terça-feira, 2 de agosto de 2005

Guiné 63/74 - P133: O desastre de Cheche, na retirada de Madina do Boé (5 de Fevereiro de 1969) (Humberto Reis)

1. Este documento, que me chegou às mãos através do Humberto Reis, relata a dramática operação em que participou a CCAÇ 2405, sedeada em Galomaro, e pertencente ao BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70), operação essa que tinha em vista retirar as NT da posição insustentável de Madina do Boé, cercada pelo PAIGC (e depois ocupada logo a seguir, no mesmo dia, a 6 de Fevereiro de 1969, após a retirada das NT).

Recorde-se que a companhia que estava em Madina do Boé, há 13 meses, era a CCAÇ 1790, a mesma a que pertencia Gustavo Pimenta, o alferes miliciano que perdeu metade do seu pelotão nessa trágica retirada (ele é o autor do livro sairómeM - Guerra Colonial. Porto: Palimage Editores, 1999) [vd. post de 17 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - CIX: Antologia (7): Os bravos de Madina do Boé (CCAÇ 1790) ]

Em Cheche, já no regresso de Madina, pelas 9 da manhã do dia 6 de Fevereiro de 1969, as NT sofrem a perda de meia centenas de homens e grandes quantidades de material, quando a jangada que fazia a travessia do Rio Corubal se virou. Aparentemente, sem explicação (Já ouvi várias teorias sobre isso, mas essas especulações ficam para mais tarde...).

O desastre terá sido devido a excesso e desiquíbrio de peso. Iam na jangada mais de cem homens (4 grupos de combate mais a tripulação da embarcação), além de viaturas e outro equipamento. Dos que desapareceram, 17 pertenciam à companhia de Galomaro.

Esta operação foi uma das mais dramáticas que se desenrolaram no TO da Guiné, devido não só à pressão do IN (invisível mas sempre ubíquo como Deus) como a outros factores desfavoráveis para as NT (o calor, a falta de água, as condições do terreno, as terríveis abelhas da Guiné que estavam objectivamente ao serviço do PAIGC, as insónias, o stresse, a exaustão física e emocional...).

A minha experiência de operacional diz-me que mais do que dois dias no mato, naquelas terras, era humanamente impossível para um tuga. Andar a pé, no mato, ao sol, entre as 10 e as 16 horas, era uma loucura suicidária. As elevadas temperaturas, à sombra e ao sol, a par da humidade do ar, obrigavam à ingestão de elevadas quantidades de água. As rações de combate eram intragáveis e inadequadas às condições da guerra da Guiné. Apercebendo-se de que provocavam mais sede, os militares deixavam de as consumir. O risco de desidratação e de subnutrição aumentava. O abastecimento de água era sempre crítico e nunca estava garantido. Além disso, tínhamos mais medo das abelhas do que o diabo da cruz.

Nesse ano, no início da estação seca, iriam realizar-se grandes operações de limpeza, como a da Lança Afiada, já aqui descrita (vd. post de 31 de Julho de 2005 > Guiné 63/74 - CXXXI: As grandes operações de limpeza: Op Lança Afiada, Março de 1969) . Dizia-se em Bissau que o então brigadeiro Spínola queria acabar com a guerra em seis meses... O PAIGC percebeu que o homem grande de Bissau não era pera doce, que era um adversário de respeito, mas também não lhe deu tréguas...

O impacto negativo do desastre de Cheche no moral das nossas tropas foi enorme (É curioso que ainda hoje não se fala em Cheche, mas sim em Madina do Boé... Ora o desastre ocorreu justamente em Cheche, na travessia do Rio Corubal, com Madina já para trás...).

Lembro-me, quando ainda periquito, em Contuboel, ouvir os dramáticas relatos de camaradas mais velhos que participaram nesta complexa e vasta operação, a nível de agrupamento. No meu Diário de um Tuga, eu costumava comparar Madina do Boé a Dien Bien Phu, comandada pelo célebre general Giap, onde os franceses perderam a guerra do Vietname.

A comparação era um evidente exagero. Mas é um facto que em Madina do Boé, em 5 de Fevereiro de 1969, começava provavelmente o fim da guerra colonial na Guiné e do nosso império. Esta queda foi também simbólica. Para o PAIGC representou uma vitória retumbante. Não é por acaso que a proclamação unilateral da independência é feita em Madina do Boé, a 24 de Setembro de 1973. Mas deixemos isso para mais tarde e sobretudo para os historiadores...

O texto que se segue tem uma ou outra palavra ilegível. Foi feita a sua recuperação. Impresso a stencil há 35 anos, do documento foi feita uma fotocópia, fornecida ao Humberto Reis por um camarada da CCS do BCAÇ 2852.

Curiosamente, o autor do relatório da Op Mabeco (?), o comandante da CCAÇ 2405, não apresenta quais quer razões, técnicas, militares ou outras, para o afundamento da jangada, limitando-se a descrever, de maneira sucinta e factual, o desastre, como mandava o livro de estilo dos operacionais, nunca deixando que os seus sentimentos ou emoções interferissem com a capacidade de identificar e descrever os acontecimentos mais relevantes ocorridos durante uma operação.

No entatanto, o autor do relatório usa um advérbio de modo (espectacularmente) que me parece deslocado e que até pode chocar o leitor de hoje. O episódio é descrito assim, sucintamente, a seco, sem emoção, sem mais explicações. Por outro lado, neste relatório nada se diz sobre o que ocorreu com os outros destacamentos (já que houve mais baixas, de outras unidades, que iam na jangada):

"Durante a transposição do Corubal a jangada em que seguiam 4 Gr Comb, respectivos comandos e tripulação afundou-se espectacularmente (sic), acerca de um terço da largura do rio, provocando o desaparecimento de 17 militares do Dest F e grandes quantidades de material perdido”.

Era assim a linguagem de pau dos nossos relatórios de operações. No desastre do Corubal, em Cheche, morreram 47 militares portugueses. 47 ou 46, já vi várias versões. A imprensa da Metrópole, na época, deu grande destaque a essa notícia, não obstante a existência de censura (ou, como então se dizia, eufemisticamente, exame prévio).

O Humberto Reis, ao facultar cópia, em suporte digital, deste relatório à nossa tertúlia e ao decidir divulgá-la pela Internet, presta também a sua homenagem aos bravos de Cheche (e aos que resistiram, com coragem e galhardia, ao cerco de Madina do Boé).

Aliás, prestamos aqui, todos nós, a nossa sentida homenagem aos nossos camaradas da CCAÇ 2405 e de outras unidades, como a CCAÇ 1790, que pereceram em Cheche. A sua memória não poderia (nem nunca poderá) ser esquecida. Por razões éticas, omitimos o número mecanográfico dos militares que são referidos no relatório, e abreviamos o seu nome para não serem facilmente identificados. Gostaríamos, no entanto, que eles nos contactassem, se ainda forem vivos, como esperamos. Para o Humberto, por sua vez, vai aquele grande abraço! (L.G.) .


2. Extractos de: Guiné 68-70 . Bambadinca: Batalhão de Caçadores nº 2852. Documento policopiado. 30 de Abril de 1970. c. 200 pp. Classificação: Reservado. Cap. II. 36-38.


Ilustração do cabeçalho do capítulo II, da História do BCAÇ 2852. Documento gentilmente disponibilizado pelo Nova Lamego por volta das 1.30h do mesmo dia, sem qualquer novidade.

Aqui fizeram-se os preparativos finais da organização da coluna que partiu às 5.30h do dia 2 [D]. Abre [o autor do relatório] um parêntesis para discordar do pormenor da organização da coluna: os meus condutores e mecânicos tiveram que conduzir e dar assistência técnica a viaturas que não lhe pertenciam e das quais desconheciam as mazelas.

Daqui resultaram perdas de tempo inúteis e uma tremenda confusão resultante do facto de os atiradores terem guardado parte dos seus haveres e utensílios militares em viaturas que supunham pertencer às unidades e que, sem que se saiba porquê, foram trabalhar para unidades diferentes.

A coluna saiu de Nova Lamego para Cajadude [vd mapa local de Cheche] com o pessoal totalmente embarcado e atingiu-se esta povoação por volta das 9.00h sem qualquer problema.

A partir de Cajadude a coluna progrediu com guardas de flancos tendo o Dest F colaborado na guarda da rectaguarda da coluna fazendo uma progressão apeada que não estava prevista.

Atingiu-se o Cheche por volta das 17.00h (sempre com uma cobertura aérea excelente). Imediatamente os Dest D e F fizeram a transposição do [Rio] Corubal e foram ocupar as posições estratégicas previstas.

Já escurecia e o Dest D levava 1 minuto de avanço sobre o Dest F. Subitamente o 1º Pel[otão] revelou achar estranho algo que se passava à nossa direita, parecendo-lhes ter visto elementos estranhos. Por outro lado o guia assegurou tratar-se de turras pelo que a Companhia tomou posições de combate, lançando-se ao solo e imobilizando-se.

Seguiram-se [dois disparos rápidos ? ilegível] de morteiro (os clarões foram facilmente visíveis quando as granadas saíram à boca da arma). Foram tiros curtos na direcção sudoeste, e os rebentamentos deram-se próximo do local que o Dest F iria ocupar daí a momentos.

O IN não voltou a manifestar-se mas obrigou-nos a uma vigilância nocturna permanente e a uma mudança de posição por volta das 23.00h. Às 20.00h ouviram-se na direcção oeste dois tiros que me pareceram de arma nossa fazendo fogo de reconhecimento.

Pelas 5.30h [do dia 3, D + 1] mandou-se um Pelotão a Cheche buscar um Pelotão do Dest E que fazia guarda imediata às viaturas e que eu devia levar até Madina. Pelas 6.30h dirigi-me à zona do Dest E onde se organizou a coluna com o Dest F à frente e uma guarda de flanco avançada e o Dest D atrás igualmente com guarda de flanco.

Iniciei o movimento guiado com carta e bússola porque a marcha foi feita a cerca de 200 metros (mínimo) da estrada. O meu objectivo era surpreender o IN pela rectaguarda tanto mais que os aviões me anunciaram haver possibilidade de sermos emboscados. Cerca 1000 [10.00h ] o Dest F sofreu um violento ataque de abelhas e teve que recuar cerca de um quilómetro para se reorganizar de novo.

Um soldado, em consequência, ficou imediatamente fora de acção. Foi pedida a respectiva evacuação bem como a de outro soldado que apresentava sintomas de insolação. As evacuações fizeram-se para Nova Lamego dos 1ºs cabos (…) Carlos G. Machado, (…) Agostinho R. Sousa, e dos soldados (…) José A. M. S. Ferreira, (…) Manuel N. Parracho, (…) Benjamim D. Lopes, (…) Fernando A. Tavares, (…) Cândido F. S. Abreu, (…) SAntónio S. Moreira e, para Bissau, O 1º CABO (…) Adérito S. Loureiro. O héli desceu mais tarde para reabastecer o pessoal de água.

Reiniciada a marcha, sofremos segundo ataque de abelhas que inutilizaram mais uma praça para quem teve de ser pedida mova evacuação. Entretanto. Eram 14.30h, e mais 2 soldados, esgotada a sua provisão de água, apresentavam sintomas de insolação. Foram evacuados conjuntamente com 2 praças do Dest D que apresentavam sintomas semelhantes (vómitos, intensa palidez, olhos dilatados, respiração frenética).

O Dest D passou para a frente e reinicou-se a marcha, sempre fora da estrada até à recta que leva a Madina. Nada mais se passou além do sofrimento intenso das tropas por via do calor. O DEst D foi reabastecido de água. Atingimos Madina por volta das 19.00h desligados do Dest D que prosseguiu a sua marcha quando [eu tive? ilegível] que parar para reajustar o dispositivo e tratar os mais debilitados (4 praças e 1 furriel).

Houve descanso em Madina e tomou-se uma refeição quente. No dia 4 (D + 2) o Dest F dirigiu-se para [T … Cumbera ?, ilegível] ocupando a posição 3 que atingiu sem dificuldade por volta das 11.00h. Alternadamente ocupou-se as posições 3 e 4 de acordo com o plano.

Em D + 3 [5 de Fevereiro de 1969] por volta das 7.30h recebemos ordens do PCV [Posto de Comando Volante] para a abandonar a nossa posição e seguir ao encontro da coluna. Uma hora depois atingimos o campo de aviação de Madina onde fomos reabastecidos de água e r/c [rações de combate].

Pelas 9.00h a coluna pôs-se em movimento e meia hora depois 4 carros da rectaguarda tiveram um acidente. Não obstante, a coluna prosseguiu e o pessoal do Dest F mais os mecânicos resolveram a dificuldade.

Entretanto, o final da coluna pôs-se em movimento acelerado para apanhar as viaturas da frente e deixaram a guarda da rectaguarda isolada no mato, num momento particularmente difícil em que precisávamos evacuar 2 soldados vencidos pelo esgotamento físico e nervoso (2 noites seguidas sem dormir, ataque de abelhas em D +1, intenso calor). O Comandante da coluna ordenou que se fizesse a evacuação e o reabastecimento de água.

Feitos estes, iniciou-se a marcha e abreve trecho tomámos contacto com a coluna e tudo correu normalmente até ao Cheche. A cobertura aérea pareceu-me impecável. Próximo de Cheche recebi ordens para ocupar a posição que ocupara que tivera em D / D+1 porque o Exmo. Comandante da Operação entendeu dever poupar alguns quilómetros ao Dest F e D, bastante atingidos pela dureza dos respectivos percursos.

Essa foi a razão porque não transpus o [Rio] Corubal em D + 3 [ 5 de Fevereiro] só o vindo a fazer em D + 4 [6 de Fevereiro] por volta das 9.00h. O IN continua sem se manifestar (ou sem se poder manifestar).

Durante a transposição do Corubal a jangada em que seguiam 4 Gr Comb, respectivos comandos e tripulação afundou-se espectacularmente acerca de um terço da largura do rio, provocando o desaparecimento de 17 militares do Dest F e grandes quantidades de material perdido.

Por voltas das 10.00h de D+ 4 [6 de Fevereiro] saímos de Cheche para Cajadude [vd. mapa local de Cheche] que atingimos por volta das 16.30h com o pessoal deste Dest embarcado. Descansou-se e em D + 5 [7 de Fevereiro] às primeiras horas a coluna pôs-se em movimento para Nova Lamego que foi atingida por volta das 11.00h. Às 12.00h as tropas ouviram uma mensagem do Exmo. Comandante-Chefe que se deslocou propositadamente para a fazer.

Permaneci em Nova Lamego para organizar a coluna do dia seguinte. Às primeiras horas de D + 6 [8 de Fevereiro] iniciei o movimento para Galomaro onde cheguei cerca das 10.30h.

segunda-feira, 1 de agosto de 2005

Guiné 63/74 - P132: Cem pesos, manga de patacão, pessoal! (2)

Moeda de 1 escudos da Guiné. Comemorativa dos 500 anos de descoberta da Guiné, em 1446, por Nuno Tristão

© Transmontana, em Bafatá ? E uma passagem de avião, para virmos a casa, de férias ? E o famigerado Hotel da Cona Rachada onde a gente ficava, de passagem, em Bissau ? Eu pelo menos fiquei uma vez ou duas, se não me engano... (Ou era outra pensão ainda mais reles ? Recordo-me que um dia rebentaram-me a mala e fanaram-me o uísque)... Tu tinhas os teus conhecimentos em Bissau...

Moeda de 10 escudos da Guiné. © Afonso Sousa (2005).


Como tens uma boa memória, pode ser que te lembres disso... Eu já nem me lembro sequer de quanto ganhávamos... Cerca de cinco notas de conto, não ? Os alferes, sete; os capitães, não faço ideia... E os nossos soldados africanos, que eram praças de 2ª ? Tenho ideia que ganhavam seiscentos pesos, mais outro tanto (25 pesos / dia) por serem desarranchados... Como eram islamizados, não podiam comer a comida do tuga, pelo que foram mais tarde autorizados a receber o subsídio de alimentação... Mandaram-me isso à cara, no Xime, quando morreu o Cunha e o restante pessoal da CART 2715... Os sacanas tiveram um momento de hesitação, antes de aceitarem ir comigo resgatar os corpos dos nossos camaradas mortos, à cabeça da coluna (vd post de 25 de Abril de 2005 > Guiné 69/71 - VII: Memórias do inferno do Xime (Novembro de 1970):

- Pessoal africano só ganha seiscentos pesos! - Que é como quem diz: vai lá tu, que os mortos são do vosso sangue, são do vosso chão, são da vossa terra, são tugas... Foi o único momento, em toda a minha comissão, em que vi os nossos soldados terem medo...

Moeda de 5 escudos da Guiné. © Afonso Sousa (2005).


De qualquer modo, o que eram 600 escudos guineenses (pesos) naquela época ? Apenas o suficiente para comprar, na loja do libanês ou do tuga, um saco de arroz importado, e para alimentar (mal) uma família extensa, reunida na sua morança (muitos deles, tinham pelo menos duas mulheres que trouxeram das suas terras para Bambadinca).


2. Resposta do (senhor engenheiro) Humberto Reis:

Já não me lembro da maioria dos preços mas tenho uma ideia de que uma viagem na TAP em Março de 1970, Bissau-Lisboa-Bissau, me custou à volta de 6 contos e nós ganhávamos cerca de 5.

O pré dos soldados era de 600 pesos os de 2ª, 900 pesos os de cá e os cabos 1200 pesos. Eu sei dessa diferença pois tinha no meu Gr Comb o Arménio (o vermelhinha) que foi como soldado, visto que levou cá uma porrada (foi apanhado numa rusga pela PM no Porto quando já estávamos no IAO em Santa Margarida) que lhe lixou a promoção.

Em Bissau, como normalmente ficava instalado na BA12 [Base Aérea nº 12] nos alojamentos dos pilotos, pois tinha lá malta minha conhecida de cá, não sei qual o preço das pensões, e do bifinho na Transmontana de Bafatá também já não me lembro.

Sei bem, isso não me esqueceu, que o visque era mais barato que a cervejola : 2,50 simples contra 3,00 ou 3,50, além de que dava direito, o whisky, a gelo. As cervejas nunca estavam suficientemente geladas pois os frigoríficos da messe, a petróleo, não tinham poder de resposta para a quantidade de pedidos.

Não se riam, meus amigos, com a expressão dos frigoríficos "a petróleo" pois era assim mesmo que funcionavam, visto que o gerador eléctrico [de Bambadinca] só trabalhava à hora de almoço e depois durante a noite. Disto, da produção de frio/ar condicionado falo de cátedra pois é a minha vida profissional (eu costumo dizer que vivo do ar condicionado).

Aquele sistema de produção do frio a partir de uma fonte quente ainda hoje é utilizado, chama-se de absorção, e utiliza como refrigerante a água, ao contrário dos sistemas mais vulgarizados que utilizam alguns gases, mais ou menos poluentes da camada de ozono. Posso dar-vos como exemplo alguns dos sistemas de produção do frio para o ar condicionado, que conheço pois acompanhei de perto: Estalagem da Srª das Neves, no nordeste transmontano, do Hospital de Matosinhos, dos edifícios do BCP-Millennium no Tagus Park em Oeiras, do Hospital de Mirandela, etc., utilizam sistemas destes.

Um abraço. Humberto Reis

3. Obrigado, Humberto, por me refrescares a memória. Já agora fica com este apontamento: trata-se de um interessante "Rol das despesas mensais de um soldado" que nos permite reconstituir, de certo modo, o quotidiano e o padrão de consumo de um soldado-tipo. Não tenho a certeza se a stituação se reportava à Guiné, Angola ou Moçambique. Para o caso, também não interessa muito. De qualquer modo diz respeito a 1973.

Encontrei esta informação numa nota de despesa, fotografada, que consta de um livro de que é primeiro autor o meu amigo e nosso contemporâneo de Contuboel, o Renato Monteiro, da CART 11, o homem da piroga no Geba:

Despesa do 3/1973:

Cerveja > 54 x 6$00 = 324$00
Cerveja > 24 x 4$00 = 92$00
Floid (sic) = 55$00
Pasta p/ dentes = 18$00
1 frasco de cola = 30$00
1 bloco de escrever = 15$00
1 lata de fruta = 11$00
1 garrafa de Porto = 55$00
Sabão = 7$00
Selos = 30$00
Envelopes = 8$00
Fotos = 44$00
Carne patoscada (sic) = 77$00
Vagaço (sic) = 14$00
1 lata de leite = 8$00
FIO = 750$00
Despesa total = 1538$00

1/4/1973
Assinatura ilegível

(1) Monteiro, R.; Farinha, L. - Guerra colonial: fotobiografia. Lisboa: Círculo de Leitores / D. Quixote. 1990. 223.

4. Estes valores acima referidos são já reveladores da crise que, no 1º trimestre de 1973, afectava já a economia portuguesa bem como das pressões inflacionistas. Repare-se, em todo o caso, que numa despesa mensal de 788$00, pouco restava do pré do soldado do Ultramar, uma parte do qual era de resto depositado na Metrópole. Do total do consumo mensal (788$00), 52.8% ia para a cerveja! Havia dois tipos de garrafa: a de 0,6 litros (a chamada bazuca, na Guiné) e a de 0,33 l.

A moeda da República da Guiné Bissau. 5 pesos (1977) (Frente). © Afonso Sousa (2005).

Admitindo que esta era a despesa média da generalidade das nossas praças em África, o consumo de cerveja diária, per capita, seria então superior a um litro, ou seja, mais de 40 litros por mês: (24 x 0,33) + (54 x 0,6)=7,92 + 32,4= 40,32 litros. Ao fim de um ano, seria o equivalente a 460 litros...

Há ainda a acrescentar o consumo de outras bebidas alcoólicas (8.8%), como o Porto, o bagaço e o uísque (este último consumido, diaramente, sobretudo pelos oficiais e sargentos). As duas rubricas, somadas, perfazem um total de 60%, que seria quanto muitos soldados gastavam com a droga do quotidiano da guerra da Guiné, que era o álcool. A última coisa que podia faltar num aquartelamento era a cerveja, o vinho e outras bebibas alcoólicas. Também havia os vicidados da coca-cola...

Para os fumadores, haveria ainda que considerar uma despesa mensal de 50$00 a 100$00 (sabendo-se que um maço de tabaco, de tipo SG Filtro, custava 2$50, segundo a preciosa informação do Humberto Reis). Sem contar com despesas extras (uma escapadela a Bissau ou a Bafatá), deveria ainda considerar-se o patacão destinado à lavadeira, embora muitos soldados poupassem neste item, lavando a sua própria roupa.

A moeda da República da Guiné Bissau. 5 pesos (1977) (Verso). © Afonso Sousa (2005).

De notar, por outro lado, o peso que o correio tinha nas despesas mensais do soldado: neste caso, cerca de 16% considerando itens de despesa com o correio o frasco de cola, o bloco de escrever, os selos, os envelopes e as fotos (total: 127$00). Cerca de 10% da despesa tem a ver com a higiene pessoal (80$00) e o restante (cerca de 12.2%) com a alimentação (96$00). O petisco era também uma forma de reforçar a solidariedade entre camaradas e ajudar a passar os dias da comissão que nunca mais chegava ao fim...

O pré do soldado (que em 1973 não deveria muito diferente de 1969/71: 900$00, mais o prémio de especialidade que não deveria ultrapassar os 225$00) não chegaria, nalguns meses, para cobrir as despesas essenciais. Daí ele ter que recorrer ao fiado, ou seja, à boa vontade do sargento da companhia que explorava o bar e cantina (neste caso o fiado é o equivalente à despesa de um mês: 750$00!). Em último caso, mandava uma aerograma para a família lhe enviar, no correio mais próximo, mais uma ou duas notas de cem.

domingo, 31 de julho de 2005

Guiné 63/74 - P131: As grandes operações de limpeza (Op Lança Afiada, Março de 1969) (Luís Graça)

Excertos do Diário de um Tuga. Texto de Luís Graça

Contuboel. 15 de Julho de 1969 (revisto)

1. Capri, c’est fini!... Ainda te lembras da velha canção do verão de há três anos, em Lisboa (1) ? Pois é, estão a chegar ao fim as férias de Contuboel, o dolce far niente da tropa tropical... Cheguei à Guiné há dois meses e meio. E ainda não vi, não senti nem cheirei a guerra (a não ser talvez no percurso, em LDG, no Rio Geba, a caminho do Xime e depois no troço Xime-Bambadinca, no dia da nossa partida de Bissau para Contuboel: confesso que havia alguma tensão nos rotos dos periquitos...).

© Humberto Reis (2005).

Os alegres dias de Contuboel (2 de Junho a 18 de Julho de 1969). Legenda do fotógrafo: "Em 10 de Julho de 1969, numa canoa no Geba a caminho de Sonaco... Reconhecem-se da esquerda para a direita o Tony Levezinho, eu, o Moreira, o Rocha, condutor, o Rodrigues, já falecido [ todos eles, quadros metropolitanos da CCAÇ 12], e o djubi, manobrador da canoa, de pé".

Acabámos os exercícios finais da instrução de especialidade, que decorreram entre 6 e 12 de Julho, a 10 km a norte de Contuboel. Recebemos a visita do homem grande de Bissau (2). Consta que já nos deu destino, a nós e aos nossos queridos nharros (3).

Acabaram-se os passeios tranquilos pelo Rio Geba, de piroga. As conversas, ao fim da tarde, debaixo do poilão, com os djubis, as bajudas e as mulheres grandes e os homens grandes. As conversas intelectuais com o meu amigo Monteiro (4). Os meus vizinhos aldeões com quem gostava de conversar. As pacatas idas às hortas das proximidades para comprar bananas e abacaxis...

Vou ter saudades de Contuboel, das frondosas margens do Geba, da paisagem luxuriante, das amáveis lavadeiras mandingas, de mama firme, que encontrávamos pelo caminho. Mas, como diz a canção, é muito pouco provável cá um dia voltar. Em contrapartida não penso neste momento em Lisboa nem no meu regresso. Contuboel acabou: há agora muitos milhares de quilómetros para palmilhar, numa prova que é, para mim, para todos nós, o grande teste de resistência... e de sobrevivência.

Vou ter saudades das histórias que a velhice de Contuboel nos contava. Madina do Boé, Fiofioli… Nós, os periquitos, ouvimos com respeito a velhice e é, com natural apreensão, que nos preparamos para montar a tenda algures no chão fula. Dizem-me que marchamos, dentro de dias, para Bambadinca. Não gostei do sítio quando por lá passei, há um mês e meio. Ainda cheirava a pólvora... Em contrapartida, o aquartelamento é novo, oferecendo boas condições de alojamento, pelo menos para os oficiais e sargentos.

2. Março de 1969. Durante dez dias e dez noites, de 8 a 18 de Março, o triângulo Xime-Bambadinca-Xitole é passado a pente fino: 1300 homens, além da aviação e da artilharia, estão empenhados na grande operação de limpeza a que foi posto o nome de código de Lança Afiada (não tenho ideia se a marinha esteve envolvida, e em especial o corpo de fuzileiros, cortando a possível retirada do In pelo Rio Corubal).

Estava-se então em plena época seca: o capinzal já não resiste às granadas incendiárias e as clareiras, abertas pelas queimadas na savana arbustiva, deixam entrever a imensa mole de vegetação tropical para além da qual fica tabanca di bandido, em florestas sombrias onde coabitam dginé e najoré, e que na algaraviada dos meus nharros quer dizer irãs, diabos, diabretes, duendes e toda a espécie de espíritos (bons e maus)…

O objectivo da operação é, como sempre, aniquilar, capturar ou, no mínimo, expulsar o IN, destruir todos os seus meios de vida e recuperar a população sob o seu controlo... (À força, se a dita população não quiser voltar a viver sob a nossa bandeira e a nossa soberania).

A ideia de manobra é simples: da Ponta do Inglês (antigo aquartelamento das nossas tropas, abandonado em finais de 1968, se não me engano) à mata do Fiofioli, da estrada Mansambo-Xitole à Ponta Luís Dias (outrora um florescente entreposto comercial à beira rio) um enorme cilindro compressor irá empurrando tudo o que for balanta, beafada e bicho do mato para o Rio Corubal onde os esperam os pássaros de fogo dos tugas, os hipopótamos, os jacarés, as formigas carnívoras, os jagudis...

Oficialmente o dispositivo do IN na área compreendida entre a linha geral Xime-Xitole e a margem direita do Rio Gorubal foi desarticulado — um eufemismo, de resto, muito utilizado nos nossos relatórios militares para justificar resultados mais morais e psicológicos do que materiais em operações desta envergadura, e que quando muito só se realizam de dois em dois anos (Na verdade, não é todos os dias que nos podemos dar ao luxo de mobilizar o equivalente a um agrupamento, ou seja, três batalhões).

Na prática, os roncos não foram espectaculares: para além de algumas toneladas de arroz destruídas e de umas tantas casas de mato ou cubatas queimadas, enfim, para além de alguns contactos com o IN, sempre à distância, “o que contou sobretudo foi termos penetrado em santuários do IN tão míticos como a mata do Fiofioli” (diz-me um furriel da velhice com quem gosto de conversar do passado recente). Fico a saber que o Fiofioli é um sítio tão temível para os tugas da Zona Leste como, noutros sectores, o Boé, o Cantanhez, o Morès, o Choquemone, o Caresse ou a ilha do Como.

- Afinal, nem hospital nem enfermeiras cubanas nem sequer o fantasma do Nino vestido à cowboy - comentava, entre irónico e desapontado, à mesa da lerpa, um outro furriel da velhice de Contuboel - Foi só por dizer que estivemos na mata do Fiofioli… Nem sequer fiz o gosto ao dedo!

O que eu posso concluir destas conversas entre periquitos e velhinhos, no meio de rodadas de cerveja e de uísque, é que depois do inferno de Madina do Boé, a Lança Afiada teve um certo sabor a vitória para as NT.

0 que se passara, entretanto, é que, na impossibilidade de resistir abertamente à contra-penetração das NT, a guerrilha ensaiara algumas manobras de diversão pelo fogo, enquanto as populações sob o seu controlo, previamente alertadas, se metiam na arca de Noé (quiçá com toda a bicharada do mato, os porcos, as galinhas), cambando o Rio Corubal e pondo-se a salvo na outra margem... Em suma a velha táctica dum conhecido mestre escola chinês: “dispersar quando o inimigo ataca, reagrupar quando o inimigo retira”…

Um mês depois, e quando os tugas voltavam a dormir de cu para o ar, preparando-se para hibernar nos seus campos fortificados durante a estação das chuvas, os diabos negros da floresta desencadeavam uma série de acções que culminariam no ataque em força, inesperado e espectacular, a Bambadinca, a sede do comando do sector L1 até então inviolável...

Foi a 28 de Maio de 1969, à noite, estávamos nós a chegar a Bissau. Quando passámos por Bambadinca, oito dias depois, a caminho de Contuboel, não se falava de outra coisa… "Podíamos ter sido todos mortos ou apanhados à unha, tal era a bandalheira em que estava o quartel" - confidenciou-me o meu conterrâneo e amigo, o Agnelo, 1º cabo de transmissões da CCS... De facto, faziam-se quartos de sentinela... sem armas!

Ao que soube mais tarde, o comandante e o seu adjunto (5) apanharam uma porrada do Spínola e seguiram com guia de marcha para Bissau...
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Notas (L.G. - 2005)

(1) Canção, romântica, então em voga, nos idos anos de 1965/66, do francês Hervé Villard (n. 1946). A letra era típica da época, delicodoce, inócua, pacífica, para consumo de adolescentes apaixonados, quando ainda se ouviam canções francesas românticas na nossa rádio e os copains e as copines da França do acordeão e do Charlles de Gaulle preparavam para incendiar Paris: "Nous n'irons plus jamais,/ Où tu m'as dit je t'aime,/ Nous n'irons plus jamais, /Comme les autres années, /Nous n'irons plus jamais, /Ce soir c'est plus la peine, /Nous n'irons plus jamais, /Comme les autres années; Capri, c'est fini, /Et dire que c'était la ville / De mon premier amour, /Capri, c'est fini, /Je ne crois pas /Que j'y retournerai un jour" ...

(2) Forma carinhosa ou reverente como era tratado o general Spínola pela NT e pela população local que convivia connosco.

(3) Termo algo depreciativo (tal como tugas, sinónimo de brancos de Portugal) com que tratávamos os africanos da Guiné. Não se pode dizer que o termo fosse explicitamente racista. Era uma expressão de caserna.

(4) Furriel miliciano Monteiro, da CART 2479 / CART 11, que seguiu para Pitche, a nordeste de Nova Lamego (ou Gabu), com os seus africanos (soube-o há dias), na mesma atura em que nós (CCAÇ 12) seguimos para Bambadinca. Estes africanos fizeram a recruta e a instrução de especialidade juntamente com os nossos. Na altura Contuboel funcionava co,mo um centro de instrução militar. Nunca mais o tornei a ver, ao Monteiro. Espero fazê-lo em breve. Graças à Net, foi ele que me localizou, embora fosse eu a procurá-lo. Um ciber-abraço, daqui, para o Renato Monteiro!

(5) BCAÇ 2852 (1968/70)

sábado, 30 de julho de 2005

Guiné 63/74 - P130: A CAÇ 12 em operação conjunta com a CART 2339 e os paraquedistas (Agosto de 1969) (Luís Graça)

Extractos de: História da CCAÇ 12: Guiné 69/71. Bambadinca: Companhia de Caçadores nº 12. 1971. Cap. II. 8-11.

Resumo: A CCAÇ 2590/CCAÇ 12 [ composta por quadros metropolitanos, chegados à Guiné em finais de Maio de 1969 (1), e por soldados africanos, praticamente todos oriundos do chão fula que tinham feito a sua instrução básica e de especialidade em Contuboel (2) ] é dada como operacional, a partir de 18 de Julho de 1969, sendo colocada em Bambadinca (Sector L1), como unidade de intervenção, ficando pronta a actuar às ordens de qualquer um dos sectores da Zona Leste da Guiné (em especial dos Sectores L1, L3 e L5).

Durante a sua primeira comissão (1969/71), actou sobretudo no Sector L1 (Bambadinca, correspondente ao triângulo Bambadinca-Xime-Xitole, mas incluindo também, a norte do Rio Geba, o regulado Cuor onde começava o famoso corredor do Morès...). A CCAÇ 12 foi uma das primeiras unidades da nova força africana, criada por Spínola.

No subsector de Galamaro (Sector L3) a CCAÇ 12 tem o seu baptismo de fogo e os seus primeiros feridos graves, a 24 de Julho de 1969, em Madina Xaquili (3). Nos meses seguintes, em plena época da chuva, irá ter uma intensa actividade operacional. Em Setembro, no decurso da Op Pato Rufia (assalto a uma acampamento avançado do IN na zona da Ponta do Inglês), a CCAÇ 12 sofre o seu primeiro morto.

No texto a seguir relata-se a actividade operacional relativa ao mês de Agosto de 1969, donde se destaca a Op Nada Consta, com forças da CART 2339 (Mansambo) e tropas paraquedistas, no decurso da qual é feito um prisioneiro (Malan Mané) e ferido gravemente o comandante Mamadu Indjai.


2. Agosto/69: Operação conjunta com forças paraquedistas

0 ataque a Candamã [, tabanca em autodefesa, atacada durante mais de duas horas até ao amanhecer do 30 de Julho, ] (1) surgiu, de resto, na sequência do recrudescimento da actividade IN no tradicional triângulo Xime-Bambadinca-Xitole, após a Op Lança Afiada.

Nesta operação que se realizou, de 8 a 18 de Março último, a nível de agrupamento, estiveram empenhados 1.300 homens, tendo as NT penetrado em santuários do IN, como a mata do Fiofioli. Embora desarticulado o seu dispositivo na área compreendida entre a linha geral Xime-Mansambo-Xitole e a margem direita do Rio Corubal, o IN não deixaria, no entanto, de desencadear um mês depois uma série de acções de guerrilha que culminariam com um ataque clássico ao aquartelamento de Bambadinca, em 28 de Maio.

Só no subsector de Mansambo, o IN tinha até então montado 2 emboscadas (1 com mina comandada) às NT, flagelado 5 vezes o aquartelamento de Mansambo e atacado em força o destacamento de milícias de Moricanhe (retirado a seguir). Desta vez, porém, tudo indicava que o IN se tinha instalado no regulado do Corubal, dispondo duma cadeia de acampamentos temporários que lhe dava ligação às suas bases mais recuadas, junto ao Rio Corubal (4).

O triângulo Bambadinca-Xime-Xitole. Pormenor do mapa do Sector L1. © Luís Graça (2005).



A missão da CCAÇ 12 era, portanto, detectá-lo. Assim, a 2 de Agosto, 3 Gr Comb (1º,3º e 4º) voltam a Candamã para um patrulhamento ofensivo na região de Camará. Estava-se então no auge das chuvas, o que tornava difícil a detecção de vestígios humanos mo mato. Descobriu-se, no entanto, o trilho que o IN utilizara na retirada do ataque à tabanca de Candamã e que ia dar a região de Galo Corubal/Biro(Op Guita I).

A 4 de Agosto, efectua-se a Op Belo Dia em que participa o 2º Cr Comb com forças da CART 2339 (Dest A) para abertura do itinerário Mansambo-Xitole, interdito deste Novembro de 1968, altura em que uma coluna logística do BCAÇ 2852 sofreu 2 emboscadas (a primeira com mina comandada) no regresso a Bambadinca, a cerca de 2km da Ponte dos Fulas, tendo prosseguido com apoio aéreo (5). Na Op Belo Dia, não foram encontradas minas nem abatizes mas o IN emboscou 1 Gr Comb do Dest B na Ponte dos Fulas quando estava a reabastecer-se de água.

Entretanto, de 5 a 17 de Agosto, o 4º Gr Comb foi reforçar o Sector L2 , sendo destacada 1 secção para Saré Gana e 2 para Sare Banda (sub-sector de Geba). Dias antes o IN fizera um ataque malogrado à tabanca em autodefesa de Sinchã Sutù (6).

A 6 de Agosto, 2 Gr Comb levam a efeito uma batida conjugada com emboscada na região de Candamã, não tendo encontrado quaisquer vestígios (Op Gungadim). Porém a 11, numa nova batida efectuada pelo 3º Gr Comb e e Pel Rec Inf da CCS/BCAÇ 2852 detectaram-se sinais muitos recentes do IN. De regresso a Candamã, as NT foram flageladas à distância com morteiro 60 e LGFog [lança-granadas-foguetes], da direcção de Camará (Op Gancho).

A 12, a CCAÇ 12 realiza a Op Gancho II. E a 15, a Op Gancho III, juntamente com forças da CART 2339 (7), para uma batida à zona de Áfia/Camará [vd. mapa do Sector L1]. Às cinco da manhã, aquela tabanca em autodefesa (reforçada com 1 secção de um pelotão de Mansambo) tinha sido atacada pelo mesmo grupo IN que fora a Candamã, sofrendo a população 3 mortos e 9 feridos.

Vestígios deixados pelo IN (peugadas no capim e terra remexida pelo prato-base do morteiro 82) durante um alto ou mais provavelmente no ponto de reunião, levariam entretanto as NT à localização dum acampamento, situado na mata a sul do Rio Biesse onde foram surpreendidas pelo ruído do pilão, tendo avistado alguns elementos armados na orla da bolanha. Os efectivos das NT não eram, porém, suficientes para o golpe de mão imediato e, de resto, a sua missão era apenas de reconhecimento, pelo que retiraram o mais cautelosamente possível.

Três dias depois, e com base no reconhecimento que se efectou à área, forças paraquedistas fariam um heli-assalto ao acampamento em referência, numa operação conjunta do Sector L1 e COP 7 [Bafatá] (Op Nada Consta) (8).

Op Nada Consta > Desenrolar da acção:

Enquanto as forças do Sector L1 ficavam emboscadas nas proximidades da bolanha do Rio Biesse (a leste, a CCAÇ 12 com 3 Gr Comb dispostos em semicírculo; a norte, o Pel Caç Nat 53; e a oeste, forças da CART 2339), veio a primeira vaga de paraquedistas que foram colocados na ponta oeste da bolanha, penetrando imediatamente na espessa mata que se estende para sul.

Cinco minutos depois, é capturado um elemento IN armado de RPG-2 (9). Sucederam-se mais duas vagas de helicópteros, transportando outros tantos Gr Comb dos paras e a mata passou a ser percorrida de norte para sul.

0 prisioneiro [Malan Mané, de seu nome, de etnia mamdinga], entretanto, não dera nenhuma informação que permitisse levar à localização de qualquer arrecadação [de material] ou acampamento importante. Confessou apenas que no local se encontravam 80 homens (10), sob o comando de Mamadu Indjai, dispersos em pequenos grupos pela mata, e com quem os paras estabeleceriam depois contacto, fazendo 2 mortos e capturando 3 armas automáticas.

0 mau tempo não permitiu o bombardeamento prévio da zona na direcção N-S, pelo que o IN conseguiu fugir da zona do heli-assalto, não obstante o fogo do helicanhão. Na retirada, porém, um grupo cairía numa emboscada afastada que forças da CART 2339 tinham montado no itinerário Mansambo-Xitole, próximo da ponte sobre o Rio Bissari, e em resultado da qual ficaria gravemente Mamadu Indjai (soube-se mais tarde).

0 IN retirava na direcção de Biro onde os paras foram no dia seguinte, na exploração imediata das informações dadas pelo prisioneiro [Malan Mané], capturando mais material (11) (12).

Entretanto, a 30 de Agosto, o 1º, o 3º e 4º Cr Comb, num patrulhamento ofensivo à região do Rio Biesse, Demba Ioba, Sambel Bare, Sinchã Mamadi e estrada de Mansambo, percorreriam 6 acampamentos IN recém-abandonados, ao longo dum trilho principal que conduzia a região de Biro, atravessando o itinerário Mansambo-Xitole.

No primeiro acampamento, encontrou-se o cadáver dum chefe IN identificado pelo prisioneiro que servia de guia, e que teria morrido em consequência de ferimentos recebidos em combate, durante a Op Nada Consta. Em escassos dias, as formigas carnívoras e os abutres tinham-no reduzido a um esqueleto desconjuntado.

Vestia uma espécie de dolmen impermeável que ainda estava em bom estado, assim como as botas... Num outro acampamento a seguir, foram encontradas um maço de cartas escritas em árabe e uma planta do aquartelamento de Mansambo, com as posições da artilharia, localização dos abrigos-casernas, espaldões, etc.

Em virtude do guia se ter perdido, os 3 Gr Comb só atingiram a estrada de Mansambo no dia seguinte de manhã, tendo regressado juntamente com o 2º Gr Comb e forças da CART 2339 que haviam ficado emboscados no trilho de Biro, paralelamente à estrada. Até Mansambo, verificaram-se numerosos casos de esgotamento físico entre os Gr Comb da CCAÇ 12 que efectuaram a Op Gancho IV.

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Notas (L.G.):

(1) Vd. pots de 23 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LXXVI: (i) A bordo do Niassa; (ii) Chegada a Bissau (Excertos do Diáirio de um Tuga...).

(2) Vd. post de 28 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LXXXVI: No 'oásis de paz' de Contuboel (1969) (Excertos do Diário de um Tuga > Contuboel, 20 de Junho de 1969).

(3) Vd. post de 29 Junho 2005 > Guiné 69/71 - LXXXVIII: O baptismo de fogo da CCAÇ 12, em farda nº 3, em Madina Xaquili (em que se relata as primeiras semanas da actividade operacional da CCAÇ 12, em finais de Julho de 1969).

(4) Galo Corubal, Mina/Fiofioli, Mangai, Ponta Luís Dias... /vd. mapas do Xime, Xitole e Fulacunda)

(5) Vd. post 20 Maio 2005 > Guiné 69/71 - XXII: O inferno das colunas logísticas na estrada Bambadinca-Mansambo-Xitole-Saltinho

(6) Vd. posts de 30 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XXXII: As aldeias fulas em autodefesa ; Guiné 69/71 - XXXI: Sare Ganá, a última tabanca de Joladu (Excertos do Diário de um Tuga...).

(7) Unidade de quadrícula de Mansambo, pertencente ao BCAÇ 2852 (1968/70), com sede em Bambadinca.

(8) CCAÇ PARAS 123, a 2 Gr Com; CCAÇ PARAS 122, a 1 Gr Com. Ambas as unidades estavam aquarteladas em Galomaro.

(9) Vd. descrição do armamentodo In no post de 16 Maio 2005 > Guiné 69/71 - XIX: O festival das kalash, das 'costureirinhas', dos rockets e dos katiousha

(10) Repare-se na desproporção de meios: as forças do IN são estimadas em 80 elementos; as NT mobilizaram para esta operação 10 grupos de combate, ou sejam, cerca de 300 homens: 3 GR Comb das CCAÇ PARAR 122 e 123; 3 Gr Comb da CCAÇ 12; o PEL CAÇ NAT 52; e, por fim, mais 3 Gr Comb da CART 2339.

(11) O material apreendido pelos paras incluiu: 1 Metr Lig Degtyarev; 1 LGFog RPG-2; 1 Esp Aut Kalashnikov (distribuída a um elemento IN, de nome Baio); 1 Pist Metr PPSH; 3 cunhetes com munições; 7 granadas de RPG-2; 9 granadas de Mort 60; diversos bormais, marmitas, fardamento e botas novas; documentos de interesse, incluindo relatórios onde se refere a ocorrência de 2 mortos e 6 feridos, por parte do IN, no ataque a Candamã, a 30 de Julho de 1969 (Fonte: Guiné 68/70: História do Batalhão de Caçadores nº 2852. Documento policopiado. Bambadinca: BCAÇ 2852. 1970. Cap. II. 102).

(12) Devido às condições atmosféricas (péssimas, segundo os relatórios), a Op Nada Consta só começou às 9.30h, com o heliasssalto. Sempre sob mau tempo, os paras regressam a Galomaro às 16.30h do mesmo dia.

quinta-feira, 28 de julho de 2005

Guiné 63/74 - P129: Cem pesos, manga de patacão, pessoal! (1)

© Jorge Santos Cópia de uma nota de cem escudos da Guiné (ou pesos), emitida pelo BNU (Banco Nacional Ultramarino), em circulação no nosso tempo.

Esta, por acaso, foi emitida em Lisboa em 17 de Dezembro de 1971, já a rapaziada da CCAÇ 12 (eu, o Humberto Reis, o Tony Levezinho, o Fernandes...) tinha regressado a casa. A nota ostenta a efígie do Nuno Tristão, o primeiros dos nossos camaradas a morrer na Guiné, "país de azenegues e de negros", no já longínquo ano de 1446, "varado por azagaias envenenadas" (sic), como se pode ler algures no Portugal dos Pequenitos, em Coimbra (se nunca lá foram, aproveitem para ir com os netos um fim-de-semana destes).

Hoje, dia 28 de Julho de 2005, à hora do almoço, lembrei-me, à laia de aperitivo para o gozo da licença de férias (como diria o nosso primeiro), de lançar um pequeno, ingénuo e, espero, divertido desafio à nossa tertúlia . Por favor, não o vejam como uma provocação. No fundo, é uma simples proposta para em conjunto fazermos uns exercícios de memória, antes que venha aí o Alzheimer ou nos dê uma macacoa bem pior.

Quem quiser pode dar uns pesos para este bate-papo (que está em aberto até ao final da próxima semana, antes de eu ir de férias…). Eu, o Marques e o Reis já demos para o peditório. Agora que apareça malta mais desavergonhada que estes três cotas... Refiro-me aos periquitos e aos djubis...


1. Amigos e camaradas:

Há dias o Jorge Santos mandou-nos uma nota de cem escudos da Guiné (cem pesos). Ou melhor: uma nota digitalizada, uma imagem em formato jpeg. Puxem pela memória e digam lá, para a gente poder explicar isso aos filhos e netos, bem como à cara metadade, o que se podia comprar/pagar com uma notinha destas, no vosso/nosso tempo…

Eu tenho ideia que era manga de patacão, pessoal ! Eu já não me recordo quanto pagava à lavadeira, em 1969/71, mas se fosse serviço extra, era capaz de lhe dar uma nota destas. A minha não fazia favores sexuais, mesmo em dias de festa: não era cristã nem animista, era uma fula, recatada e virtuosa… Mas em Bissau ou em Bafatá, uma queca (como os nossos filhos e as nossas tias dizem agora, 'tás-a-ver...) podia custar uma nota (preta) destas... Já não me lembro das cotações no lupanário em tempo de ocupação e de guerra... As verdianas do Pilão, essas, podiam ser até mais caras…

Com uma nota destas, ó tuga, tu compravas duas garrafas de uísque novo (disso lembro-me bem…). O Old Parr (uísque velho, muito apreciado lá e cá) já custava mais: 130 ou até 150 pesos, se não me engano… Além do pré (6oo pesos/mês), os meus soldados africanos (que eram praças de 2ª classe!) recebiam mais, creio eu, cerca de 25 pesos por dia pelo facto de serem desarranchados. Nunca joguei à lerpa, mas o Humberto pode dizer quanto ganhava ou quanto perdia numa noite de insónias e de rodadas de uísque…

Ainda em matéria de comes & bebes, um quilo de camarões tigres, do Rio Geba, comidos na tasca do tuga que era turra (ou, pelo menos, suspeito de vender e comprar vacas aos turras), em Bambadinca, com uma linda vista para o rio, custava cinquenta pesos… Um bife com batatas fritas e ovo a cavalo (supremo luxo de um operacional como eu ou o Humberto) na Transmontana em Bafatá já não me lembro quanto custava (talvez vinte a vinte e cinco? ).

Ainda me lembro, isso sim, de o vagomestre comprar uma vaca raquítica por 950 pesos, depois de bater não sei quantas tabancas da região de Bambadinca… Nas tabancas, fulas, por onde passei e onde fiquei, uma semana ou mais, era costume comprar, mesmo a custo, galinhas e frangos, mas já não me lembro quanto pediam pelos bichos de capoeira (sete pesos e meio?)… As ostras em Bissau custavam 20 pesos (uma travessa)… E por aí fora.

Amigos e camaradas: actualizem ou rectifiquem a lista. Não sei se depois de 1973, a inflação também chegou à Guiné… O Sousa de Castro é que nos pode dizer… De qualquer modo, o que comíamos e bebíamos era praticamente tudo importado...

O grande ventre de Bissau era alimentado por uma economia de guerra que deu dinheiro a ganhar a muita gente... Manga de patacão, pessoal! ... Desde as rachas de cibe e o cimento para os reordenamentos (a construção de aldeias estratégicas, como a de Nhabijões, deve ter ajudado a dourar a reforma de muita gentinha mais patriótica do que eu) até aos transportes (civis) em comboios militares, sem esquecer os efeitos (mais nefastos do que benéficos) que a guerra teve na pobre economia natural dos guinéus.

Um deles foi a sua própria militarização. Nos últimos anos da guerra, tudo girava à volta (e vivia) da guerra. A guerra tornou-se, ao mesmo tempo, o ópio e a grande sanguessuga dos guinéus (e dos próprios tugas). E a prova disso, trinta e tal anos depois, é a bidonvilização, a lumpenproletarização da população que engrossou Bissau.

Luís Graça

2. Resposta rápida, artilhada, telegráfica, à ranger , do Humberto Reis:

Das chamadas meninas & vinho verde não me lembro, mas dos produtos que eu mais consumia, entre 69 e 71, não me esqueci:

- Um maço de SG Filtro: 2,5 pesos (sempre que saía para o mato levava 3 a 4 maços para 2 dias);
- Uma garrafa de whisky novo (J. Walker Juanito Camiñante de 5 anos, rótulo vermelho, JB): 48,50 pesos;
- Idem, de 12 anos, J. Walker rótulo preto, Dimple, Antiquary: 98,50
- Idem, de 15 anos, Monkhs, Old Parr: 103,50;

- Um whisky, no bar da messe, eram 2,50 pesos sem água de sifão e com água eram 3,00 pesos;
- Quanto à lerpa, ou ramim, uma noite boa, ou má, poderia dar (valor médio) 200 a 300 pesos para a lerpa e 50 a 100 para o ramim.
3. Comentário, sábio e sensato, do nosso mui experiente operacional e grande conhecedor da Guiné, do antes e do depois, A. Marques Lopes:
Interessante também esta reflexão (fez parte da nossa vida). No entanto, eu, pessoalmente, muito pouco posso dizer. Lembro-me que pagava 5 pesos quer à minha lavadeira de Geba quer à de Barro; além da lavagem também trabalhavam com as mãos (eram fulas, pois).

Quanto a tainadas e saber o preço delas, é um bocado difícil pois nunca tive tempo para muitas... Só sei que, quando em Bissau à espera de embarque, paguei 5 pesos aos miúdos que andavam perto do Bento (a 5ª Rep...) a vender sacos de camarão.

Quando em Geba fui uma vez a Bafatá e, talvez, à Transmontana, não sei bem (só sei que o dono, já entradote, tinha uma mulher loura mais nova e também comestível). Um dia, eu e o capitão (o tal que morreu na estrada para Banjara) decidimos ir os dois até Nova Lamego de jeep (maluqueiras!) onde comemos qualquer coisa não sei aonde e não me lembro o que paguei.

Quando em Bissau, no Pilão, frequentei várias vezes a Fátima, que não era caboverdiana mas sim fula, e dava-lhe 50 pesos de cada vez. Uma rapariga esperta: uma noite, a Fátima propôs-me que eu trouxesse uma grade de cervejas do QG para ela vender aos visitantes (era giro ouvi-la gritar da cama está ocupado!, quando os páras ou os fusos batiam à porta dela), dava-me metade da venda (não entrei nisso, claro). Também frequentei a casa que um branco tinha perto do campo do UDIB, e onde tinha as filhas à disposição, mas aí só paguei as cervejas.

Quanto às bebidas da tropa não me lembro rigorosamente nada dos preços. Mas bebi de tudo, garanto-vos, e em grande quantidade (latas de rum com coca-cola, de cerveja com coca-cola, whisky, gin, cerveja, 1920...). Só procurei beber muito pouca água, e nunca apanhei nenhuma doença, por isso, com certeza. Quando chegava das operações, eu e os furriéis esticavamo-nos ao comprido e o soldado faxina já sabia que tinha de trazer uma grade de cervejas para nos saciar...

Como vêem, quanto a este custo de vida sei muito pouco.

Marques Lopes
PS - Não me lembrei dessa dos maços de tabaco porque nunca fumei no mato. Nem ninguém dos que saíam comigo podia fumar. Regra de segurança para as muitas noites passadas fora. E creio que foi muito útil.

4. Aqui uns trocos do Luís Carvalhido (acabam de chegar, às 9.45, do dia 29 de Julho de 2005). Aproveito para lhe desejar boas férias no nordeste brasileiro. E que os bons ventos (e a chuvinha que tanta falta nos faz) o tragam de volta, de boa saúde, a ele e ao resto do pelotão...


Bom dia, companheiros!

Que lembranças! Aquilo que se comprava com meia dúzia de pesos!... Onde eu investia muito era iske e na coca cola. Nas outras coisas, não precisava muito, porque sempre fui um rapaz com muita sorte. Não fiquem com inveja; já pelo contrário, nunca me saiu nada ao jogo.

Luís, dei esta morada a um companheiro de armas que está nos States e que tem histórias e fotos do Saltinho. Dentro em breve teremos aqui outros olhares.

Quanto a mim dentro de dias vou para o nordeste brasileiro. Depois conto como é que foi, porque aqueles que lá vão ficam amarrados. Eu só vou olhar porque comigo vai a comandante da guarnição e ela não é de brincadeiras.
Um abraço para todos.

Luis Carvalhido


5. O Sousa de Castro, português do Alto Minho, aumentou a parada, e deixa-nos aqui, não uns trocos mas uma nota de cinquenta (das verdinhas). Bravo!


Olá amigos!

Quero dizer-vos que no meu tempo (1972/74) não era muito diferente: os preços que se praticavam eram mais ou menos os mesmos....


Cópia de nota de 5o escudos (pesos) da Guiné. Frente. Imagem gentilmente enviada à nossa tertúliua pelo Castro.

© Sousa de Castro (2005)



Puxando um pouco pela memória, eu como 1º cabo radiotelegrafista ganhava 1.500$00, sendo 1.200$00 por ser 1º cabo e mais 300$00, de prémio de especialidade.

A dita queca, se a memória não me trai, creio que era assim: para os soldados cinquenta pesos; para os cabos sessenta pesos; a partir daqui não me lembro quanto pagavam os mais graduados... Quanto às cabo-verdianas, a coisa era de facto mais cara, em final de comissão paguei cento e cinquenta ou duzentos pesos, isto em Fevereiro de 1974.

Recordo que, com um peso, comprava quatro ou cinco bananas. Os uísques novos como o Johnnie Walker (cavalo branco) e outros custavam, em 1972/74, cinquenta pesos; o Dimple 100 pesos; o Old Parr 150 pesos; e havia o Monks, a 250 pesos.


Cópia de nota de 5o escudos (pesos) da Guiné. Verso. Imagem gentilmente oferecida à nossa tertúlia de ex-combatentes da guerra colonial (com destaque para a Guiné) pelo nosso amigo Castro.

© Sousa de Castro (2005)



Julgo serem estes os preços daquela altura, alguém que me corrija. Por lavar a roupa, como cabo pagava 60 pesos e recordo que paguei 1 peso para me consolar a apalpar as mamas a uma mulher grande (isto é, casada) (Ainda hoje recordo aquelas mamas firmes e volumosas! ...).

Anexei uma nota de cinquenta pesos, frente e verso para recordação.

Sousa de Castro

Guiné 63/74 - P128: Bibliografia de uma guerra (10): Segredos do PAIGC (Marques Lopes)

Texto de A. Marques Lopes:

Primeiramente, quero esclarecer que se me extraviou a capa do livro, daí ter enviado apenas a página de rosto. Talvez os amigos Luís Graça ou Jorge Santos possam suprir esta falha. Tenho andado a ordenar os meus livros e surgiu-me este com várias anotações que fiz quando o li. É uma publicação de Julho de 1984, das Edições O Jornal.

O TÍTULO: Crónica da Libertação
AUTOR: Luís Cabral
EDITORA: O Jornal
ANO: 1984

Luís Cabral foi, como sabem, o primeiro Presidente da Guiné-Bissau após a independência, tendo sido deposto por um golpe do Nino Vieira em 14 de Novembro de 1980. Vive actualmente em Miraflores, perto de Lisboa, casado com uma felupe da Casamança. Foi, durante a luta, e durante vários anos, o responsável político da Frente Norte, juntamente com Chico Mendes.

Conheço-o pessoalmente porque ele esteve presente em alguns dos jantares que os alferes (sobreviventes) da CART1690 fazemos com alguma frequência em Lisboa. Além disso, creio que em 2000, era eu coronel ainda no activo, participei com ele, com o Dr. Pádua (o tal médico desertor que tratou o soldado Fragata do meu grupo de combate num hospital de Ziguinchor) e outros no programa "Artigo 34" que a jornalista Diana Andringa tinha na RTP2.

Vou-vos dar a conhecer algumas das anotações e sublinhados que fiz e que, na altura, julguei esclarecedoras para mim nesta obra que relata a luta do PAIGC:

- Escondida perto de Barro, na margem do rio Cacheu, o PAIGC tinha uma canoa para a travessia desse rio; vinham e iam para o Senegal através de um trilho camuflado; (malandros, nunca lhes cacei essa canoa nem descobri o trilho; ou o meu guia Braima não me disse, mas não lhe valeu de nada...);

- A Titina Silá dirigia a Norte o Comité da Milícia Popular, que tinha como missão organizar a passagem das pessoas e mercadorias nas cambanças do rio Cacheu (nunca a apanhei...);

- Um deportado político antifascista, de nome Fausto Teixeira, e que tinha uma serração na estrada de Mansabá para Bafatá, ajudou o Luís Cabral quando ele fugiu da prisão, antes do começo da luta; nunca esclareci isso com ele, mas penso que essa serração era em Banjara, pois sempre me disseram que o (único) edifício do destacamento da CART1690 em Banjara pertencia a uma serração, e de facto ainda havia lá algumas máquinas a apodrecer;

- E esta eu não sabia: diz o Luís Cabral que "o quartel de Banjara, entre Mansabá e Bafatá, tinha sido retirado devido aos ataques contínuos dos nossos combatentes. Os trilhos que, do mato, cortavam esta pista inteiramente controlada por nós, passaram por isso a dar mais segurança à passagem das pessoas que se dirigiam ao Sará [região libertada entre Mansoa e Mansabá]". Nunca tive conhecimento que o destacamento de Banjara tivesse sido abandonado.

- O tarrafe tinha uns frutos que eram bem fervidos em água, depois passavam por água corrente e serviam de alimentação; por falta de tempo, os guerrilheiros lavavam-nos rapidamente e adoçavam-nos com cinza; eram usados pelos guerrilheiros da zona entre o o rio Geba e o Corubal;

- As sandális de plástico usadas em geral pelos guerrilheiros feriam os pés a quem não estivesse já habituado (o sacana do tal vigia perto de Sinchã Jobel (1) já devia estar habituado, pois fugiu bem depressa...);

- Diz ele [o Luís Cabral] que em Samine, no Senegal, perto de Barro, o PAIGC tinha um armazém de material de guerra (eu não sabia desse);

- O comandante Drake, do CC do PC cubano e companheiro do Che no Congo, esteve a combater no Norte (ver "O Ano Em Que Estivemos Em Parte Nenhuma", editado pelo Campo das Letras, em 1995, número 2 da sua colecção Campo da História);

- Os comandantes da região Norte eram Julião Lopes, Irénio Nascimento Lopes e Bobo Queita;

- O Corpo de Comando, formado para dirigir a luta no Norte, era enquadrado pelos "peitos vermelhos", combatentes que se destacaram em acções especiais;

- O Corpo do Exército 199-A (CE199-A) actuava na zona de Sambuiá e era comandado por Bobo Queita;

- O ataque a Cantacunda foi dirigido por Braima Bangura (patife!).

Tinha estes apontamentos e sublinhados mas não fiz uso deles quando vos falei destes locais. Porque já não me lembrava deles. Não há dúvida que temos de nos debruçar mais sobre estas estórias.

Marques Lopes
____

Notas:

(1) Vd. post do Marques Lopes, de 30 Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XXXVI: Na bolanha dá para pensar...

quarta-feira, 27 de julho de 2005

Guiné 63/74 - P127: Com os jornalistas chineses nas 'regiões libertadas' (1972) (Marques Lopes)

Texto e selecção fotográfica de A. Marques Lopes (ex-alferes miliciano da CART 1690, Geba, 1967/68, e da CCAÇ 3, Barro, 1968; actualmente coronel, DFA, na situação de reforma; membro da tertúlia dos ex-combatentes da Guiné).


Publicado em 1972 pelas Edições em Línguas Estrangeiras, de Pequim, o livro Pelas Regiões Libertadas da Guiné (Bissau) é constituído por de um conjunto de reportagens dos jornalistas da Xinhua, a agência noticiosa oficial da República Popular da China, que passaram mais de um mês na Guiné com a guerrilha do PAIGC ( Foto 1).


Foto (1) © Agência de Notícias Xinhua (1972).

Está escrito num surpreendentemente belíssimo português, tendo em conta a origem da edição. Na senda de um dos princípios básicos de Mao Zedong para a guerra revolucionária - "O guerrilheiro está para o povo como o peixe para a água" -, os repórteres realçam "o exército e o povo unidos como uma só família", ligados como unha e carne.

São relatadas várias situações de combate, casos de heroísmo, como o caso de Fona na Cuban. É dedicado um capítulo especial ao herói Domingos Ramos, morto em 10 de Novembro de 1966 durante um ataque da sua unidade a Madina do Boé (o mítico lugar da Guiné, abandonado pelas NT em 8 de Fevereiro de 1969 e onde, mais tarde, a 24 de Setembro de 1973, será feita a proclamação unilateral da independência do território).


Há algumas páginas interessantes sobre o trabalho nas chamadas zonas libertadas, nomeadamente no que toca à produção de arroz nas bolanhas (3.000 hectares de terreno cultivado para apoio da guerrilha na zona meridional do rio Geba, por exemplo), à instalação de escolas, de hospitais de campanha, e até ao fabrico de minas e à reparação de armas.

Os jornalistas chineses tiraram obviamente fotografias. Algumas delas achei-as mais interessantes porque me fazem lembrar coisas do meu tempo de combatente na Guiné. Julgo que merecem a devida divulgação, até por que o livro é praticamente desconhecido e inacessível aos portugueses. Aqui as reproduzo com a devida vénia e agradecimento aos autores e à editora.

Foto (2) © Agência de Notícias Xinhua (1972)

Montando uma casa de mato (2). No livro diz-se "acampados na floresta". O "acampamento" do IN, como dizíamos nos nossos relatórios ou ordens de operação, não eram só aquelas camas da imagem, mas sim algo mais completo, com cobertas de folhas de palma ou de capim seco. Daí que eu pense que estavam a montar o que chamávamos uma "casa de mato", que serviam tanto para os efectivos avançados perto das bases como para o apoio dos grupos que se deslocavam na floresta. Essas casas eram destruídas pelas NT para lhes cortar esses apoios. Não creio que, em deslocação, se dessem ao trabalho de montarem aquelas camas, com mosqiteiro e tudo... Tendas deles é que nunca vi. [Além das suas bases de apoio, quer no Senegal quer na Guiné-Conacri, o PAIGC também bases, relativamente seguras, no interior da Guiné, nas chamadas zonas libertadas. Nas regiões sob duplo control0 ou em disputa era frequente a construção de diversos acampamentos temporários, como era o caso por exemplo na região do Xime. LG].

Foto (3) © Agência de Notícias Xinhua (1972)

Guerrilheiros montando uma emboscada (3), não muito diferente das emboscadas montadas pelos meus Jagudis, o meu grupo de combate (maioritariamente composto de balantas) na CCAÇ 3, em Barro, na região do cacheu (1968).

Nesta foto, em primeiro plano vê-se uma metralhadora ligeira Degtyarev, de calibre 7.62, com tambor. No segundo plano, vê um outro guerrilheiro com uma Kalashnikov. Na capa do livro (1) está um RPG2, arma anti-carro de fabrico soviético, de calibre 40mm no tubo e de calibre 82mm para a granada; tinha um alcance de 150m (o RPG7 tinha, além do punho do gatilho, um outro punho para a mão de apoio); a outra arma não a consigo reconhecer, embora me pareça que seja uma espingarda qualquer de repetição.


Foto (4) © Agência de Notícias Xinhua (1972)

Abastecimentos vindos do Senegal (4). Era isso que tentávamos evitar a partir de Barro. Como eu já expliquei noutro sítio, Barro ficava a cerca de 3 kms da fronteira com o Senegal. A missão da CCAÇ 3 em Barro era evitar a passagem dos guerrilheiros do PAIGC e das populações por ele controladas, do Senegal para a mata do Óio. A missão deles era, sobretudo, fazer abastecimentos em géneros e em material bélico para os combatentes daquela zona. A nossa era evitar que isso sucedesse. Essas infiltrações vinham, nomeadamente, das tabancas Sano, Sonako e Samine, situadas no Senegal.

Foto (5) © Agência de Notícias Xinhua (1972)

Vigia ao pé de um rio (5). Em 24 de Junho de 1967 (Op Jigajoga), quando atravessei o rio Gambiel, o meu guia disse-me :
- Alfero, patada de turra! - E lá estava, na terra da margem, a inconfundível marca de uma destas sandálias que este vigia tem, e que eram muito usadas pelos guerrilheiros do PAIGC. (sobre a Op Jigajoga, vd. post de 30 de Maio de 2005 -
Guiné 69/71 - XXXV: Uma estória de Sinchã Jobel ou a noite em que o Alferes Lopes dormiu na bolanha (1967)

Foto (6) © Agência de Notícias Xinhua (1972)

Uma escola tal e qual como a que destruímos na Op Inquietar II (4 a 7 de Julho de 1967).

Só que em Samba Culo tinha uma jovem professora que, infelizmente (digo-o do fundo do meu coração), teve de morrer (6) (vd. post, de 7 de Junho de 2005 - Guiné 69/71 - XLIX: Samba Culo II ) .



A. Marques Lopes
__________________

P.S. - O livro Pelas regiões libertadas da Guiné (Bissau) (sic, com minúsculas) é uma edição original (primeira edição, diz lá) da "Edições de Línguas Estrangeiras", publicado em Pequim em 1972, em portugês. Diz, inclusivamente, que foi "impresso na República Popular da China". Na primeira página do interior diz, por baixo do título, "Pelos repórteres da Agência Hsinghua" (sic). E não tem indicação de copyright (parece-me natural, dado que estas publicações tinham o objectivo de servirem para grande divulgação, não com esse tipo de preocupações mais do sistema de mercado...). (ML)

Observações (LG) - De acordo com a pesquisa que efectuei através da PORBASE - Base Nacional de Dados Bibliográficos, existe na Biblioteca Nacional uma edição portuguesa de 1974

Título: Pelas regiões libertadas da Guiné Bissau
Publicação: Lisboa : Depos. Livr. Ler, 1974
Descrição física: 88, [4] p. ; 18 cm
Colecção: Cadernos Maria da Fonte ; 8
CDU: 32 .

terça-feira, 26 de julho de 2005

Guiné 63/74 - P126: Cabo Verde (1941/1943) (2): esperando os invasores (Luís Graça)

1. Dá-me uma enorme nostalgia quando revejo as velhas fotos de meu pai, expedicionário em Cabo Verde, na Ilha de São Vicente, durante a II Guerra Mundial (1941/43). É que elas também fazem parte do meu imaginário de criança. O fascínio que tenho pelo mar e pelas ilhas vem também muito provavelmente deste contacto precoce com Cabo Verde, que só conheço por imagens: minto, estive uma hora ou duas no avião da TAP Lisboa-Bissau, quando regressei de férias, em paragem técnica, no aeroporto do Sal... Julgo que nem sequer descemos do avião. A única imagem com que fiquei da ilha foi... a de um cabra a roer sacos de plástico junto do arame farpado!

A minha geração, a da guerra colonial (1961-1974), a que viveu e lutou duramente em Angola, Moçambique e Guiné, tem tendência a ignorar ou a esquecer a geração anterior, a de seus pais, que, em nome da Pátria, também foi mobilizada para os mais diversos sítios dos nossos territórios ultramarinos. Os sacrifícios que eles fizeram foram enormes: não poucos morreram, por motivo de doença; e outros terão ficado com a saúde arruinada.

É certo que os soldados da geração dos nossos pais não estiveram directamente em guerra (excepto em Timor, ocupada pelos japoneses), mas os expedicionários (como então se chamavam) sofreram o pesadelo da II Guerra Mundial. Sei muito pouco da história político-militar dessa época, mas em Cabo Verde chegou a temer-se a invasão dos alemães, dado o valor estratégico do arquipélago, à semelhança do arquipélago dos Açores, cobiçado pelos aliados.

Reproduzo aqui um testemunho, publicado pelo DN, ainda recentemente, no âmbito da celebração do 60º aniversário do fim da II Guerra Mundial, da capitulação da Alemanha nazi, a 8 de Maio de 1945. Um dia em que tudo pareceu possível... , até no Portugal de Salazar.

Aproveito para inserir aqui mais algumas fotos, recuperadas e digitalizadas, do velho álbum do meu pai, devidamente anotadas e datadas, com a sua bonita letra, e às vezes a tinta verde (era ele quem escrevia as cartas para as namoradas dos camaradas que eram analfabetos).


2. "Viver em Cabo Verde à espera da invasão". Diário de Notícias. 14 de Abril de 2005.

"Eles eram missionários, homens com uma missão de paz e não de guerra. O seu objectivo era defender Cabo Verde de uma possível invasão alemã durante a II Guerra Mundial." A história de um desses soldados, António Gavina, do corpo expedicionário do Regimento de Infantaria 11, de Setúbal, é contada pela sua filha, Vanda Gavina.

"O meu pai devia ter vinte e poucos anos quando foi para a ilha do Sal. Acabou por ficar lá durante quase quatro anos", recorda. Os pormenores da passagem do pai pelo arquipélago de Cabo Verde já começam a ser esquecidos, mas uma coisa ficará para sempre na sua memória "Eles não passavam fome, mas viviam em muitas dificuldades, com muitas restrições."

Os anos da II Guerra Mundial foram anos de seca nas ilhas do Atlântico. A comida não abundava e os soldados alimentavam-se com aquilo que podiam. As recordações desse tempo deixaram marcas em António Gavina. "O meu pai nunca mais comeu percebes na vida. Tudo porque em Cabo Verde viu um dos habitantes locais morrer quando os tentava apanhar", referiu Vanda Gavina.

Outro dos problemas que o regimento teve de enfrentar foram as doenças. "Lembro-me de o meu pai contar que houve muitos colegas que morreram devido a alguns surtos de doenças que afectaram os homens da companhia."

Em 1939, pouco antes do início da II Guerra, Portugal autorizou o Governo de Benito Mussolini a construir um aeroporto na ilha do Sal, para servir de ligação com os países da América do Sul. Com o início do conflito, o projecto italiano, com casas prefabricadas, foi abandonado. Enquanto aguardavam a invasão alemã, que não chegou, os soldados portugueses ajudavam à criação de melhores condições de vida. "Eles ajudaram a construir habitações, não só para eles mas também para os cabo-verdianos", lembra Vanda Gavina.


3. Fotos do Álbum de Luís Henriques. Vd. post Guiné 69/71 - CIV: Os mortos e os esquecidos do Império: Cabo Verde (1941/43)

Legenda no verso da foto:

" No dia 11 de Abril chegaram estes dois barcos hospitais italianos ao porto de S. Vicente para irem fazer troca de prisioneiros e doentes com os ingleses. 1942. Luís Henriques".

© Luís Graça (2005)


Legenda no verso da foto:

"Posição das peças anti-áereas no Monte Socego, São Vicente, Cabo Verde. Fotografia oferecida pelo meu amigo Boaventura em 21/3/43. Luís Henriques".

© Luís Graça (2005).





Legenda no verso da foto:

"O Palácio do Governador de Cabo Verde, situado em Mindelo, [Ilha de] São Vicente. Luís Henriques. 1 de Maio de 1942". A bonito cidade do Mindelo é hoje a 2ª segunda cidade de Cabo Verde. E São Vicente é a terra da já mítica Cesária Évora. © Luís Graça (2005).


Legenda no verso da foto (a tinta verde, já quase ilegível):

"Dançando o batuque (sic) na Ribeira de São João, no dia de São João , no interior (?) de São Vicente. Luís Henriques. 24/6/1943".

A festa de São João Baptista Baptista continua a ser uma das festividades maiores das Ilhas e da comunidade cabo-verdiana da diáspora.

© Luís Graça (2005).


Outros links sobre Cabo Verde:


Cabo Verde > São Vicente > Mapa topográfico e planta da cidade do Mindelo

Cabo Verde > São Vicente > Mapa

Cabo Verde On Line

Cabo Verde 24 - O portal informativo de Cabo Verde

Cabo Verde - Página Oficial do Governo

Lura - Música Cabo-verdiana

Mindelo Infos Accueil Cap Vert - Cabo Verde - Cape Verde

Vidas Lusófonas > Amílcar Cabral (1924-1973) (uma excelente biografia do fundador e líder do PAIGC, por Carlos Pinto Santos).

domingo, 24 de julho de 2005

Guiné 63/74 - P125: Homenagem aos mortos da minha terra (Lourinhã, 2005) (Luís Graça)

Pormenor do monumento aos lourinhanenses mortos na Guerra do Utramar. Lourinhã, Largo António Granjo. © Luís Graça (2005).

1. José António Canoa Nogueira, o primeiro morto da Lourinhã, na Guiné. Em 1965. Tinha eu os meus dezoito anos e, por isso, já tinha dado o nome para ir às sortes. A pacata vila do oeste estremenho foi sacudida pela notícia da morte do Nogueira. Já não me lembro onde nem em que circunstâncias. Sei que foi algures na Guiné. As Forças Armadas não davam explicações dessas. Um telegrama, seco e brutal, chegava normalmente a casa do pai e/ou mãe, uns dias depois, anunciando a funesta notícia: “As Forças Armadas cumprem o doloroso dever de o(a) informar que o seu filho morreu no campo da honra, servindo a Pátria”. Imagino que o teor do telegrama fosse esse...

Sei que o soldado Nogueira moreu em 30 de Janeiro de 1965. Soube-o através do memorial que consta da página do Jorge Santos (Obrigado, amigo!). O funeral do Nogueira, largas semanas ou até meses depois (já não posso precisar), foi uma impressionante manifestação de dor. Lembro-me da urna, selada, em chumbo. Dos soldados fardados e aprumados, vindos de Mafra, da Escola Prática de Infantaria. Da salva de tiros. Do luto carregado. Da emoção no ar. De uma família destroçada. De uma comunidade comovida. Dos boatos: "Se calhar o caixão vem é cheio de pedras". Da estupefacção e do medo dos mancebos que estavam na lista para a tropa. Lembro-me sobretudo do silêncio do cemitério. Nasci e vivi os meus primeiros anos, a 100 metros de um cemitério. Era incapaz de lá passar à noite quando puto. A paz do cemitério num país em guerra... a milhares de quilómetros das portas de cada um de nós.

O Nogueira era meu primo, embora em 3º grau. Não tínhamos grande convívio, mas os nossos pais (o pai dele e a minha mãe) eram primos direitos. As nossas avós maternas eram irmãs. Todavia, a sua morte tocou-me. A morte aproxima sempre os grupos, as famílias. Fiz-lhe uma singela (e creio que sentida) homenagem no jornal da terra, com direito a caixa alta. Um dia destes vou vasculhar os arquivos do quinzenário regionalista Alvorada para rever a sua foto e o meu texto. E eventualmente republicá-los aqui, no blogue, se o director do jornal, o Padre Joaquim Batalha, mo autorizar.

Na altura eu ainda era o chefe de redacção e o repórter principal daquela publicação. Já não me lembro do que escrevi nessas circunstâncias difíceis. Tenho uma vaga ideia de ter desejado, em letra de forma, que a morte do primeiro lourinhanense na guerra da Guiné não tivesse sido em vão. Não sei se foi depois disso que o director, o Padre António Escudeiro, recebeu um ofício do Ministério do Interior a perguntar por que é que o jornal já não ia à censura prévia há mais de um ano. Duas linhas, secas, burocráticas, impessoais. Em baixo, ocupando mais de metade da folha, a assinatura, em letra garrafal, mais arrogante e intimadatória que eu jamais vi em toda a minha vida… Se o fascismo existiu na minha terra, na nossa terra, então essa assinatura do censor-mor (ou de algum dos seus esbirros) era fascismo, puro e duro.

2. Por contraste, o funeral do Nogueira trouxe-me à memória a festa da chegada de um meu vizinho que veio da Índia Portuguesa, são e salvo. Ainda antes da invasão de Goa, Damão e Diu. Terá sido por volta de 1956, andava já eu na escola. O Jorge da Ti Albertina teve honras de herói, na nossa rua, a Rua do Castelo, a rua do cemitério. Era a última ou penúltima casa antes do cemitério. Ainda ecoam, na minha cabeça, as manifestações de alegria (o riso, o choro sufocado, os gritos, os abraços, os beijos) com que a Ti Alberina, a família e os vizinhos da rua receberam o nosso soldado e herói da Índia, um dos nossos últimos soldados e heróis da Índia. Eu era puto de bibe, andava na escola e jogava ao pião: para mim, todos os soldados eram heróis.

Escultura em bronze do combatente da Guerra do Ultramar. O monumento é da autoria do arquitecto A. Silva e da escultora A. Couto © Luís Graça (2005).

3. Em 26 de Junho passado, a Lourinhã, através da autarquia local, prestou a devida homenagem aos seus mortos no Ultramar: vinte ao todo, nove em Angola, seis na Guiné, cinco em Moçambique. Nesse dia foi inaugurado um "monumento aos lourinhanenses mortos na guerra do Ultramar”, obra do arquitecto Augusto Silva e da escultora Andreia Couto.

Fizeram parte da comissão organizadora, entre outros ex-combatentes, os meus amigos e conterrâneos João Delgado, Jaime Bonifácio e José Picão de Oliveira: este último, foi furriel miliciano na zona leste da Guiné, mesmo na ponta nordeste, em Canquelifá, tendo regressado já em Setembro de 1974, enquanto o Jaime foi alferes milicano paraquedista em Angola, sensivelmente na mesma época em que eu fui mobilizado para a Guiné (1969/71).

Vinte mortos (seis dos quais na Guiné, entre 1965 e 1973) foi o contributo da minha terra, o imposto de sangue que os lourinhanenses pagaram na defesa dum império e de um regime em agonia. Registo aqui, porque muito apropriadas, as palavras do presidente da Câmara Municipal da Lourinhã, José Manuel Custódio, na homenagem aos nossos mortos: "Pior do que uma guerra é fazer de conta que ela nunca existiu, e a guerra de África existiu".

Não estive na cerimónia nem tive conhecimento conhecimento antecipado dela. Sou um lourinhanense da diáspora. Mas leio no jornal da terra, o mesmo de há quarenta anos, o Alvorada, a notícia a dizer que "numa cerimónia simples, a altura da chamada dos mortos em combate foi a mais sentida por todos os presentes" e que as honras militares foram feitas por um pelotão da Escola Prática de Infantaria (EPI) de Mafra, e a sua fanfarra. A mesma unidade que quarenta anos antes tinha prestado as honras fúnebres ao meu primo Nogueira, se a memória não me atraiçoa.

Registo ainda a presença do (i) Tenente General Jorge Silvério, um homem do MFA, natural de Ribamar onde tenho inúmeros parentes, do lado da minha visavó paterna (a família Maçarico); do (ii) Patuleia, o meu amigo Patuleia, natural do concelho vizinho do Bombarral, o Manuel Patuleia Mendes, presidente da Associação Portuguesa dos Deficientes das Forças Armadas, ele próprio talvez o mais dramático exemplo do horror, estampado no rosto, do que foi esta guerra para os jovens da nossa geração; e, por fim, do (iii) António Basto, Presidente da Associação Portuguesa dos Veteranos de Guerra.

Guiné 63/74 - P124: Bibliografia da guerra no feminino (3): Madrinhas de guerra (Jorge Santos)

Pela mão do Jorge Santos, sempre atento, chegou-nos este belíssimo texto. É da autoria de Constança Lucas (2001), artista plástica e poeta. Vem na sua página pessoal (Pintura, Desenho, Aquarela, Pintura em Azulejos, Poesia, Prosa Poética, Fotografia, Poesia Visual, Desenhos no computador, Selos Postais, Desenhos para livros... Nascida em Coimbra em 1960, a autora vive e trabalha actualmente em S. Paulo, Brasil).


© Constança Lucas (1997-2005)

Madrinha de Guerra

Madrinha de Guerra, como se algo assim fosse possível de imaginar. Mas sim existiam e serviam para escrever aerogramas aos soldados da guerra colonial, algumas o faziam com entusiasmo, por também precisarem de ombro. A guerra - algo que nem sabiam bem porque existia.

Muitas perdidas na angústia da distância que as envolvia numa tristeza diária, na esperança de um retorno muitas vezes não acontecido, tentavam construir os seus afectos, divididas nem mesmo sabiam o que tinham com África. Esse continente distante que lhes engolia quem mais pensavam querer.

Tudo fingia mais calma, ninguém falava nos mortos e estropiados abertamente, tabu necessário à sobrevivência do regime.

As mulheres construíam os seus sonhos com pessoas que mal conheciam, na ânsia de amarem e serem amadas. Amavam perdidamente as poucas linhas que lhes chegavam, alimento das feridas tão fundas num mundo tão desigual.

Mesmo quando viam os imensos cortejos de gentes chorosas que seguiam num funeral, caixões de chumbo, corpos lacrados de jovens ou de pedras. E um povo assim sofrido é manipulado nas mais absurdas ideologias de dominação, as mortes tinham de fazer sentido, os inválidos tinham de ser vingados, os loucos tinham de ser esquecidos, os desertores eram clandestinos e chamados de fugidos a salto. Salto porque saltavam a fronteira da Espanha a pé sem serem vistos ou tentavam que assim fosse. Idos para terras que nem a língua conheciam e trabalho o mais miserável eras-lhes reservado como favor, afinal povo inferior.

Este povo olha para o mar há trezentos mil dias na crença que lá do outro lado poderão ser algo sem perseguições. Essa linha de horizonte que cria ilusões tão maravilhosas como funestas, ela que nos traz e mata as alegrias.

A água salgada cria laços de diálogo entre as diferenças, onde as lágrimas das mulheres são tão intensas, cansadas de ficarem sozinhas acreditavam que poderiam, sendo madrinhas, ter um coração aberto e correspondido. Perdidas nessas fantasias, a guerra impunha-se na chegada ou nos enterros de homens desconhecidos e atormentados, para quem elas haviam escrito, durante anos, todos os seus mais íntimos e inventados segredos.

Constança Lucas / 2001

Guiné 63/74 - P123: Op Mar Verde (invasão de Conacri) (5) (Afonso Sousa)

1. Mensagem do Afonso Sousa (22 de Julho de 2005), em resposta ao texto de A.Marques Lopes sobre o livro de Alpoím Galvão:

Binta, aonde estive !... Binta não era bem um quartel de mato, entalado no cerco alto do arame farpado, com velhos barracões de mancarra, outrora sinónimo de comércio, hoje com utilidades várias e sempre profundamente vazios. Vinham batelões rio [Cacheu] acima, sem perigos de morteiro, carregar colheitas de amendoim, que dariam óleo nos alambiques de Bissau. Não fossem as árvores e Binta seria agora um deserto.

Porquê, então, Binta ? Ponto estratégico (?), encostado ao Rio Cacheu, com Ganturé (nos tempos da guerra, a Base Fluvial de Alpoim Calvão) logo alí, um pouco mais a jusante (Bigene), ou local privilegiado para escoamento do produto.

O negrito talvez seja forte e quererá, também, significar que urge revisitar estes sítios !

Afinal fica claro. A Operação Mar Verde visava o derrube de Sekou Touré. O António Marques Lopes não refere se no livro o autor faz a justificação desse golpe de estado. Nós, no entanto, conhecemos alguns dos intentos, mas seria giro conhecê-los com maior profundidade através do seu maior protagonista (...).

2. Texto do A. Marques Lopes (23 de Julho de 2005):

Em especial para o amigo Afonso Sousa.

É muito claro no livro de Alpoim Calvão que o objectivo era derrubar o governo de Sékou Touré colocar no seu lugar a FLNG (Front de Libération National Guinéen), opositora do PDG, partido no poder, a qual impediria a existência de bases de apoio do PAIGC na Guiné-Conacri, o objectivo táctico. Com efeito, diz Calvão, a páginas 67-68:

"Desde 1964 que os oposicionistas guineenses, procuravam contactar, como é lógico, com as nossas autoridades. Foram-se trocando ideias, pesando possibilidades, mas não apareciam resultados práticos palpáveis. A política seguida pelo Governo Português dera origem a uma cautelosa estratégia militar, que considerava as fronteiras (?) tabu, permitindo assim que as unidades do PAIGC tivessem sempre possibilidades de refúgio, de recompletamento e de treino. Contudo, com a vinda do então Brigadeiro António de Spínola, as coisas tomaram outro rumo. Os oposicionistas guineenses começaram a sentir que havia viabilidades para realizações práticas que os poderiam ajudar a alcançar o objectivo das suas aspirações pertinazes — a queda do regime de Sekou Touré.

"As diversas ramificações do FNLG tinham vindo a contactar as autoridades portuguesas por canais diferentes — Ministério do Ultramar em Lisboa e Sub-Delegação da D.G.S. em Bissau. Esta, com o núcleo que se ia agrupando à sua volta, iniciou a recolha dum certo número de informações que, recortadas com as que vinham de Lisboa, fizeram perceber a amplitude da dissidência guineense.

"Foi primeira intenção do Governador e Comandante Chefe, instalar um ramo militar do FNLG algures em território da província, donde irradiariam acções de guerrilha contra o vizinho do Sul. Esta hipótese foi encarada em Outubro de 1969 começando-se os preparativos para a enformar. Necessariamente, assunto tão complexo levaria muito tempo a resolver em toda a extensão e assim de facto sucedeu.

"Mas com o decorrer do tempo, a viabilidade do plano parecia maior e verificava-se, com satisfação, que o projectado ataque aos navios do PAIGC em Conakry poderia ser perfeitamente enquadrado nas futuras operações de guerrilha do Front."

Mas diz ele [o Alpoím Galvão], logo à frente, que esta hipótese de uma guerrilha contra a República da Guiné a partir de território português levantaria problemas de política internacional junto da ONU e da OUA, pelo que, diz ele, "propôs que se executasse um golpe de Estado em Conakry o que obteve a imediata adesão do General Comandante Chefe".

Com esse objectivo, diz ele também, "após vários encontros de coordenação entre a parte portuguesa (Cap.ten.Calvão e Inspector Adjunto Matos Rodrigues [, da PIDE/DGS]) e os representantes do FNLG, realizados em Bissau, Paris e Genève, fizeram-se uma série de acções para a recolha do pessoal [do FNLG]" (p. 69).

Refere também que houve algumas reticências entre os operacionais desta acção. O major Leal de Almeida, supervisor da Companhia de Comandos Africanos, recusava-se a tomar parte nela, por achar ser contra a ética militar realizar uma operação contra o governo dum país com o qual não estávamos em guerra. Foi preso e mandado de helicóptero para Bissau, onde o General Spínola o mandou regressar novamente a Soga e reintegrar-se nas forças de assalto.

Mas esta atitude, reconhece ele [o Alpoím Galvão], teve efeito deletério no moral de alguns elementos da Companhia de Comandos Africanos. É assim que o capitão João Bacar Jaló, com grande ascendente sobre a CCA, revelou dúvidas e condicionalismos. Mas lá acedeu a participar. Esta situação terá, acho eu, tido alguma influência no resultado final da acção.

Claro que não restam dúvidas sobre os objectivos da Op Mar Verde. O Afonso Sousa tem razão.

Marques Lopes

Guiné 63/74 - P122: Bibliografia da guerra no feminino (2) (Jorge Santos)

Sugestão de leitura e selecção de Jorge Santos.

TÍTULO: As Mulheres e a Guerra Colonial
PUBLICAÇÃO: Revista Crítica de Ciências Sociais, 68
EDITORA: Centro de Estudos Sociais (Universidade de Coimbra)
DATA: Abril 2004

AUTORES E RESUMOS DOS ARTIGOS:

Margarida Calafate Ribeiro

África no feminino: As mulheres portuguesas e a Guerra Colonial

Procura-se traçar as linhas gerais que no discurso crítico histórico, político, sociológico e literário levaram a considerar a guerra como um fenómeno não exclusivamente masculino. Dentro da situação portuguesa, visa-se interpretar o "papel de apoio" que sempre esteve reservado às mulheres, de um ponto de vista público e privado, e analisar com mais detalhe a situação das mulheres portuguesas que acompanharam os maridos em missão militar em África, durante o período da Guerra Colonial.

Maria Manuela Cruzeiro

As mulheres e a Guerra Colonial: Um silêncio demasiado ruidoso

O texto pretende denunciar as várias camadas de silêncio com que a sociedade portuguesa fugiu ao encontro inevitável com a maior tragédia da sua contemporaneidade: a Guerra Colonial. A estratégia de ocultação, que oscila frequentemente entre o recalcamento e a denegação, atinge, quer os seus directos intervenientes (os militares mobilizados), quer as instituições do poder "político" e outro, quer sobretudo as suas vítimas mais ignoradas: as mulheres. Afastadas naturalmente da máquina de guerra, mas profundamente implicadas nos seus efeitos devastadores, o seu silêncio torna duplamente absurdo e incompreensível esse momento traumático da nossa história recente.

Helena Neves

Amor em tempo de guerra: Guerra Colonial, a (in)comunicabilidade (im)possível

O período da Guerra Colonial (1961-1974) produziu em Portugal profundas alterações de ordem demográfica, económica, social e cultural. Mas se o que é mensurável se encontra, hoje em dia, mais ou menos visível, há uma vertente que praticamente permanece por estudar: as vivências da intersubjectividade, dos afectos e das relações amorosas em tempo de guerra. O que se apresenta é um levantamento empírico desta problemática que urge analisar.

Maria Manuel Lisboa
"Até ao fim do mundo": Amor, rancor e guerra em Hélia Correia

A peça de teatro de Hélia Correia, O rancor: Exercício sobre Helena, oferece a base para uma análise textual do entendimento clássico e moderno do papel da mulher no contexto da guerra. As mulheres, na versão contemporânea de Hélia Correia, reproduzem e acentuam alguns dos indícios já disseminados pela tragédia e epopeia gregas, nomeadamente a problemática da sexualidade feminina e da paixão, enquanto forças contrapostas ao instinto belicoso masculino, por aquelas eventualmente derruido.

A leitura aqui apresentada focaliza aspectos variados da justaposição dos sexos no contexto da guerra: nomeadamente, a dinâmica entre mãe e filha enquanto agentes de um feminino solidário em confrontação com o imperativo belicoso masculino; a relação mãe-filho conforme inscrita no dilema edipiano filial de opção entre o pai guerreiro e a mãe atavicamente amada; a questão da maternidade/paternidade e do sacrifício voluntário ou recusado de filhos e filhas aos interesses da guerra; e o problema da representação passional do inimigo enquanto objecto de desejo e figuração do ideal do bem-amado.

Roberto Vecchi

Incoincidências de autoras: Fragmentos de um discurso não só amoroso na literatura da Guerra Colonial

Se a guerra é por excelência o território do androcêntrico, a experiência traumática da guerra e a sua representação pelo olhar feminino enxertar-se-ão numa margem periférica, numa orla de deslocação da própria experiência traumática. Deste ponto de vista, o feminino torna-se por excelência um “olhar testemunhal”, sendo a possibilidade sobrevivente, residual, da impossibilidade do testemunho integral diante do evento traumático. Uma deslocação esta que evidencia a não coincidência entre experiência e imagem, própria do testemunho, em que lógos e memória femininos se tornam portadores contundentes de um outro lógos, duma contra-memória.

Os romances de Wanda Ramos e Lídia Jorge são recolocados também na problemática trágica da aporia testemunhal, mostrando como uma reflexão crítica sobre o trágico moderno pode proporcionar uma perspectiva mais compreensiva de uma literatura problemática – pelo seu corpo a corpo com a história – como a da Guerra Colonial.

Ana de Medeiros
Re-escrevendo a História: A Costa dos Murmúrios de Lídia Jorge e L’Amour, la Fantasia de Assia Djebar

Dentro do tema geral da incompatibilidade entre a vida privada e a vida pública, decidi concentrar a minha atenção numa série de elementos comuns aos dois textos em análise e que explicam, em parte, a sua qualidade subversiva, num sentido político e histórico: a ideia das representações dominantes da mulher como falsas representações, o restaurar do passado da auto-representação feminina e o reconhecimento da necessidade de representar as diferenças entre mulheres. O trabalho de Lynn Hunt sobre a Revolução Francesa servirá como espaço teórico para início da minha análise.

Laura Cavalcante Padilha
Dois olhares e uma Guerra

A partir da leitura das obras poéticas Sangue negro (2001) e É nosso o solo sagrado da terra (1978), respectivamente de Noémia de Sousa e Alda Espírito Santo, o texto procura surpreender dois olhares africanos sobre a guerra, em perspectiva ao mesmo tempo étnica e de género. Para além disso, discute-se o duplo gesto de nomeação do conflito: a mudança, no universo discursivo, do sistema de referências imposto pelo colonialismo e, consequentemente, a encenação da interioridade de novos sujeitos históricos femininos.

Dossier
Dois depoimentos sobre a presença e a participação femininas na Guerra Colonial

Depoimento de Elsa Adler Gomes da Costa
Depoimento de Ivone Reis