manejo, o RPG era muito mais adequado àquele tipo de terreno (floresta tropical e savana arbustiva, de capim alto e denso) e de guerra (de guerrilha) do que o nosso lança-granadas, a pesada bazuca americana de 8.9, uma clássica arma anti-tanque... O mais caricato é que as NT só dispunham de munições anti-carro (!). Devido ao seu peso, o transporte das granadas de bazuca, sobretudo em operações no mato, eram um problema, pelo que era frequente recorrer-se a carregadores nativos. Só mais tarde passámos a usar o lança-granadas dos paraquedistas, de calibre 3.7.

Em cada um dos grupos de combate da CCAÇ 12 havia pelo menos um ou dois apontadores de dilagrama (dispositivo de lançamento de granadas de mão). Mas esta arma não gozava das nossas simpatias, por ser perigosa e pouco eficiente: a primeira morte a que assisti, a meu lado, a do Ieró Jaló, do 1º Grupo de Combate foi causada por um dilagrama (Região do Xime, Op Pato Rufia, 8 de Setembro de 1969).

A granada era uma granada de mão defensiva, m/963, sendo montada em suporte com um encaixe oco que se adaptava no cano da espingarda automática G-3. No seu lançamento usava-se um cartucho de salva (sem bala). Para o disparo tirava-se o carregador e introduzia-se manualmente o cartucho de salva. Este compasso de espera, aliado à impossibilidade temporária do uso da G-3 e ao risco do seu manuseamento, tornaram o dilagrama uma arma muito impopular entre as NT .

Nos ataques e flagelações às nossas posições fixas (aquartelamentos do exército, destacamentos de milícia, tabancas em autodefesa), os guerrilheiros utilizavam frequentemente o não menos temível canhão sem recuo (75, de origem chinesa, e 82, de origem soviética). Por razões logísticas e de transporte, era armas sobretudo utilizadas em ataques planeados. Tal como o morteiro 82, com um alcance de 3 km. EStas armas pesadas equipavam os grupos de artilharia, referenciados em Mangai, junto ao Rio Corubal, e Madina/Belel, no regulado do Cuor, a norte do Geba. (Vd. mapa do Sector L1).

Os grupos especiais do IN, quer de artilharia (canhão sem recuo e morteiro 82) quer de RPG, eram extremamente móveis. Em contrapartida, as NT praticamente não usavam o canhão sem recuo.

Por vezes O IN utilizava também a metralhadora pesada Goryunov, de calibre 7.62, que também podia ser usada como antiaérea. E sobretudo a Degtyarev, de origem russa, mas de calibre 12.7, equivalente à nossa Breda ou à nossa Browning(que estava instalada nalguns aquartelamentos: em Bambadinca, por exemplo, varria a pista de aviação). Pelo menos num dos ataques uma tabanca em autodefesa, Afiá, Candamã opu Camará (já não me lemrbo qual),no regulado de Badora, foram encontrados invólucros de 12.7, portanto da Degtyarev.

Ainda no nosso tempo apareceram, na Guiné, os primeiros foguetões Katiousha, de 122 mm, inicialmente pouco certeiros, é certo, mas com grande poder de destruição e não menos impacto psicológico junto das NT e populações. De fácil manejo e de relativamente fácil transporte, seriam utilizados preferencialmente contra os grandes alvos militares (aeroporto de Bissalanca…) e concentrações urbanas (Bolama, Bissau...).As granadas, com um peso de 18 kg. (dos quais 6.5 de explosivo), tinha um raio de morte de 160 m2, e ao explodir produzir cerca de 15 mil estilhaços.

Só mais tarde, já em 1973, apareceriam os mísseis terra-ar que os egípcios também utilizaram contra os tanques israelitas na guerra do Kippour. Com eles seria posta em cheque a nossa até então incontestada supremacia aérea.

Recorde-se que a utilização dos mísseis terra-ar Strella (SA-7 Grail-Strella) pelo IN, pela primeira vez em 25 de Março de 1973, foi responsável pela queda de um Fiat G-91 (pilotado pelo tenente Pessoa). Esta arma antiaéra embora bastante efeicaz contr as nossas aeronaves (helicópteros, avionetas, bombadeiros T-6, caças Fiat G-91, subsónicos). Este míssil era dotado de um acabeça com detector de infracvermelhos,s endo por isso atraído pela fonte de calor emitida pelos motrortes das aerobnaves. A sua velocidade era impressionante (mach 1,5 ou 1600 km/hora). O seu alcance era contudo limitado: pouco mais de 3 km. Os nossos helicópteros e restantes aeronaves, para não serem atingidos, tinham que passar a rasar a copa das árvores ou voar acima dos 1500 metros de altitude.

O Centro de Documentação 25 de Abril, Universidade de Coimbra, tem uma boa página em que se compara os armamentos das duas partes em conflito. Sobre a artilharia onde, aparentemente, as NT levavam vantagem, o documento diz que "na Guiné, a situação em 1966 era a utilização dos obuses 8,8 cm por pequenas unidades (nove pelotões a duas bocas de fogo cada), mas a partir de 1968 passaram a existir meios mais modernos e mais potentes", a saber:

(i) 19 obuses de 10.5 cm, correspondendo a três baterias;

(ii) seis obuses de 14 cm, correspondendo a uma bateria;

(iii) seis peças de 11.4 cm, correspondendo a uma bateria.

"Estes últimos materiais, dado o seu alcance, já permitiam o apoio a vários aquartelamentos a partir de uma posição central, mas a falta de meios de aquisição de objectivos impedia uma contrabateria eficaz.  As dificuldades apontadas para os morteiros eram semelhantes às da artilharia, se bem que na Guiné, dada a sua menor extensão e a quadrícula mais apertada das unidades, os problemas fossem menores", pode-se ler-se ainda no documento em referência.

De qualquer modo, da comparação do IN e das NT, tira-se a conclusão da "equivalência" do armamento entre as partes em conflito: "se exceptuarmos a artilharia (com as limitações já apontadas) e as viaturas blindadas (de emprego também limitado), pode dizer-se que o combate terrestre se travou, salvaguardando os efectivos, 'entre iguais' "...

sábado, 14 de maio de 2005

Guiné 63/74 - P18: A malta do triângulo Xime-Bambadinca-Xitole (5)

14 de Maio de 2005:

Caros amigos e camaradas:

Soube de vós todos através do Sousa de Castro. Aqueles que já me conhecem sabem que eu tive outro endereço, e falámos muito através dele. O que sucedeu é que tive de mudar esse endereço...A minha caixa de correio passou a ter [montes] de correspondência todos os dias, com ofertas de viagras (não é que não fizesse jeito, é claro) e outra drogas, meninas de presente e montes de outra publicidade. Enfim, era demais e fiquei farto! 

Para aqueles que eu conhecia enviei-lhes o meu novo endereço, mas não deu resultado, devido à minha nabice certamente. Devido a esta também, tive de mandar formatar o disco rígido mais de uma vez e perdi todos os endereços nele contidos.

Para todos, conhecidos e não conhecidos, é com muita satisfação que me junto ao grupo dos ex-combatentes e amigos da Guiné. 

Como vêem o meu endereço actual é cantacunda@netcabo.pt (hei-de um dia dizer-lhes o que era Cantacunda, na floresta do Oio, bem como Banjara, também na floresta do Oio).

Um abraço. A. Marques Lopes


13 de maio de 2005:

Guimarães:

Presumo que não saiba o que é feito do Banjara (António Marques Lopes, tenente coronel na reserva). Encontrei-o num site sobre a Guiné com o nome Cantacunda. Na mensagem que enviei há pouco fiz-lhe o convite para entrar no grupo. Ele possui muitos documentos sobre a guerra colonial e também sobre o 25 de Abril. "Tem de os divulgar".

Creio não ser problema no mundo de hoje podermos dizer o que nos vai na alma, temos de desabafar. Há coisas nas nossas cabeças que nem a mulher e os filhos são capazes de perceberem muito bem o que foi esse tempo. A Net é um veículo muito poderoso, temos de aproveitar este meio de comunicação para dar a conhecer à malta nova o que foi a guerra colonial na Guiné. Bom fim de semana.

13 de maio de 2005:

Humberto Reis:

Vi a mensagem que tinhas enviado ao Luís Graça, sim. Aliás ando sempre muito atento a tudo que fala na Guiné... Hoje muito mais atento ando, ainda bem que o espaço da minha companhia (todos tínhamos alguma coisa) está hoje a alargar-se. Bem para todos nós que de uma ou outra maneira andámos aquela guerra (...) No meio daquela guerra algo se saldou de extremamente positivo, a nossa fraternidade que só um combatente entende... Nem a mãe, a mulher ou o filho entenderá nunca as nossas vivências, a morte de um companheiro que, como nós era jovem e sonhava e deixou de o fazer abruptamente...

Essa operação para a Ponta do Inglês (informou-me mais concretamente o Luis Graça) ceifou aqueles nossos camaradas. Um deles que me acompanhou desde a recruta até ao momento em que desembarcámos no Xime na LDG que nos transportou... Foi a última vez que estive com aquele que um dia encontrarei no céu para lhe dar um abraço, o Cunha.

Em Bafatá, sim, conheci, mesmo no fim da minha comissão (estive lá colocado um tempinho), esse celebre café [das libanesas] e todas aquelas casas de comida e bebida... Bafatá tão linda ! Hoje como que jaz quase morta em relação áquilo que existia no nosso tempo... Tenho a sensação de que ano a ano tudo se degrada e cidades e povovoações se tornam fantasmas ... Bafatá hoje é um cortar de corações: tudo fechado, salvo uma ou outra casa...

Recordações do passado tão próximo ainda. Para isso estamos nós a recordar... ou a viver...

Continuaremos a conversa-Creio que pertencias também à CCAC 12, foste ao Xitole... possivelmente, foi lá que estive durante a minha comissão...

Um abraço... David J. Guimarães [CART 2716, aquartelada no Xitole, e pertencente ao BART 2917 > 1969/1970]

PS - Deixo aqui os meus dois endereços de e-mail: o de casa e o do local de trabalho.



12 de Maio de 2005:

É isso, David! Quer queiramos quer não acabamos a falar da "nossa", deles, Guiné.

Não sei se já viste uma mensagem que enviei para o Luís Graça sobre uma ida minha à Guiné em 1996. Voltei lá exactamente no dia em que fazia 25 anos que tinha vindo de lá (17 de Março de 71).

Por acaso também fui naquela operação dos 5 mortos, em que morreu o guia do Xime e um furriel miliciano, também do Xime (CART 2714). Coisas da vida que não deixamos de recordar, quer sejam boas quer sejam más.

Tenho "bebido" as vossas fotos de 2001 e as notícias que vão dando e lembro-me de que em 1996 quando cheguei a Bambadinca, uma ex-lavadeira (que não tinha sido a minha) me reconheceu ao fim de 25 anos. No vídeo que um amigo que ia comigo fez, nota-se perfeitamente que comecei a chorar, tal como o estou agora que estou a escrever estas linhas. Não tenho vergonha nenhuma de ter chorado.

Essa ex-lavadeira tem um sobrinho, que conheci lá nesse dia, chamado Zeca Braima Samá que é o professor de Bambadinca. Quem conheceu o célebre café das "libanesas" em Bafatá normalmente só se lembra daquelas caras bonitas, brancas, filhas da D. Rosa (ainda viva). Mas ela não tem só filhas, tem um filho, um pouco mais novo que nós, que foi páraquedista no BCP 12 de Bissalanca (já passou à peluda como tenente-coronel) e de quem tenho o prazer de ser amigo. Ele mora aqui na zona de Lisboa, mais concretamente em Linda A Velha, mas continua arreigado à terra que o viu nascer, Bafatá, e como bom libanês de antepassados, o comércio está-lhe na massa do sangue. Passa metade do ano em Bissau no negócio da castanha de cajú. Vem isto a propósito de ser ele, e o amigo que foi comigo à Guiné em 96, que me leva o material escolar para a escola de Bambadinca que eu passei a fornecer a expensas minhas desde essa data.

Esse professor, o Zeca, como eu lhe chamo, escreve correctamente o português e com uma caligrafia que faz inveja a muita gente, a começar por mim. Faz-me recordar o episódio do furriel enfermeiro do Xime da CART que teve lá um aluno que hoje é engenheiro em Portugal.

Para hoje já chega de divagações.
Recordar é viver.
Um abraço para vocês. Humberto Reis [CCAÇ 2590/CCAÇ 12 > Contuboel e Bambadina > Maio de 1969/Março de 1971]

12 de Maio de 2005:

Luís Graça:

Fiquei deveras emocionado - é bom de facto existirmos como gente de bem na altura, e fomos.... Não vamos discutir os regimes vigentes nem a justiça da guerra. A guerra é sempre injusta... Mas de todo o mal que a guerra é, uma coisa trouxe a cada combatente: um amigo mais e mais. Hoje somos milhares, tipo orfeão, afinados numa mesma voz, a solidariedade do combatente...

A companhia a que pertenci [CART 2716, Xitole] faz anualmente um convívio, no último sábado de Maio... De cada vez que nos reunimos sempre voltamos aos mesmos anos e as conversas repetem-se:
- Quando houve a emboscada e tu...; e daquela vez em que a coluna e os turras...; e naquele assalto, ena que coisa terrível, tanto fogo...; e mais isto, e mais aquilo....

Assim todos os anos são as mesmas operações, as mesmas bebedeiras, as mesmas bajudas, tudo recordações que nos assaltam o espírito e lá vem novamente a história do vagomestre que se meteu no abrigo debaixo da cama quando o quartel era bombardeado e dizia Ai maezinha!...

E aquele programa - curioso que era o João Paulo Diniz que o fazia - de discos pedidos... Alguém falava em crioulo: para o João Seissi Djaló que é de Catió, Gianni Morandi em Não sou dinho di vó...

Isto tudo para dizer o seguinte: andamos embrenhados nesta matéria e muitos mais quererão falar, expor e contar. Vamos recolher ex-camaradas e formar uma comunidade. Existe no Hotmail uma possibilidade de se abrir uma Comunidade gerenciada por nós e aí abrirmos uma frente de debate...

Acho importante. Se cada um contar um episódio de cada vez muito se escreverá e ficará um documento muito bom.... Acho essa ideia curiosa. O Sousa e Castro conhece como se manejam estas comunidades, inclusive podem-se fazer lá álbuns de fotografias... Elas só vão abaixo se não forem mexidas com participações ou se os gerentes quiserem que elas se extingam....

Creio que este será um modo de se arranjar bastantes documentos e tu, Luis Graça, por aí poderás por certo enriquecer o teu blogue que está uma maravilha... Diria eu que melhor é impossivel... É a primeira vez que vejo algo escrito sobre a nossa guerra, é verdade, a nossa guerra... Obrigado por lhe teres chamado o nosso espaço, é isso mesmo: tu arranjaste o nosso espaço... É aquele espaço da nossa juventude perdida. Obrigado.

Um abraço a todos os outros camaradas,
David Guimarães [CART 2715]


11 de Maio de 2005:

Caros amigos e camaradas:

Vocês, quer queiram quer não, já estão no ciberespaço, na Net… Pesquisem no Google os vossos nomes, sem mais nada:

http://www.google.pt/

Introduzam os vossos nomes juntos ou separadamente, com aspas. Assim, por exemplo:

“David J. Guimarães”
“Sousa de Castro”
“David J. Guimarães” + “Sousa de Castro”

Ou então os vossos apelidos seguidos de palavras-chaves como Guiné, Xime, Xitole, guerra colonial:

Castro + Xime
Guimarães + Xitole

É uma pequena homenagem ao vosso esforço para que nós, os ex-combatentes da Guiné, a malta do triângulo (que foi de morte e foi de vida, de guerra e de paz, de sofrimento e de amizade) do Xime-Bambadinca-Xitole, o Sector L1 da Zona Leste, mas também a malta de todos os outros sectores, do norte ao sul da Guiné, não caiamos no esquecimento, não nos tornemos uma espécie em vias de extinção…

Luís Graça [CCAÇ 2590/ CÇAC 12]

quarta-feira, 11 de maio de 2005

Guiné 63/74 - P17: A malta do triângulo Xime-Bambadinca-Xitole (4)

1. O David J. Guimarães tem sido um incansável alimentador da minha/nossa memória da guerra colonial. As suas fotografias, os seus apontamentos, ajudaram-me a preencher inúmeras falhas de memória em relaçã à Guiné do meu tempo, desde Bissau a Bafatá, do Xime ao Xitole... Hoje recebi mais umas tantas fotografias de Bissau, tiradas por ocasião da sua viagem em finais de 2001. Diz o meu camarada do Xitole e de Bambadinca:

"Ora aí vai mais um pedaço daquilo que está lá, na nossa Guiné. Digo nossa porque afinal está no coração. Quanto ao resto, é deles e com todo o direito. E que eles tenham inteligência para não deixarem o país capitular. Pouco falta e é pena"...

Muitos ex-combatentes, como o David e eu, seguem com apreensão os acontecimentos políticos na Guiné-Bissau. São pessoas que têm um sentimento de afecto pelos guinéus, que querem o melhor para os filhos da Guiné, mas que receiam pelo futuro, pela paz, pela liberdade, pela independência daquele país. É um parto difícil a construção de um Estado democrático e moderno em África. Também nós levámos séculos, em Portugal e no resto da Europa, a modernizar e a democratizar as nossas sociedades e os nossos Estados. O ponto a que chegámos hoje não é, de modo algum, um ponto irreversível. A barbárie está sempre à espreita. O fascismo, o totalitarismo, podem sempre entrar-nos pela porta dentro. Historicamente não há conquistas irreversíveis. Quem sou eu para levantar o dedo acusador à Guiné-Bissau e aos guinéus ? É claro que me aflige ver que a Guiné-Bissau pode estar à beira da barbárie, do precipício,da pulverização, do golpe de Estado, da anarquia, da fome... É uma caixa de Pandora. Preocupa-me que não haja Estado, administração pública, serviços de saúde e escolas a funcionar em condições, garantias e liberdades, pão, paz, segurança... Preocupa-me o futuro da Guiné, das suas crianças, das suas mulheres, dos seus trabalhadores, dos seus desempregados... Vai haver eleições presidenciais, mais de vinte e tal candidatos e, pelo que ouvi na Rádio África, cada candidato terá direito a um subsídio de campanha no montante de vinte mil dólares. Será que ouvi bem ? Um dos países mais pobres do mundo, com um escasso milhão de habitantes, e que vive da caridade internacional, vai financiar com mais de meio de dólares a campamha eleitoral dos vinte e tal candidatos à Presidência da República!... Delirante ? Surrealista ? Burlesco ? Trágico ? Kafkiano ?

Quem sou eu, que fui combatente da guerra colonial, memso contra a a minha própria guerra, para dar lições de ética, de moral ou de civismo aos guinéus ? Mas mesmo assim tenho direito a pensar emn voz alta e em manifestar as minhas perplexidades perante ao actual momento social e político na Guiné-Bissau. SEm com isso querer ser paternalista e, muito menos, imiscuir-me nos "assuntos internos" do país que Amílcar Cabral ajudou a fundar.

2. Retomando a mensagem do Guimarães: " Envio-te esses testemunhos. Creio que todos reconhecerão a 5ª Rep, o antigo Café Bento: acho importante essa fotografia. Todos se lembrarão do Pelicano e da Marginal; da casa Gouveia, que é agora o Ministério da Economia; do Forte da Amura e do quartel-general, lá em cima, na zona de Santa Luzia...Enfim, é a Guiné.

"Muito gostaria, dado o ficheiro ser grande, de ter a certeza de que o recebeste em boas condições. Mata saudades que, afinal, é das coisas que vale a pena matar"...

Grande filósofo, grande sábio, o meu amigo David:

"Ninguém de sã espírito entenderá como um combatente gostará assim tanto dos locais onde sentiu a morte tão perto, o matraquear da metralhadora, o troar do obus, a metralha das armas ligeiras, os gritos de horror... Afinal a vida até por isso valerá a pena, não sei!"...

E com esta é que ele me mata: "Sabes, Luís, ninguém entenderá como milhares de Portugueses hoje têm saudades daquilo lá. E vale a pena, podendo, ires lá, digo eu... Para um dia dormires descansado. E se tiveres que chorar chora, porque agora temos liberdade para isso e faz-nos bem. Não, não é feio um homem chorar: feio foram outras coisas, mas isso já é política... Abraço. David".


3. Fico sem palavras. LG.

terça-feira, 10 de maio de 2005

Guiné 63/74 - P16: No Xime também havia crianças felizes (2) (Luís Graça)

1. Acabei de falar com o José Carlos Mussá Biai: nasceu em 1963, no Xime, e era menino no tempo em que por lá passaram a CART 2715 e a CART 3494. Era menino no tempo em que eu estive no Sector L1 da Zona leste, correspondente ao triângulo Xime-Bambadinca-Xitole.

Sei que, até ao fim da guerra, ele, a família e os vizinhos da sua tabanca sofreram muitos ataques. Uma família inteira, perto da sua morança, morreu. A sua infância não foi fácil. A vida também não foi fácil para a população civil, de etnia mandinga, que ficou no Xime.

2. Em contrapartida, também houve algumas coisas boas. Por exemplo, o furriel miliciano enfermeiro José Carlos José Luís Carcalhinho da Ponte, natural de Viana do Castelo, foi alguém especial na sua vida e na vida dos outros meninos do Xime. Foi seu professor primário na única escola que lá havia, a PEM (Posto Escolar Militar) nº 14. O Mussá Biai também teve como professor, depois da CART 3494 ter ido para Mansambo, o furriel Osório, da CCAÇ 12, que dava aulas no Posto Escolar Militar nº 14, juntamente com a esposa.

Em suma, o menino Mussá Biai fez a sua instrução primária debaixo de fogo. Um dos seus irmãos, o Braima, era guia e picador das NT. Tal como o Seco Camarà que morreu ingloriamente na Operação Abencerragem Candente, no dia 6 de Novembro de 1970, perto da Ponta do Inglês, no regulado Xime. O seu corpo foi resgatado por mim e pelos meus homens. Os restos humanos do mandinga Seco Camará, guia e picador das NT, morto à roquetada, foram transportados pelos meus soldados, fulas, para a sua tabanca do Xime. O José Carlos, embora menino, de sete anos, lembra-se perfeitamente deste trágico episódio em que os tugas do Xime tiveram cinco mortos, além do Seco Camarà.

O seu pai, um homem grande mandinga do Xime, era o líder religioso da comunidade muçulmana local. A família teve problemas depois da independência devida à colaboração com as NT. Depois dos tugas sairem, o José Carlos foi para Bissau fazer o liceu. Tinham-lhe prometido uma bolsa, se trabalhasse dois anos como professor para as novas autoridades da Guiné-Bissau. Ficou cinco anos como professor, até decidir partir para Lisboa e lutar pela obtenção de uma bolsa de estudo. Conseguiu uma, da Fundação Gulbenkian. Matriculou-se no Instituto Superior de Agronomia. Hoje é formado em engenharia florestal. Trabalha e vive em Portugal. Mas nunca mais voltou a encontrar os seus professores do Xime. E é seu desejo fazê-lo.

Moral da estória: O José Carlos é um exemplo de tenacidade, coragem, determinação e nobreza que honra qualquer ser humano. Que nos honra a nós e ao povo da Guiné-Bissau a ele que pertence.

3. Ontem, 9 de Maio de 2005, o Mussá Biai deve ter tido uma agradável surpresa. O Sousa de Castro, que esteve no Xime nessa altura, escreveu-lhe, depois de saber a sua estória através de mim. E deu-he notícias do seu professor primário! Aqui vai o teor da sua mensagem:

"Como estas coisa são!... Como este mundo é pequeno!... Quero dizer ao Zé Carlos que eu, António Castro, de Viana do Castelo, fui 1º cabo radiotelegrafista da CART 3494 (Fantasmas do Xime), conheço perfeitamente o ex-Furriel enfermeiro, dou-me muito bem com ele. Curiosamente ele irá talvez em Junho ou Julho à Guiné ao abrigo da Plataforma de Cooperação com a Guiné-Bissau, mais precisamente ao Cacheu que está geminado com Viana do Castelo desde 1988.

"Informo também o Zé Carlos qual o endereço e telefone para o poder contactar. O nome correcto é:

José Luís Carvalhido da Ponte
Rua Moinho Vidro, 89
Viana do Castelo
4900-753 MEADELA".

O que dizer mais ? Que esta história não acaba aqui, mesmo acabando bem. Um dia destes almoçamos juntos e vamos continuar a contar estórias sobre o Xime e os meninos da guerra que às vezes até conseguiam ser felizes.

segunda-feira, 9 de maio de 2005

Guiné 63/74 - P15: No Xime também havia crianças felizes (1)

1. Recebi na sexta-feira passada, dia 6 de Maio, uma mensagem que me comoveu e que, ao mesmo tempo, me deixou orgulhoso enquanto tuga. Passo a transcrevê-la:

"Dr. Luís Graça

"Descupe-me roubar o seu precioso tempo, mas tomei a liberdade de lhe enviar este e-mail, porque estive a ler o seu blogue e vi que você cumpriu o serviço militar na minha terra, Xime, e logo nas companhias que marcaram a minha infância, CART 2715 e CART 3494. Isso porque há alguém que me ficou na memória para sempre por ter sido meu professor na única escola que lá havia, a PEM (Posto Escolar Militar) nº 14, e de nos ter feito crianças felizes. Essa pessoa é de Viana de Castelo, era furriel [miliciano]enfermeiro, de nome José Luís Carcalhinho da Ponte.

Gostava de falar mais consigo, caso tenha tempo e disponibilidade para me aturar.
Os meus cumprimentos, José Carlos Mussá Biai."

2. Eis a minha resposta, com data de hoje:

"José Carlos: Só hoje de manhã li a sua mensagem. Deixe-me confessar-lhe que me comoveu mas ao mesmo tempo também me deixou uma pontinha de orgulho. Você não é dos guinéus que diabolizam os tugas (o termo depreciativo que, como deve estar lembrado, era utilizado pelos guineenses, em geral, para se referirem aos portugueses que ocupavam a vossa terra). Penso que esse tempo, em que as coisas eram vistas a branco e preto, já passou. O tempo dos ressentimentos já passou. A histórias e as estórias são sempre muito mais compridas e complicadas do que o tempo que a gente tem para as escrever e contar… Além disso, o meu país e o meu povo estão reconciliados um com o outro, e também com a Guiné e com os guineenses, os quais de resto continuam a ter um lugar especial no nosso coração de tugas.

"Dito isto, eu fico muito orgulhoso por saber que você era um menino do Xime, no meu tempo de furriel miliciano da CCAÇ 12 (Maio de 1969-Março de 1971), e que foi um outro furriel miliciano, enfermeiro, José Luís Carcalhinho da Ponte, tuga, minhoto de Viana do Castelo, que o ajudou a aprender a língua de Camões, e que fez de si uma criança feliz. De si e de outras crianças do Xime. A sua mensagem revela uma grande sensibilidade humana, além da gratidão por um homem que, nas horas vagas da guerra, ensinava os meninos da Guiné.

"Claro que eu terei tempo e muito gosto em falar consigo, e daí deixar-lhe os meus contactos. O mais simples é indicar-me o seu número de telefone. Procurei contactá-lo rapidamente. E, se mo permitir, vou pôr o seu nome e o seu endereço de e-mail na minha lista de contactos de pessoas que, por uma razão ou outra, estão ligadas ao triângulo Xime-Bambadinca-Xitole no tempo da guerra colonial. Veja a minha página sobre os Subsídios para a História da Gerra Clonial> Guiné.

"Devo esclarecê-lo que eu não pertenci à CART 2715 nem à CART 3494. Sou mais velho do que os elementos destas companhias. Mas metade da minha comissão passei-o em contacto frequente com a CART 2715 que estava sedeada no Xime. Os camaradas da CART 3494 (que chegou ao Xime por volta de Janeiro de 1972) já não os conheci, mas eles continuaram a trabalhar com a CCAÇ 12 (que era formada por praças africanas, oriundas do chão fula, e em especial dos regulados de Xime, Corubal, Badora e Cossé; todos eles eram fulas ou futafulas, à excepção de um mancanhe, que era natural de Bissau; havia ainda dois mandingas).

"Vou pô-lo em contacto com duas pessoas desse tempo:

(i) o Sousa de Castro (o ex-1º cabo radiotelegrafista Castro, que pertencia à CART 3494, e que curiosamente também é natural de Viana do Castelo, ou vive e trabalha lá);

(ii) o David J. Guimarães, ex-furriel miliciano da CART 2716, aquartelada no Xitole, e do mesmo batalhão da CART 2715, o BART 2917). O seu professor primário, José Luís Carcalhinho da Ponte, deve ter pertencido à CART 2715 ou à CART 3494 (que, por sua vez, estava integrada no BART 3873).

"Presumo que o José Carlos queira encontrar, contactar ou obter o contacto do seu mestre de escola. Talvez estes dois nossos amigos o possam ajudar. Eu, pessoalmente, não conheço nem me lembro desse furriel miliciano enfermeiro. Um ciber-abraço. LG."

3. Fiquei hoje a saber, pelo endereço de e-mail e por uma pesquisa rápida na Net, que o José Carlos Mussa Biai trabalha no Intituto Geográfico Português e é co-autor de um ou mais trabalhos de investigação na área de engenharia florestal onde se formou, relacionados com o seu país de origem.

sexta-feira, 6 de maio de 2005

Guiné 63/74 - P14: A malta do triângulo Xime-Bambadinca-Xitole (3) (Humberto Reis)

6 de Maio de 2005:

Luís:

Cá estamos nós sempre a falar da Guiné. Quer queiramos quer não, sempre foram quase dois anos das nossas vidas que lá ficaram.

Para tua actualização e correcção do mapa [do Sector L1] aqui vão as distâncias a partir de Bambadinca, que foram medidas em cima dos 73 mapas à escala 1/50000 que eu tenho de toda a Guiné, e que me custaram em 1994 e 1995, [a módica quantia de] 33 000$00 (só os malucos é que gastavam este dinheiro nisto).

Será que aquela terra, e aquela gente, merece isto? Em 1996 embarquei para a, agora, Guiné-Bissau, exactamente no dia em que fazia 25 anos da nossa partida de lá, 17 de Março [de 1971], tendo cobrado de honorários do Projecto que lá fui tratar... ZERO ESCUDOS + IVA. E ainda gastei uma semana das minhas férias. Volto a interrogar-me: aquela terra e aquela gente merecem ?

Vamos aos factos que aqui nos trazem aqui, as distâncias.

Desde Bambadinca...

à ponte do rio Undunduma > 4 Km
a Amedalai > 6 Km
à Ponte Coli > 7 Km
ao Xime > 11 Km
a Bafatá > 30 Km
a Samba Juli > 6 Km
a Mansambo > 18 Km
à Ponte dos Fulas (rio Pulon) > 33 Km
ao Xitole > 35 Km
ao Saltinho > 55 Km

Tenho lido, e relido, aqueles apontamentos que me enviaste do David Guimarães.

Cá vai um abraço.
Humberto

quinta-feira, 5 de maio de 2005

Guiné 63/74 - P13: A malta do triângulo Xime-Bambadinca-Xitole (2) Sousa de Castro / Luís Graça)

2 de Maio de 2005

Castro:

Recebi os 4 DVD. Estou a passá-los no meu computador portátil. Já vi os quatro por alto, parecem-me estar em boas condições de som e imagem. Estou muito emocionado ao visioná-los. Só falta sentir o cheiro da terra e da chuva. Mas aquele sorriso aberto dos guinéus é inconfundível. Estou-te muito grato pelo teu gesto, que é de amigo e camarada. Espero poder retribuir-te.

Já agora: quem é o autor do vídeo ? Isto é trabalho de profissional. E é um documento notável que deveria poder chegar ao conhecimento de todos os camaradas que andaram por todos estes sítios… Pelo sotaque, é tudo malta do norte, não é ? Vou continuar a ver os vídeos. Depois falamos mais. L.G.

3 de Maio de 2005:

Luís:

De facto parece trabalho de profissional. É um trabalho notável. O que acontece é que, se reparares, de vez em quando aparece um rapaz mais novo, é filho de um deles(que eu não conheço). Aproveitou essa viagem para fazer um trabalho para apresentar no curso de jornalismo.

A malta é essencialmente do Minho, do Norte, à excepção do que é mais alto. Esse é algarvio, foi furriel de TRMS. Estão aí ex-combatentes talvez mais velhos e da mesma idade que nós. No Xime o homem que está a falar é da minha companhia. Todos os outros, creio que são mais velhos do que eu. Como podes reparar, apesar de não nos conhecermos pessoalmente, é um prazer enorme para mim poder partilhar um documento sobre uma terra que nos tocou profundamente. Tenho facilitado cópias a várias pessoas que me parecem mostrar interesse por estas coisas. Dentro de pouco tempo o Guimarães irá receber uma cópia dos DVD.


3 de Maio de 2005:

Castro:

Cinco estrelas! Já vi os DVD que me mandaste. São seis horas de filme! De facto, percebi logo que era malta do Norte pelo à vontade, pela postura e pelo sotaque…Também percebi que era o filho de um deles o operador o vídeo, o filho do Albano Cardoso, um tipo que esteve em Guidage (e que gostava de fazer fotografia).

O teu camarada da CART 3494 que esteve no Xime é fácil de identificar, é um careca, de nome Lúcio, ex-bazuqueiro. Ele mostra, no filme, os restos do quartel, e é reconhecido por pessoas do vosso tempo, incluindo uma lavadeira…

Foi tocante para mim reviver a Guiné, com as belas imagem e a excelente banda sonora dos filmes.. Foi também a ocasião para conhecer o norte e o sul da Guiné, aonde nunca tive a oportunidade de ir…

O grupo é curioso porque inclui malta que esteve em todo o sítio, norte, leste e sul, e de diferentes anos (há um que esteve em Bafatá, logo no princípio da guerra). É comovente ver como os guinéus mantêm o cemitério dos tugas, caiado, impecável…

Reconheci, em Mansambo, um antigo soldado nosso, da CCAÇ 12, o Cherno, hoje com 17 filhos… Também reconheci as nossas instalações em Bambadinca… Gostei de recordar Bafatá, que está a precisar de ser reconstruída… Do Xitole, tenho menos recordações, uma vez que nunca lá vivi, ia lá só em colunas logísticas… Mas há também interessantes apontamentos para perceber a realidade de hoje…

Gostava de contactar o filho do Albano Cardoso (o tal de Guidage), e que hoje deve ser jornalista, não ? Talvez o Lúcio saiba alguma coisa dele…

Bem hajas! Um dia destes telefono-te. L.G.

5 de Maio de 2005:


Guimarães: Obrigado pelas tuas fotos da viagem à Guiné em 2001. Consegui abri-las todas, excepto a do Restaurante Lusófono, com o vosso grupo (tu, o enfermeiro, o Dr. Vilar e a família). É, de facto, um regalo para a vista… O puto que está contigo, no baga-baga, é filho do Vilar ?

Também já me tinham dito que as bolanhas na Guiné se estão a degradar e a salinizar e que muitas delas deram origem a plantações de caju… No nosso tempo, ainda havia, apesar da guerra, belas plantações de arroz, quer nas zonas controladas pelas NT quer nas regiões sob controlo do PAIGC (por exemplo, no Poindon…).

Não era por acaso que o Amílcar Cabral era engenheiro agrónomo. Sabias que antes da guerra a Guiné exportava arroz ? Era a base da alimentação das populações locais. Os meus soldados, que eram desarranchados, compravam um a dois sacos de arroz por mês. O pré de um soldado de 2ª classe era de 600 pesos. Tinham mais 24 pesos por dia (se não me engano), por serem desarranchados. Com 1200/1300 pesos (1 peso=1 escudo), compravam dois sacos de arroz (de 50 quilos, creio)… Todos eles eram casados, com uma ou mais bajudas…

É giro, no 3º DVD que o Castro me mandou (e que remonta a Novembro de 2000), reconheci em Mansambo um soldado da CCAÇ 12, Cherno Baldé, apontador de diligrama…Foi o Lúcio, bazuqueiro da companhia do Xime, colega do Castro, quem o reconheceu… Filmaram a casota dele e os filhos: duas mulheres, e 17 filhos, nem mais!... Como no tempo dos nossos avós! Alguém, por graça, lhe deu uma camisinha

Tenho pena deste povo, que a assim não vai a lado nenhum… No entanto, não detectei no filme sinais aparentes de fome, o que já é bom… Mas a Guiné continua uma alta taxa de mortalidade infantil: creio que morrem 145 crianças em cada 1000, antes de atingirem um ano… Como estás na Segurança Social, talvez te interesse um a tese de mestrado que foi feita, em 1999, numa escola de saúde pública como a minha, mas no Rio de Janeiro. O autor é guineense, é o actual Director Geral de Saúde, Tomé Cá.

A tese, pelo que eu li muito por alto, parece-me interessante e metodologicamente correcta. O autor mostra um bom domínio do campo da epidemiologia e da estatística. Faz a análise de dados da mortalidade infantil no período de 1990-1995, desagregados por grupos étnicos (os principais da Guiné-Bissau: balantas, fulas, mandingas, manjacos, papéis…). Chamou-me a atenção sobretudo a variável etnológica: os diferentes grupos étnicos da Guiné-Bissau (que são mais de 30) têm diferentes atitudes, comportamentos, valores, representações da saúde/doença… Os dados daqui a uns tempos só terão interesse histórico. Não vou aqui discutir as limitações da base de dados em que o autor se apoiou. Mas ele também fez trabalho de campo, através de inquérito por questionário de saúde. Este tipo de trabalhos merecem ser divulgados. Sopbretudo por aqueles de nós que têm uma especial ligação à terra onde conhecemos o céu e o inferno, a guerra e a paz, a estação das chuvas e a estação seca, a savana arbustiva e floresta tropical... Os guinéus são um povo amável e hospitaleiro que bem merece todo o nossoa apoio e amizade. É tocante como, por exemplo, em Bambadinca, no 3º DVD, eles falam connosco, sem ressentimentos do passado, e ao mesmo tempo com esperança. São jovens militares, pertencentes ao exército da Guiné-Bissau, que não conheceram a guerra colonial, e que estão a falar com os tugas, seus irmons, ex-combatentes da guerra colonial... Trinta e tal anos depois!

Tomé Cá (1991) -

Determinantes das diferenças de mortalidade infantil entre as etnias da Guiné-Bissau, 1990-1995
.
Tese de mestrado em saúde pública.
Rio de Janeiro: ENSP. 1991. 93 pp.
_______

O filme, realizado em Novembro de 2000, por ocasião de uma viagem de 16 dias à Guiné, em dois jipes, foi feita por um grupo de dez ex-combatentes, quase todos do Norte. O Sousa de Castro teve a gentileza de me facultar uma cópia para uso pessoal. Estou profundamente reconhecido ao autor do vídeo e aos companheiros desta inesquecível viagem de regresso à Guiné. Aqui fica a sequência das filmagens:

1º DVD: Introdução, Viagem para a Guiné, Cidade de Bissau, Hospital militar e arredores; Interior da Guiné: Cumuré, Jugudul, Xime.

2º DVD: Xime, Mansambo, Quebo (antiga Aldeia Formosa), Fonte Balana, Chamarra, Buba (Aldeia Turística), Destacamento de Buba, De norte para sul.

3º DVD: Guidage, Binta, Farim, Jumbembem, Canjambri, Fajonquito; Zona leste: Bafatá, Bambadinca, Xitole; a sul da Guiné: Empada, Chugué, a caminho de Bedanda;

4º DVD: A caminho de Bedanda, Cacine, Gadamael Porto, Cobumba, Catió, Saltinho (A tabanca), Bissau.

quarta-feira, 4 de maio de 2005

Guiné 63/74 - P12: O silêncio dos tugas face à MGF (Mutilação Genital Feminina) (Luís Graça)

1. Em tempos comentei, em 5 de Agosto de 2002, nos Fóruns do Público > Cidadania - Mutilações sexuais: Salvem as meninas da Guiné (um tema de discussão que hoje só está disponível em arquivo), o seguinte post publicado originalmente por Barbarian Girl, em 16 de Maio de 2002:

"Estou indignada com o que acabo de ler, numa reportagem do Público, assinada pela Sofia Branco. Não imaginava, na minha jovem e santa ignorância, que em pleno Século XXI ainda se praticassem mutilações sexuais como a excisão do clitóris nas meninas como parte dos rituais de iniciação à vida adulta...

"O mais espantoso é que isto se passa num país irmão(!), onde se fala (?) português, que foi um colónia portuguesa(!), por onde passaram muitos portugueses. Mais: se calhar estas práticas continuam a fazer-se em Portugal, no seio das famílias guineenses islamizadas que por cá se vão instalando, com a complacência ou a conivência de muita gente, a começar pelas autoridades de saúde.

"Nunca vi ninguém denunciar esta coisa horrorosa. Vocês sabiam disto, vocês tinham conhecimento disto ? Tenho vergonha da minha ignorância e do meu silêncio involuntariamente cúmplice. Por isso vejo-me na obrigação de publicar aqui, com a devida vénia, o artigo da Sofia Branco, apesar da sua extensão. O que podemos fazer para ajudar a salvar as meninas da Guiné ? Refiro-me a nós, mulheres portuguesas, a começar pelas universitárias. Bárbara".


2. Retomo e desenvolvo o comentário que então fiz ao texto que lançou este tema de discussão nos Fóruns do Publico.pt > Cidadania:

A Sofia Branco volta a este tema, com um notável e bem documentado dossiê. Parabéns ao Públicoe à Sofia por este excelente trabalho de jornalismo de investigação. Parabéns pela sua sensibilidade, empenhamento e rigor no tratamento deste tema marginal.

Espero que a Bárbara tenha lido a reportagem ou tome conhecimento do dossiê, disponível on line, nos dossiês do Público.pt: Sofia Branco (2002)- O holocausto silencioso das mulheres a quem continuam a extrair o clítoris. Público. 4 de Agosto de 2002)

Não é difícil a qualquer um de nós, homens e mulheres formatados pela cultura do Ocidente, ficarmos hoje siderados e indignados pelo conhecimento da prática da Mutilação Genital Feminina (abreviadamente, MGF). Aconteceu-me comigo, quando há trinta e tal anos a descobri na Guiné Portuguesa (hoje Guiné-Bissau), nomeadamente entre os fulas (a principal tribo islamizada do território e um dos mais importantes aliados dos tugas).

Só estranho é que a indignação, de que se faz eco o director do Público, no seu editorial de ontem, chegue tão tarde a Portugal. Durante décadas e décadas, todos nós, portugueses (autoridades coloniais, tropas, oficiais do quadro, milicianos, soldados, marinheiros, capelães militares, missionários, comerciantes, antropólogos, médicos, professores, jornalistas...), convivemos com esta realidade. Uns melhor, outros pior. A festa do fanado era difícil de passar despercebida a qualquer branco que conhecesse minimamente o chão fula e o seu povo, ou que convivesse com a ppoluação das tabancas, como era o meu caso.

Na Guiné, entre 1969 e 1971, na Zona leste, nunca vi os tugas (a começar por Spínola e a sua brilhante entourage de especialistas em acção psicossocial, com alguma formação portanto em ciências da saúde e em ciências sociais e humanas) minimamente preocupados com aquilo que hoje é uma evidente violação dos direitos humanos, além de um problema de saúde pública. Dir-me-ão que o Governador e Comandante-Chefe tinha mais que fazer do que usar a sua reconhecida autoridade e prestígio junto dos fulas para influenciar algumas das suas práticas mais aberrantes... Não creio, por outro lado, que no staff do brihgadeiro e, mais tarde, general Spínola houvesse suficiente sensibilidade sócio-antropológica para o problema da MGF que todos os anos matava e mutilava crianças guineenses.

Na época em que lá estive (entre Maio de 1969 e Março de 1971) também não os vi sequer preocupados com a simples promoção do estatuto da mulher guineense. A psico, a famosa acção psicológica, tinha muito popuco de promoção social... Do Minho a Timor, a festa do fanado (e a MGF praticada em pleno mato pelas fanatecas ou excisadoras, fora dos olhares profanos, dessacralizadores, dos homens) fazia parte do folclore ultramarino e era aceite pelos nossos antropólogos, formados pelo ISCPU - Instituto Superior de Ciências Políticas e Ultramarinas, em nome do relativismo cultural. Falava-se, de resto, eufemisticamente em circuncisão, e nomeadamente masculina (enquanto a feminina era praticamente ignorada ou escamoteada)!

E, no entanto, durante a guerra colonial o povo fula foi praticamente todo ele militarizado, mobilizado e martirizado em nome da defesa da pátria comum (que era obviamente uma ficção do regime político que tanto oprimia os tugas da metrópole como os nharros das colónias). A grande maioria dos soldados da minha Companhia de Caçadores nº 12 (CCAÇ 12) eram de origem fula.

Os fulas também foram vítimas da guerra (todos eles, homens, mulheres e crianças!), já que as suas aldeias, também elas, estavam organizadas em autodefesa e, por isso, eram potenciais alvos dos ataques da guerrilha do PAIGC. Os fulas deram o principal contingente da tão sonhada força africana com que Spínola queria ganhar a guerra (ou pelo menos ganhar tempo...).

Hoje é fácil cairmos na tentação de diabolizar os fulas (o principal esteio da comunidade muçulmana guineense, a par dos seus rivais históricos, os mandingas) não só pelo erro histórico da aliança dos seus chefes tribais com o colonialismo dos tugas (e que nós corrompíamos, de uma maneira ou de outra) como pelo seu modo cruel de dominação sexual, social e económica das mulheres.

Dito isto, que fique claro, aos olhos dos meus amigos guineenses, fulas, futa-fulas, mandingas ou outros, que a MGF no meu país é um crime. E como tal deve ser prevenida e reprimida. Parafraseando o editorial do Público, não há, não pode haver, respeito pela identidade multicultural dos povos que incentive, tolere, ignore ou escamoteie as violações dos direitos universais.

Qual é a situação actual na Guiné ? Embora a excisão (nas raparigas) e a circuncisão (nos rapazes) continue a ser uma prática corrente, tem-se procurado formas alternativas à MGF, valorizando os aspectos culturais e simbólicos da festa do fanado e não discriminando as fanatecas (para quem a festa do fanado é o seu sustento e a sua razão de ser).

Segundo fontes da OMS, citadas pela União Parlamentar Internacional(UPI), estimava-se nos finais da década de 1990 que a "average prevalence could be 50% and affect 100% of Muslim women. It is reportedly 70 to 80% for the Fula and Mandigue women. In urban areas, it is estimated that 20 to 30% of girls and women have been mutilated. However, the IPU has no first-hand official statistics or other details on this subject".

Alguns sítios sobre a MGF (Mutilação Genital Feminina):

Afrol News >

Alternatives to female genital mutilation in Guinea-Bissau


Amnistia Internacional >
Female Genital Mutilation - A Human Rights Information


Commission ontarienne des droits de la personne >
Politique sur la mutilation génitale féminine (MGF)


Inter-Parlamentay Union /Union Interparlementaire >
Female Genital Mutilation >

Legislation and other national provisions:
Gabon, Gambia, Germany, Ghana, Guinea, Guinea-Bissau


OMS, Genebra >

WHO Health Topics >
Female Genital Mutilation


Publico-pt > Dossiers >

Mutilação Genital Feminina


Religious Tolerance >

Female Genital Mutilation (FGM)
in Africa, The Middle East & Far East > Debates about FGM

terça-feira, 3 de maio de 2005

Guiné 63/74 - P11: O Sector L1 (Xime-Bambadinca-Xitole): Caracterização (2) (Luís Graça)

Extractos de História da CCAÇ 12: Guiné 69/71. Bambadinca: Companhia de Caçadores nº 12. 1971. Cap. II, pp. 4-5.

2.5. População

2.5.1. Estrutura étnica

Os grupos étnicos mais representativo do Sector L1 / Zona Leste são os fulas, futa-fulas e nandingas, concentrando-se estes últimos em especial na parte sul de Badora e em Bambadinca. Há ainda uns núcleos importantes de balantas em Nhabijões, Santa Helena, Mero e Bissaque [na região do Geba Estreito entre o Xime e Bambadinca].

A maior concentração populacional é a de Badora. A única área despovoada é a de Corubal, a leste da estrada Mansambo-Xitole, excluindo a zona compreendida entre Xitole e Saltinho.

2.5.2. Grau de controlo

Sob controlo IN, estão todas as populações que vivem na área compreendida entre a linha Xime-Xitole e a margem direita do Rio Corubal (balantas e beafadas) e ainda na região de Madina/Belel e Cassarandi/Sinchã Banir, a NW do [regulado do]Cuor (mandingas e balantas).

Sob duplo controlo, consideravam-se até há pouco apenas os núcleos populacionais de Nhabijões, agora reordenados [situação reportada ao início de 1971, tendo o reordenamento copmeçado em finais de 1969] e as tabancas da margem sul do Geba Estreito.

Todas as outras populações do Sector L1 estão sob controlo das nossas autoridades administrativas e militares.

2.5.3. Colaboração dos fulas com as NT

Os fulas, que são a maior etnia do sector, desde o princípio da guerra que se têm mostrado fiéis as NT mas a sua colaboração é profundamente influenciada por vários factores.

Apontam-se como factores positivos:

(i) o tradicional respeito dos fulas às nossas autoridades;
(ii) a rivalidade existente entre a etnia fula e as restantes etnias da Guiné, especialmente os mandingas e os balantas;
(iii) e ainda a hostilidade dos chefes fulas em relação ao PAIGC.

E como factores negativos:

(i) a ausência de um sentimento de nacionalidade;
(ii) a islamização;
(iii) o receio do potencial IN;
(iv) e sobretudo o estado de regressão em que a etnia fula se encontra (em virtude da estrutura tribal em que vive, da poligamia e economia de autoconsumo que pratica, da vida contemplativa que adopta, da perda de qualidades de trabalho, etc.).

Mas duma maneira geral a população fula do sector (e em especial a dos regulados de Xime e Badora) tem prestado colaboração activa as NT, aceitando a autodefesa, alistando-se voluntariamente no Exército e nas forças militarizadas, combatendo o IN e resistindo aos seus ataques.

Embora não haja uma fronteira étnica definida, o fula mostra grande apego ao seu chão donde não quer ser desenraizado.

(Continua)
__________

Alguns sítios interessantes sobre a Guiné-Bissau de hoje, o seu puzzle étnico, os seus problemas de desenvolvimento sustentado, a democracia, a saúde pública, etc.

Africanidade Website

Ca, Tome.
Determinantes das diferenças de mortalidade infantil
entre as etnias da Guine-Bissau, 1990-1995.[Tese de Mestrado].
Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz.
Escola Escola Nacional de Saúde Pública. 1999. 91 p.

Guiné-Bissau.com

Guinée-Bissau.net >

Bissau, capital da Guiné-Bissau
(em francês)

Guinée-Bissau.net >

Etnias da Guiné-Bissau
(em francês)

Guinée-Bissau.net >

Fotos da Guiné-Bissau (1995-2002)
(Legendas em francês)

domingo, 1 de maio de 2005

Guiné 61/74 - P10: Memórias de Fá, Xime, Enxalé, Porto Gole, Bissá, Mansoa (Abel Rei)

Abel Rei (n. 1945), ex-combatente da Guiné (1967/68), natural da Maceira, Leiria, e actualmente residente em Embra, Marinha Grande.

Fonte: © Carlos Barros (2005) Portal da Marinha Grande

Amigos & camaradas:

Se não conhecem, tomem nota de um sítio que descobri na Net. É de um camarada que vive na Marinha Grande e que andou pelos nossos lados, entre Fevereiro de 1967 e Novembro de 1968. O nome dele é Abel de Jesus Carreira Rei. Conta a sua história de ex-combatente num portal da Marinha Grande, dirigido por Carlos Barros: Marinha Grande > Palavras & Imagens > Personalidades Marinhenses > Biografias > A > Abel de Jesus Carreira Rei.

Com a devida vénia e os nossos agradecimentos (pela foto e pelos excertos de texto), aqui vai o endereço: Entre o Paraíso e o Inferno: de Fá a Bissá. Memórias da Guiné - 1967/1968). 

Diz o autor: "Esta é a história verdadeira que eu escrevi: não a história que eu gostaria de escrever". 

Trata-se de um diário que vai do dia 1 de Fevereiro de 1967 a 19 de Novembro de 1968.

E aqui ficam alguns apontamentos (corrigi, aqui e ali, a pontuação e a gramática, sem atraçoiar o pensamento do autor).



"Levantámo-nos eram três da manhã e saímos finalmente de Bissau, sem irmos lá, subindo o rio Geba acima, pelas seis horas, numa LDG (Lancha de Desembarque Grande), sendo patrulhados por marinheiros. O pormenor mais importante desta viagem foi na altura em que os homens da tripulação destruíram uma canoa dos turras, com seis tiros, obrigando toda a malta a deitar-se instintivamente.

"Desembarcámos em Bambadinca pelas treze horas, e daí seguimos para Fá [Mandinga], onde iria ser o nosso primeiro aquartelamento na Guiné. Depois dum refrescante banho, já depois de o sol se pôr, numa fonte de água fresca próxima do quartel - e, segundo dizem, a melhor da província - comemos a primeira refeição cerca das dez horas da noite. Apesar da fome que passámos, o nosso maior inimigo, neste início, é o calor, pois vínhamos do frio e qu1ase todos o sentimos".



2. Em 21 de Fevereiro de 1967, o nosso homem está destacado no Xime, aquartelamento da CCAÇ 1550:

"Neste quartel de Xime, onde temos permanecido desde a saída de Fá, está-se em contacto permanente com os indígenas, que vivem à entrada numa tabanca, com enorme população, sendo alguns deles soldados dum pelotão de nativos. Já percorri a mesma, e tive o primeiro contacto com as bajudas(raparigas adolescentes nativas), em companhia de camaradas mais velhos, que pertencem à Companhia de Caçadores nº 1550, cá destacada, e comecei a [papaguear] o crioulo. Como curiosidade tive nos braços um garoto mulato, talvez fruto da passagem dos primeiros militares brancos, por cá, no início da guerra."


3. Em 25 de Fevereiro o autor vai em patrulha estacionada no Enxalé, a CART 1439… O Enxalé ficava a norte do Rio Geba, em frente ao Xime. Também passei/passámos, a malta da CCAÇ 12, pela grande privação de água nesta região. Escreve o nosso cabo, quando regressa de Porto Gole ao Enxalé:

"Hoje pude avaliar quão grandes teriam sido as dificuldades que os nossos antecessores sofreram, e eu ainda terei de sofrer (?). A água, que costuma ser bebida com comprimidos e filtrada, bebeu-se por todos, sofregamente, sem olhar a limpeza e origem. Bebia-se todo o líquido que nos aparecia, quer nas poças do terreno, ou nos poucos cursos de água, fosse ele da cor que fosse!"…


4. Em 12 de Março, o baptismo de fogo na região do Xime. O autor não nos dá indicações precisas onde se desenrolou a operação, diz apena foi a "este do Xime"...

"Seriam talvez sete da manhã quando a linha da frente, donde eu fazia parte, detectou duas minas escondidas na picada, logo de imediato assinaladas e desactivadas. Entretanto, mais à frente o inimigo que, supomos, sabia das nossas manobras, vinha ao nosso encontro para nos montar emboscadas. Nós demos de caras com eles abrindo o nosso primeiro homem, à frente, fogo de rajada com a G3.

"Eles responderam de imediato com rajadas de metralhadoras e bazucadas, que caíam já bastante perto de nós. O local não nos ajudou, por só haver uma picada estreita, na qual seguíamos em linha, e que era ladeada por espesso capim alto. Do inesperado embate houve escasso recuo, para logo de seguida nós lhes fazermos frente, com morteiradas e rajadas que fizeram o inimigo bater em retirada.

"Foi histórico, para mim, este dia em que as ouvi cantar por cima da minha cabeça".



5. De 19 a 23 de Março, participa numa dramática operação ao Burontoni, na região do Xitole (Op Guindaste). As NT fazem 8 mortos, “confirmados no terreno”, e capturam material de guerra. Mas o ronco tem sempre custos para os tugas: mais uma vez o sofrimento devido ao cansaço e a falta de água…

"Retirámos, deixando tudo em chamas, em passo acelerado, tendo alguns desmaiado, em parte devido ao calor, mas também por falta de água, contando-se entre eles o nosso capitão e um sargento. Quando tornámos a passar pelo riacho, que sabíamos existir, parecíamos que estávamos loucos, procurando a água com ânsia, mesmo com ela quase preta, do calcar dos nossos pés. Lá estivemos mais de uma hora, para abalarmos depois, bastante mais frescos, a caminho de Dembataco, onde chegámos às sete e tal da noite. Pelo caminho, encontrámos mais uma nascente, com um curso de água, onde parámos e nos abastecemos de novo. Mais uma vez, corridas loucas ao encontro de água, e como sempre a ser preciso penetrar nela para a possuir: e eram sempre duas rações que tinha de arranjar; a minha e a do meu colega Saraiva, dos Moínhos de Carvide, que vinha completamente abatido, e o qual ajudei nas últimas horas de marcha, amparando-o e trazendo-lhe o seu equipamento (...).

"Parti de Dembataco, tremendamente abatido e exausto, em direcção à estrada do Xitole-Bambadinca, depois de passarmos uma ponte de paus ligados uns aos outros. Aí deveriam estar umas viaturas que nos levariam a Fá. Não estavam. Partimos aos tombos até Bambadinca, onde chegámos à meia-noite e foram só os teimosos do meu grupo de combate; os outros lá ficaram a aguardar as viaturas. Mas nós, uma vez chegados, tornámos atrás a fazer segurança às viaturas, que iam buscar os nossos colegas que, entretanto, se tinham posto a caminho por ser perigosa a sua permanência no local onde ficaram.

"Chegámos ao quartel à uma da manhã, e assim terminou a Operação Guindaste na zona Burontoni".


6. Em 15 de Abril de 1967, as NT sofrem um duro revés em Porto Gale… 7 mortos:

"Dia trágico, este, para quantos se encontravam no 'Inferno' de Bissá!

"Em Porto Gole, estando de serviço à meia-noite, ouvi fortes rebentamentos, e enormes clarões, lá para as bandas de Bissá. Contudo não pude averiguar ao certo o local, onde durante mais de uma hora [houve] constante tiroteio (...). Procurámos entrar em contacto pela via rádio, mas eles não deram sinal, pelo que deduzimos ser alguma operação apoiada com os obuses de Mansoa, como muitas vezes estamos habituados (...).

"De manhã, e como estava previsto, saíram os homens, que na véspera tinham chegado, mais alguns deste destacamento, cuja missão era levar para Bissá um abastecimento de alimentos e munições (...).

"Partiram às seis e às sete chegaram cá civis para nos informarem de que Bissá tinha sido atacado e havia feridos a necessitarem de ser evacuados de helicóptero, pois o rádio deles estava avariado desde o princípio e não podia dar comunicação para nós, e o nosso, naquele momento para cúmulo do azar, também não obteve ligação com o Comando em Enxalé, tendo de ir pessoal em duas viaturas até lá levar a mensagem, demorando portanto, o socorro.

"Por volta do meio-dia e picos, chegou o primeiro helicóptero, e para espanto nosso, com mortos e não feridos, como supúnhamos! Depois mais três aterragens: foram sete mortos no total, todos africanos.

"Houve mais cinco feridos, sendo quatro nativos do Pelotão da Polícia Administrativa, e um branco da nossa companhia, que foi evacuado para Bissau.

"Mas aconteceu o que não esperávamos, e eu confesso: apesar de estar cá há pouco tempo, vieram-me as lágrimas aos olhos. Houve choro de todos, com gritos e desmaios das mulheres que, como que adivinhando o que aconteceu, entraram de rompante dentro do destacamento, numa altura em que procedíamos à pesagem de peixe fresco chegado do rio... Tinha morrido um capitão de 2ª linha, mais seis homens nativos, todos pertencentes à Polícia Administrativa e todos eles com as famílias cá na Tabanca em Porto Gole. Morria o homem, em quem se tinham fortes esperanças, para acabar com a guerrilha inimiga na zona, o capitão Abna Na Onça, por ser corajoso e respeitado por negros e brancos. Um homem que desde o início da guerra vinha enfrentando, com máxima inteligência, aqueles que o fizeram sofrer, matando-lhe toda a família (...).



7. Em 14 de Maio de 1967, estamos em Bissá, um aquartelamento com oito abrigos, arame farpado e iluminação a… petromax!... E onde há alferes milicianos chicos (como também havia no nosso tempo!)…

Por outro lado, vejam, no registo do dia 12 de Junho de 1967, como era perigoso brincar com armadilhas!


8. Em 16 de Setembro, quatro mortos numa mina anticarro:

Em Outubro de 1967 a série negra continua, com mais mortos…


9. Em 29 de Novembro de 1967, há o relato de uam dramática operação à região de Madina [Madina / Belel, no regulado do Cuor].

" (...) Partimos à meia-noite do dia 27, com uma ração de combate por cada dois homens, e a caminho dum acampamento de turras, situado em Madina, onde eles tinham bastantes armas pesadas, entre elas, um ou dois morteiros 82 e canhão sem recuo (?). 

"Chegámos por volta das dez e meia da manhã. Por essa altura, começou a sobrevoar a zona uma avioneta com um major de operações. Depois de mais de uma hora parados, e a suportar toda a intensidade do sol escaldante, fomos obrigados a avançar para o objectivo. Nessa ocasião fazia-se a entrada numa bolanha cheia de água.

"Mas os nossos corpos caíram!... Fomos quatro evacuados. Cerca de vinte homens ficaram a fazer a segurança ao helicóptero. Todos os outros iam a caminhar para o objectivo. Levantámos, no meio do capim com mais de três metros de altura, e assim que partimos, toda a zona era alvo de fortes rebentamentos, lançados pelo inimigo, para liquidar os homens que eles sabiam estar nesse local em que o helicóptero subiu.

"O tiroteio sucedia-se cobrindo aqueles matos! Tínhamos chegado ao fim do percurso, e decerto a sermos sempre observados pelo inimigo. Agora era o mais difícil: atacar e fazer a retirada; que é onde se juntam todos os sacrifícios, que são cada vez maiores, na medida em que reduzem as nossas capacidades.

"Os homens que ficaram atrás comigo, contaram que foram obrigados a retirar para fugir ao fogo dos turras, que batiam a zona. Perderam-se... Os outros, que o capitão (de nome, Figueiredo) obrigou a irem contra as trincheiras do inimigo - apontando-lhes a sua arma, com ameaça de disparo, se não avançassem - sofriam dois mortos e três feridos. Não lhes foi possível trazer os mortos (um soldado nativo das milícias e o próprio guia), pois o fogo era intenso.

"Chegaram já de noite, divididos em dois grupos, aqui ao quartel, tendo andado perdidos uns dos outros. Vinham estafados".



10. No final de Dezembro de 1967, o nosso cabo Rei está destacado no Enxalé e a 23 relata a sua viagem a Bafatá, para fazer compras d Natal!

"Fui até Bafatá no dia 23, para comprar bebidas, doces e frutas, para festejarmos o dia de Natal e a passagem de ano. Foi a primeira vez que visitei uma cidade da Guiné!

"Fomos uns quantos de Enxalé, até às margens do rio Geba, percorrendo o rio, de canoa cerca de três quilómetros, até ao quartel do Xime, onde com mais alguns elementos, em viatura auto, nos fizemos à estrada, percorrendo cerca de sessenta quilómetros, passando por Bambadinca, depois a zona de Fá e finalmente Bafatá. Regressámos a Enxalé já de noite, atravessando uma bolanha com dois quilómetros e meio de extensão, e com água a cobrir-nos a cintura.

"Não vou deixar aqui as minhas impressões, sobre aquela cidade, pois que lá não achei nada de especial: somente pequenina! Uma cidade, onde a sua base é o comércio, desfrutando do progresso da guerra, e onde a mesma não faz sentir os seus efeitos destruidores.

"A seguir veio o Natal, vivido no meio de boa disposição, com bastante camaradagem e optimismo entre o grupo. Houve uma ligeira ceia - pois era preciso estarmos atentos ao inimigo - onde não faltou o velho amigo [o bacalhau ? o vinho ?], o vinho do Porto, e demais bebidas, juntamente com bolos, nozes, pinhões, passas de uvas, etc. E até umas filhoses feitas por mim.

"No dia 28, os turras vieram cá visitar-nos, durante alguns minutos, durante os quais nos defendemos, não ocorrendo desse ataque nada de grave a assinalar".


11. Em Fevereiro de 1968, o nosso cabo goza as suas merecidas férias em Bissau, hospedado na pensão Chantre... Nesse mês, a base aérea de Bissalanca tinha sido atacado pelo PAIGC... E em frente a Bissau, Tite é atacada:

"Quando me encontrava numa noite destas, pelas onze horas, a passear junto à área do Porto Marítimo de Bissau, começou-se inesperadamente, como sempre, a ouvir o rebentar de granadas potentes, e a vê-las lançar ao ar as suas mortíferas estilhaçadas incandescentes... Era mais um ataque terrorista a um destacamento na área de Tite".


12. Em 1968, a escrita do diário torna-se mais rara. Em 1 de Junho de 1968 há outra dramática descrição de um contacto com o IN, de que resultou entre outras baixas a captura de um elemento das NT:

"O meu sono e o dos meus camaradas foi perturbado à uma da madrugada! E, passadas duas horas, saímos juntamente com a companhia presentemente cá destacada, para fins operacionais.

"O nosso destino era uma ligeira patrulha nas matas de Seé, a pouco mais de 10 Kms de percurso [do Enxalé]. O andamento foi decorrendo normal e sem incidentes até cerca das seis da manhã, altura em que detectámos algumas folhas junto a uma árvore -a sentinela avançada do inimigo, que tinha ido dar o alarme.

"A seguir era a entrada numa bolanha rodeada de espessa mata, feita em corrida: tínhamos detectado tropas inimigas - que no momento em que eu chegava à zona de morte (vista depois) - faziam a entrada numa mata do nosso lado esquerdo. Esses mesmos acabavam de fazer uma patrulha, ou então deveriam vir dum suspeito acampamento, perto da nossa viatura, imobilizada na emboscada de 10 de Abril (?). Fiz logo fogo, assim como toda a frente do meu grupo, sendo nessa ocasião feridos alguns inimigos (...).

"Entretanto, nós avançávamos pela mata dentro, mas a escassos metros o inimigo esperava-nos! Então o tiroteio foi intenso, com o inimigo a cercar-nos. Tivemos de retroceder. Mas, uma vez fora da mata, os tiros e rebentamentos sucediam-se de todos os lados; eram feridos cinco elementos nossos, entre eles o capitão da outra companhia.

"Depois avançámos ao longo da mata, com as forças inimigas bem instaladas, e a fazer fogo constante sobre nós. Num momento de maior aflição era deixado o capitão e alguns homens nessa dita zona de morte. Eu, nesse momento, estava no meio da bolanha oferecendo um alvo fácil, ouvindo assobiar rajadas e roquetadas, e via os meus companheiros a passarem por mim; pois tinha sido dos primeiros, e só fiquei para trás, na altura em que reparei que todos fugiam em direcção a Bissá, sem se importarem com a rectaguarda. Gritei, pedi que recuassem!... E vi os turras correrem para os que estavam em perigo. (Mais tarde, disse um soldado de nome Pombinho, de quem eu trazia a arma - "os turras avançaram, mandando-lhe levantar as mãos e ordenando que se rendesse". A resposta dele foi uma rajada com uma arma de um ferido, obrigando-os a fugir para o mato).

"O tiroteio continuava com as nossas forças dispersas pelo mato, havendo dois grupos de combate que tinham ido dar uma volta ainda maior, e reagrupando aqueles que ainda estavam na zona de fogo.

"À frente tudo corria, para Bissá. Atrás ficavam duas armas: uma pesada, MG e uma ligeira, G3. E, o pior de tudo, um homem da outra companhia era apanhado à mão pelo inimigo! (Mais tarde falou-nos de Conakry, via rádio, a informar-nos que se encontrava bem)(1).

"Enquanto a maior parte chegava a Bissá, com dois feridos graves a perderem sangue, entre outros, apareciam no local de combate dois bombardeiros, dando em seguida algumas rajadas para a mata, onde nessa altura se encontravam já os grupos de combate, que tinham vindo em socorro, orientando-se pelo tiroteio. Seguidamente aterrava um helicóptero, protegido pelos bombardeiros, para evacuar o capitão e mais dois homens também feridos por uma roquetada, enquanto lhe faziam segurança.

"Partimos de Bissá às duas da tarde, mas só os que podiam andar - lá seriam evacuados quatro homens feridos e dois exaustos - pois ainda lá ficaram três ou quatro que não podiam caminhar. Eu, apesar de ter poucas esperanças em aguentar essas três horas de andamento, abalei disposto a cobri-las, pois trazia no pensamento unicamente o nome de Porto Gole! Fomos encontrar os bombardeiros, a meio do percurso, não tendo [tido] mais chatices com o inimigo. Cansado e sem forças, fui o primeiro a chegar a Porto Gole".


13. O último registo do diário são os preparativos para o regresso a casa, depois de 22 meses de comissão. E as últimas confidências, já escritas no N/M Uíge, em 19 e 20 de Novembro de 1968:

"No mato, enquanto fazia emboscadas ou patrulhas, os apontamentos do meu livrinho, que trazia sempre comigo no dolmã, saíram algumas vezes incompletos e com falta de acção e estilo. A minha escassa formação primária não me proporcionou melhores ideias. Tudo o que ficou escrito, não se tratou senão de simples partes vividas, onde a realidade dava lugar a maiores esclarecimentos. 

"E acabei por impor a mim próprio a chamada memória selectiva, e omitir factos tão ruins que eu nem os conseguia descrever, e com a sua omissão convencer-me de que nunca aconteceram.

"A minha missão não foi das mais árduas, outros houve que sofreram muito mais. Para esses, irá decerto o carinho de todos quantos nos rodearam através das escassas notícias referidas além-mar.

"Nada paga tão imensa alegria, a de podermos regressar ao lar e esquecermos tantas e tantas horas que passámos sem dormir, atentos ao inimigo, e depois de o termos aguentado, acarinharmos os nossos camaradas feridos, ou chorarmos os mortos. 

"A estes últimos, os heróis desconhecidos desta guerra, aqueles que mais ninguém recordará, a não ser os pais, irmãos, esposas e filhos... a estes, a minha modesta homenagem que se resume em desejar-lhes Eterno Descanso. Irmãos de meses difíceis desta tropa, a minha lembrança por vocês perdurará (...) eternamente, pois eu podia ter sido um de vós!"
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Nota de L.G.

(1) Presumo que tenha sido libertado, juntamente com os outros prisioneiros portugueses, na sequência da invasão, em 25 de Novembro de 1969, de Conakry, pelas forças comandadas por Alpoim Galvão (Op Mar Verde).