sábado, 15 de outubro de 2005

Guiné 63/74 - P222:Op Lança Afiada (1969): (i) À procura do hospital dos cubanos na mata do Fiofioli (Luís Graça)

Guiné-Bissau > Zona Leste > Xitole, 2001: Ponte Marechal Carmona , sobre o Rio Corubal, na estrada Bambadinca-Xitole-Aldeia Formosa.

© David J. Guimarães (2005) (ex-furriel mil. da CART 2716, Xitole,1970/72)


Iniciada em 8 de março de 1969 com a duração de 11 dias, a Op Lança Afiada foi uma das grandes operações que se realizaram na época (*), ainda no início do consulado do brigadeiro António Spínola (1968-73), um mês depois da trágica retirada de Madina do Boé (**).

A Op Lança Afiada envolveu cerca de 1300 homens, entre militares, milícias e carregadores. Houve cerca de duas dúzias e meia de flagelações das NT por parte dos guerrilheiros, os quais no entanto se furtaram ao contacto directo. As populações sob controlo do IN passaram, com alguma segurança, para o lado do rio Corubal. Os fuzileiros não puderam ou quiseram participar nesta operação, que também não envolveu outras tropas especiais (comandos e paras). Foi, pois, uma operação só com tropa macaca, embora a nível de regimento, sendo comandada por um coronel de infantaria (Hélio Felgas). Quase um terço dos efectivos eram carregadores !!!

Pensava-se que em Mina, junto ao Rio Corubal, estaria sedeado o Comando do Sector 2, da estrutura político-militar do PAIGC. Pensava-se também que havia um grande hospital, com médicos e enfermeiras... cubanas!

Do ponto de vista militar, a operação foi um bluff... Em contrapartida, houve inúmeras evacuações (n=110) dos nossos combatentes, devido a problemas de insolação, desidratação, desnutrição, esgotamento físico e stresse psicológico... É interessante a análise do autor do relatório sobre os sucessos e os insucessos desta megaoperação de...limpeza.

Damos hoje início à publicação de alguns excertos desse relatório. Tratando-se de uma fotocópia de um documento dactilografado e possivelmente policopiado a stencil, com data de 1970, há erros e omissões que  procurámos colmatar ou corrigir, sempre que possível. Também substituímos algumas abreviaturas para tornar o texto mais legível para os paisanos ou os que não fizeram tropa nem estiveram na Guiné.

L.G.

(*) Vd. post de 31 de Julho de 2005 > Guiné 63/74 - CXXXI: As grandes operações de limpeza (Op Lança Afiada, Março de 1969)

(**) Vd. post de 2 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXXXIII: O desastre de Cheche, na retirada de Madina do Boé (5 de Fevereiro de 1969)

__________________

Fonte: Extractos de: Guiné 68-70. Bambadinca: Batalhão de Caçadores nº 2852. Documento policopiado. 30 de Abril de 1970. c. 200 pp. Cap. 48-54. Classificação: Reservado (Agradeço ao Humberto Reis ter-me facultado uma cópia deste documento em formato.pdf)

Op Lança Afiada (8 a 19 de Março de 1969) - I parte

1. Situação: Inimigo

1.1. Desde há anos que a região da margem direita do Rio Corubal até à linha Xime-Xitole, é considerada uma zona de refúgio e preparação do IN [inimigo]. A profundidade continental da região, a sua espessa arborização (excepto na franja marginal do Rio), a falta de trilhos e caminhos, a grande distância a que ficam os aquartelamentos mais próximos (Xime, Mansambo e Xitole), tudo isto são características que convidam o IN a permanecer na Zona, em relativa tranquilidade.

O IN sabe que detecta facilmente qualquer tentativa de aproximação das nossas Forças Terrestres. Se a aproximação terrestre é difícil, a actuação das FN [Forças Navais] parece facilitada pela existência do Rio Corubal. E a tal ponto que, em estudo realizado por este Comando, a área da margem direita do Rio Corubal, desde a Ponta do Inglês a Cã Júlio, foi considerado uma área que devia ser batida pelas NT [Nossas Tropas] em operação conjunta de meios navais e helitransportados.

A deficiência destes meios contribuiu para o quase completo sossego em que o IN tem vivido na área, controlando uma população de balantas e biafadas que o alimenta e que se reputa numerosa. E determinou a realização da Op Lança Afiada com o emprego exclusivo de forças terrestres.


1.2. O reconhecimento aéreo e as poucas operações realizadas não dão uma ideia muito clara acerca do IN na região considerada. Admite-se no entanto que existam na região pelo menos 5 bigrupos e um grupo de artilharia.

As acções ofensivas do IN tem sido relativamente espaçadas e dirigidas contra o Xime, Mansambo e Xitole, além de emboscadas nas estradas Xime-Bambadinca e Mansambo-Xitole e de penetrações contra tabancas fiéis na direcção do [regulado do] Cossé e na área entre o Xitole e Saltinho.

Embora apresentando bom potencial de fogo (canhão s/r, mort 82 e 60, LGFog, etc.), o IN continua a mostrar uma execução deficiente. As reacções à actividade das NT não têm sido muito fortes. Mas os poucos trilhos de acesso estão normalmente armadilhados. O IN embosca por vezes as NT quando regressam a quartéis. 

Além disso tem tiro de Mort 82 preparados sobre os seus próprios acampamentos, executando-os quando as NT os ocupam. E as arrecadações de material e armamento encontram-se em geral afastados dos acampamentos.

De uma maneira geral podem considerar-se as seguintes áreas principais de concentração IN:

1 – Poindon;
2 - Baio-Buruntoni;
3 - Gã Garnes (Ponta do Inglês);
4 - Ponta Luís Dias (Calága) – Gã João;
5 - Mangai -Tubacuta;
6 - Madina Tenhegi;
7 - Fiofioli;
8 - Cancodeas;
9 – Mina – Gã Júlio;
10 – Galo Corubal – Satecuta;
11- Galoiel.


1.3

a) Área de Poindon:

Localização aproximada – (1500 1155 B2). RVIS efectuado em novembro de 1968 revelou que toda a área se encontrava muito povoada tendo sido referenciadas mais de 15 casas de mato distribuídas por 2 núcleos. As bolanhas estavam cultivadas.

b) Área de Baio-Buruntoni:

Baio – Localização aproximada: (1500 1150 G7); deve ser uns dois a três km a Oeste. Chefe: Mário Mendes. Efectivo aproximado: 1 bigrupo dividido com Varela.

Burontoni – Localização aproximada: (1500 1150 G7) e (1455 1150 A 7). Efectivo aproximado: 100 homens: Armamento: MP, Mort 82 e 650, LGFog.

c) Área de Gã Garnes (Ponta do Inglês):

Localização aproximada – (1500 11540 B5-5) com trilhos de acesso a Baio e à Ponta João da Silva. O itinerário a seguir quando se vem da Ponta do Inglês atravessa o Rio Buruntoni em (1500 1150 A2 -82). Efectivos e armamento: mais de 15 homens com Mort, LGFog, etc.

d)
Área de Ponta Luís Dias – Gã João:

Ponta Luís Dias – Localização: (1505 11?3 F3 ou G2 G0-44). O itinerário mais fácil parece ser pela margem do Rio Corubal mas na época seca pode ir-se partindo de Gã Garnes. Efectivos: Cerca de 25 (?) elementos, armados de MP, ML, Mort 82 e 60, LGFog., etc. Consta talvez (?) 1 Canhão s/r em Ponta Luís Dias, apontando para o Corubal.

Gã João - Localização: (1505 1150 H5 ou I6 ou 13-55). Acessos idênticos ao acampamento de Ponta Luís Dias. Pode ficar à direita da picada Ponta Luís Dias – Ponta do Inglês sobre um trilho que parte desta. Foi localizado um grupo de casa em 1505 1150 G9-2.

e) Área de Mangai-Tubacuta:

Mangai – Localização: (1505 1145 G8). O acesso é mais fácil pela margem do Corubal. Por terra o acesso mais fácil parece ser por Madina Tenhegi (1500 1150 E2). Efectivos: 1 Gr Artilharia, parte em Tubacuta.

Tubacuta – Localização: (1500 1145 B9 B6 ? ), entre a tabanca e a Casa Gouveia, ao pé da bolanha. O acesso é mais fácil pela margemdo Rio Corubal ou partir de Madina Tenhegi. Efectivos: mais de 100 homens com cubanos.

f) Área de Madina Tenhegi:

Não há referências sobre acampamentos IN.

g) Área de Fiofioli:

Localização: (1500 1145 E4 ou D5). Não são conhecidos os acessos à área. A mata do Fiofioli é muito [ densa ? ] e está praticamente cercada por bolanhas que o IN provavelmente baterá. Efectivos: talvez 1 bigrupo. Consta existir um hospital, com médicos cubanos.

h) Área de Cancodeas:

Cancodea Balanta – Localização: (1500 1145 E3). Efectivos: 50 homens armados.

Cancodea Beafada – Localização: (1500 1145 G2)

1) Área de Mina – Gã Júlio:

Mina – Localização: Em (1500 1145 h6 ou I6), na mata próxima da tabanca, dividida em dois núcleos, afastados cerca de 400 metros. Um núcleo é formado pelas instalações de pessoal e pelo posto de rádio. Parece ser aqui o comando do Sector 2 do IN. Consta haver uma enfermaria com cubanos. Há quem diga existir 200 elementos IN. Mas há quem diga serem poucos. A reacção à operação dos páras em 16 de dezembro de 1968 foi nula. Em novembro de 1968 foi indicada a existência de canhão s/r, 10 LGFog, 5 metralhadoras Degtyarev, 1 morteiro 60, etc.

Gã Júlio – Localização: (1500 1145 D4 ou E4). Não há outras indicações.

j) Área de Galo Corubal – Satecuta:

Galo Corubal – Localização (1455 1145 D4 ou E4), no fundo do palmar e a cerca de 300 m do Rio Corubal. O acesso tem sido feito pelo Norte do Rio Pulon desde a estrada Xitole-Mansambo, mas as NT têm-se perdido por vezes. O acesso, atrvés do Rio Pulon, próximo da foz, por Seco Braima, pode ser efito na época seca. Efectivos e armamento: Considerados poucos, mas com MP, ML, Mort LGFog.

Satecuta – Localização (1455 1145 D2 ou E2 ou F2), a oeste de Seco Braima. Acesso idêntico ao de Galo Corubal. Em meados de 67, apresentava grande actividade IN. O acampamento foi detsruído em Maio de 68, baixando a actividade IN. Efectivos: ignoram-se mas parecem dispor de MP, ML, Mort LGRFog.

l) Área de Galoiel:

Localização (1455 1150 F1) próximo de Galoiel. Ataque das NT em 28 de Novembro de 1968 repelido pelo IN. Novo ataque em 23 de Dezembro não tendo o IN oferecido quase resistência. Efectivos entre 20 a 30 elementos, armados com LGRFog, Mort 82, ML, etc.


1.4. Admite-se que, sendo a Op Lança Afiada, uma operação demorada, o IN tenha possibilidade de reforçar os seus bigrupos, exercendo um esforço sobre este ou aquele dos nossos destacamentos. Admite-se também que quer as populações civis sob controlo In quer o próprio IN atravessem de noite o Rio Corubal, furtando-se assim ao contacto com as NT.


2. Missão:

  • Atacar e destruir ou capturar o IN em toda a região da margem direita do Rio Corubal, entre este rio e a linha Xime-Xitole;
  • Nomadizar na região procurando trilhos que serão imediatamente explorados;
  • Capturar a população civil;
  • Destruir todos os meios de vida encontrados e que não possam ser oportunamente transportados.


Carregadores do PAIGC. Fonte: Regiões Libertadas da Guiné (Bissau). Pequim: Edições em Línguas Estrangeiras. Agência de Notícias Xinhua. 1972.© Agência de Notícias Xinhua (1972).


3. Força executante

a. Comandante: Coronel inf Hélio Felgas.

b. Comandantes das sub-unidades:


Agrupamento táctico norte: 

Ten. Cor. Manuel M. P. Bastos: Dest A > CART 2338 ; Dest B > CART 1746 (Xime); Dest C > CART 1743 ; Dest D > CCAÇ 2403 (Fá Mandinga);

Agrupamento tático sul: 

Ten. Cor. Jaime Tavares Banazol: Dest F > CART 2339 (Mansambo); Dest G > 2405 (Galomaro); Dest H > CART 2413 (Xitole); Dest I > CCAÇ 2406 (Saltinho).

(…) Cada Dest levava cerca de 12 carregadores por Gr Comb (sendo este variável de companhia para companhia). Para enquadramento e protecção destes carregadores foram utilizados 3 Pelotões de Milícias distribuídos pelos vários Dest.

Total dos efectivos (1291) empregues:

a) Militares:36 oficiais; 71 sargentos; 699 praças;
b) Milícias: 106;
c) Guias e carregadores 379 (…) .

(continua)
________

Abreviaturas

Canhão /sr = Canhão sem recuo
Dest = Destacamento
LGFog = Lança-granadas-foguetes
ML = Metralhadoras ligeiras
Mort = Morteiro
MP = Metralhadoras pesadas

sexta-feira, 14 de outubro de 2005

Guiné 63/74 - P221: A galeria dos meus heróis (2): Iero Jau (Luís Graça)




Guiné > Região de Bafatá > Contubel > Centro de Instrução Militar >  Junho de 1969 > O 2º Gr Comb da CCAÇ 2590 (futura CCAÇ 12), ainda em período de instrução da especialidade 

A este Gr Comb pertencia o Soldado de 2ª classe Iero Jau, que viria a morrer dois meses e tal depois, em 7 de Setembro de 1969, na Região do Xime, no decurso do assalto a um acampamento do IN (Op Pato Rufia). Não consigo localizar o Iero Jau nesta foto de grupo.

Foto  ( e legenda) © António Levezinho (2005). Todos os direitos reservados. 

Texto de L.G.


Poema > Descansa em paz, Iero Jau

A guerra.
Essa coisa tão primordial que é a guerra.
Que estaria inscrita no teu ADN,
Segundo dizem os sociobiólogos.
A guerra é a continuação da evolução
Por outros meios,
Dirão os entomólogos,
Especialistas em insectos sociais,
Para quem a morte de um
Ou de um milhão
De formigas ou de seres humanos,
É-lhes totalmente indiferente.
Desde que triunfe o ADN,
Um projecto de ADN
Musculado.

Para mim, a guerra é
A aprendizagem da morte.
Aos vinte e dois anos.
É a inocência que se perde
Para sempre
Ao ver morrer pela primeira vez
Um homem, a teu lado.
É o impossível luto.
É a descoberta do mal absoluto.

Fight or flight.
Não precisei de fugir nem de lutar.
Recusei o egoísmo genético.
Recusei a lógica absurda
De matar ou morrer.
Recusei o cinismo.
Recusei a fria e calculista resignação
Com que se juntam e amortalham
Os cadáveres seguintes.
E se contam nas paredes da caserna
Os dias que faltam para a peluda.

Trinta e tal anos depois,
Venho dizer-te
As palavras que ninguém te disse
No teu grotesco enterro:
- Descansa em paz, Ieró Jau,
Meu herói!
Soldado atirador
Do 2º Grupo de Combate
Da CCAÇ 2590
Que virá mais tarde a chamar-se
CCAÇ 12.
Companhia de tropa-macaca,
A minha companhia,
Os meus camaradas,
O meu bando de primatas sociais,
Territoriais, predadores.
Fazíamos parte da nova força africana
De Herr Spínola, o prussiano,
Como eu lhe chamava,
Ao nosso Comandante-Chefe.
Não, não ligues,
São outros contos, outras estórias,
Outros ajustes de contas
Com as nossas doridas memórias.

Dscansa em paz,
Iéro Jau,
Debaixo do poilão secular
Na tua tabanca,
No chão fula,
Belíssimo poilão de uma triste tabanca fula,
Cercada de arame farpado,
Trincheiras e valas de abrigo.
Julgo que eras do regulado de Badora.
Ou seria Cossé,
Lá para os lados de Galomaro ? (1)

Desculpa-me ter esquecido
O nome da tua tabanca.
E a cara dos teus filhos
E o rosto das tuas mulheres,
Agora órfãos e viúvas,
Sozinhos neste mundo.
Os teus campos estão tristes e inférteis.
Já não dão o milho painço nem o fundo,
Nem a mancarra
Nem a noz de cola.
Os homens partiram para guerra.
Voltam agora numa caixão de pinho.
Restam os macabros jagudis,
Poisados no alto da tua morança,
Cheirando a morte,
Pressagiando a desgraça

Sete de Setembro de 1969.
Região do Xime.
Operação Pato Rufia (2).
Morreste em linha.
Aprumado como o teu poilão.
No assalto a um aquartelamento temporário do IN,
Próximo da Ponta do Inglês.

IN ? Que estranho termo ou expressão…
Uso-o por força do hábito,
Por comodidade,
Por lassidão,
Por economia de análise.

Curioso, nunca soube a tua idade.
Não tinhas bilhete de identidade
De cidadão português.
Eras um fula preto, um fula forro,
Não creio que fosses futa-fula.
Mas eu levei-te a enterrar na tua aldeia,
Mais os teus camaradas,
Que foram dizer-te ó último adeus.
Com honras militares, tiros de salva,
E a bandeira verde-rubra dos tugas
Por cima do teu caixão.
De pinho.
Do verde pinho de Portugal.
Nem isto te deixaram fazer
À maneira dos teus.

Portugal ? Ainda te lembras,
Os senhores que vieram do norte
E do lado mar.
Não, já não tens que saber de geografia.
Nem de história. Nem de geopolítica.
No sítio onde moras, debaixo do teu poilão.
Mas eu, mesmo ao fim destes anos todos,
Eu deveria saber o nome da tua aldeia,
No chão fula.
O teu nome, esse não esqueci,
Ieró Jau.
Esqueci foi o lugar onde nasceste,
Talvez Sinchã ou Sare qualquer coisa,
Mas faz mal.

O que interessa é que chorei por ti,
Confesso que chorei por ti,
Que morreste a meu lado,
E que levavas um prisioneiro,
Teu irmão,
Pela mão.
E que não eras meu irmão.
Nem grande nem pequeno.
Nem tinhas a mesma cor de pele.
Nem a mesma religião.
Nem a mesma língua.
Nem a mesma pátria.
Nem o mesmo continente.
Não comias carne de porco
Nem bebias água de Lisboa.
Eras apenas um guinéu,
Um nharro,
Soldado-atirador
De 2ª classe.
Ganhavas 600 pesos de pré.
Um saco de arroz por mês
Para alimentar a tua família.
Para mim, eras apenas um homem,
Da espécie Homo Sapiens Sapiens.
A única que chegou até aos nossos dias.
O que primeiro que eu vi morrer a meu lado.
Nunca mais chorei por ninguém.
Chorei por ti, Ieró Jau.
Chorei de raiva.

Nascemos meninos,
Mas fizeram-nos soldados.
Azar o meu e o teu,
Por termos nascido
No sítio errado,
No tempo errado.
Imagino-te djubi,
À volta da fogueira,
Na morança do marabu ou do cherno
Da tua tabanca,
Decorando o Corão.
Uma das cenas mais lindas
Que eu trouxe da tua terra,
E que eu guardo na minha memória,
São os djubis à volta da fogueira,
Soletrando tabuínhas em árabe.
Lembro-me de quereres aprender
As letras dos tugas
Para poderes ser soldado arvorado
E um dia chegares a cabo.

E de repente, o capim.
O capim alto.
O sangue.
O capim pisado e empapado de sangue.
Pobre Ieró,
Morto por um dilagrama dos nossos.
Alguém branqueou a tua morte.
Alguém salvou a honra da companhia.
Um dilagrama rebentou no ar,
Na tua cara.
Acidente de serviço
No auge da batalha,
Quando avançavas em linha,
No assalto ao acampamento
Do IN,
Levando pela corda
O teu turra, o teu guia, o teu prisioneiro,
Ainda mais jovem do que tu.
Malan Mané, mandinga (3),
Tão crente como tu,
Tão observador dos preceitos corânicos
Como tu, meu querido nharro.

E agora, Ieró,
Que foste poupado
À humilhação da derrota
E não viste o teu país
Sentar-se de pleno direito
À mesa do mundo...
Que farias tu com esta independência
Contra a qual lutaste
Sem querer
Sem saber
Sem poder ?

Onde estarão os teus filhos, e as tuas mulheres ?
E os teus netos ?
E os homens grandes da tua tabanca de Badora ?
E os líderes do teu povo
Que te obrigaram a combater ao lado dos tugas ?
Herr Spínola, o homem grande de Bissau,
Esse já morreu há uns anos atrás.
Não lês os jornais,
Não chegaste a aprender o alfabeto latino
E a juntar as letrinhas e ler,
Com a torre de Belém ao fundo:
- Esta é a minha pátria amada…
Pois é, o homem grande de Bissau morreu,
Não de morte matada, como a tua,
Mas de acordo com a lei natural das coisas.
Quanto ao teu régulo,
Devem-no tê-lo miseravelmente fuzilado
Na parada de Bambadinca,
O poderoso régulo de Badora,
Tenente de milícias,
Que havia trocado o cavalo branco
Da gesta heróica do Futa Djalon,
Por uma prosaica motorizada japonesa
De 50 centímetros cúbicos...
Dono de centenas cabeças de gado
E de uma harém de cinquenta mulheres,
Uma em cada aldeia de Badora…
Dizia-se que o puto Umaru
Era filho dele,
O Umaru e mais soldados da CCAÇ 12.

Hoje os heróis do passado sucumbem
Sob o peso das cruzes de guerra.
Ou pedem esmola nas ruas de Bissau,
Tal como os teus filhos e netos.
Ou morrem de desespero e insolação
Às portas do templo da deusa Europa,
Em Ceuta e em Melilla.
Que voltas o mundo deu, meu soldado,
Desde esse dia já distante
Em que a tecnologia da guerra
Ou a lotaria do ADN
Te ceifou a vida.
Porquê tu, meu herói,
Três meses depois de jurares bandeira
E te comprometeres, por tua honra,
A defenderes uma pátria que não era tua,
Até à última gota do teu sangue ?

E do Malan Mané não tenho notícias,
Se é isso que queres saber,
Mas duvido que ele tenha sobrevivido
Aos graves ferimentos do dilagrama dos tugas.
E agora deixa-me dizer-te, amigo,
À laia de despedida:
Não sei se um dia
Ainda terei coragem de voltar
À tua terra, ao teu chão.
Mas se porventura o fizer,
Gostaria de perguntar pela tua aldeia,
E de procurar-te
E de ter tempo para conversar contigo,
Só tu e eu,
Debaixo do teu poilão.


Luís Graça
_______________

(1) Vd. carta da Guiné (1961), dos serviços cartográficos do exército.

(2) Vd. post de 8 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXLVI: Setembro/69 (Parte I) - Op Pato Rufia ou o primeiro golpe de mão da CCAÇ 12

(3) Vd. post de 9 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXLVII: Malan Mané, guerrilheiro, vinte anos, mandinga

Guiné 63/74 - P220: Mininus di Nha Tera (poema de Nelson Medina, em kriol) (Marques Lopes)

Texto de A. Marques Lopes, enviado em 2 de Agosto de 2005 (pede-se desculpa pelo atraso da inserção no blogue, mas o trânsito, no ciberespaço, esteve engarrafado...).

Como com todas as coisas da Guiné, também me interesso pelo crioulo lá falado. Tenho, por isso, alguma obras:


1. "O crioulo português da Guiné-Bissau", de Hildo Honório do Couto, professor da Universidade de Brasília, publicado pela Helmut Buske Verlag, de Hamburgo, mas está escrito em português.

Para adquirir este livro, contactei directamente o autor, via internet, pois é o único que me apareceu com alguns exemplares e vendeu-me um.

Dedicada "às crianças e aos adolescentes da Guiné-Bissau, que frequentemente descalços e mal-nutridos até se divertiam com as minhas constantes importunações com gravador e perguntas", é uma obra muito interessante de um estudioso universitário sobre a visão histórica, a situação linguística, a fonética, a morfologia, a sintaxe e a semântica do crioulo da Guiné.Bissau. Tem, no final, alguns textos na língua.

2. "Vokabulari kriol-portugîs (Esboço - Proposta de Vocabulário)", da autoria do padre Artus Biasutti, da Missão Católica de Bafatá, e publicado em 1987 pela Missão Católica de Bubaque.

É um belíssimo dicionário que já me tem sido muito útil. Tem, no final, sessenta ditus (provérbios), escolhidos entre centenas que o padre Luis Andreoletti recolheu de viva voz entre o povo da Guiné. Têm uma tradução literal e uma interpretação mais ou menos acertada.

Foi-me enviado pelo meu amigo António Nhaga, jornalista guineense da Agência Bissau Média e Publicações.





3. "O crioulo da Guiné.Bissau: Filosofia e Sabedoria", de Benjamin Pinto Bull, edição conjunta em 1989 do Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, de Lisboa, e do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa, de Bissau.

Embora tenha sido impresso em Lisboa, foi também o António Nhaga que mo enviou. Diz ele no início: "Garandi k' jungutu ta ma oja lunju di ke mininu k' sikidu", isto é, um ancião de cócoras vê mais longe que uma criança de pé.

Tem muitos provérbios e histórias em crioulo, com tradução e explicação linguística sobre as formas usadas. Tem um pequeno dicionário no final.





4. "Lus numia na sukuru - Storia di igreza ivangeliku di Gine-Bisau 1940-1974", de Hazel Wallis, editado pela Igreja Evangélica de Bubaque em 1996. "A luz que ilumina no escuro" é a história da igreja evangélica na Guiné. Foi o Nhaga que mo enviou. Está escrito completamente em crioulo.

Exemplo dos esforços que as várias igrejas fazem para se inserirem naquele meio. Um exemplo de texto interessante:

"Igreza fora di Bisau na tempu di gera. Na tempu di gera, tarbaju paradu na manga di kau. Prediu di igreza kemadu na Inkida, Empada, Kancungu, Enseia, Lenden. Bai bias kansadu, ma mesmu asin igreza na kirsi. Na 1962 igreza na Katio kemadu na kampana di purtugis kontra "jintis di matu". Purtugis kemaba tudu kau ku "jintis di matu" pudiba sukundiba nel. Barbosa staba na Bisau; i ka pudi riba pá Katio. Utrora jinti pudiba bai di avion o barku di gera, ma sempri un misionariu ten ku kumpana Barbosa pá gubernu purtugis pudi fiai. Krentis kontinua ku kuitu na se propi kasa, pabia i ka bin sedu pusivel torna lantanda ki kasasinu. Na tudu área ku staba libertadu, krentis ku pajigadu e ka osa junta pá fasi kuitu. Ma krentis ku staba na tropas pudi ciga na kau ku utrus ka pudi visita. Lourenço Correia di Bisoran mandadu pá Katio. La i o j a ki grupu di krentis pajigadu ku medu. Son puku ku sobraseis o talves dozi. Jinti konverti. E misti torna lantanda ki igreza ku kemadu ma i ocadu mas bon pá e kontinua fasi kuitu na se kasas".

Caros amigos, pratiquem o crioulo...


5. "Sol na mansi", de Nelson Medina. Foi o Nhaga que me mandou também este "Amanhecer do sol". Edição de 2002, feita no âmbito do apoio da União Europeia ao Programa de Incentivos e Iniciativas Culturais para a Guiné-Bissau. Impresso em Bissau.

É um livro de poemas em crioulo, exemplo da literatura actual da Guiné-Bissau. Aqui vai um exemplo Vou tentar depois fazer a respectiva tradução para português:


MININUS Dl NHA TERA

Sol na kenta foroba
fuska-fuska na djimpiniba dja
mininus ku bariga pimpinhidu di reia
na miskinha
i mas un dia di formi
ku na dispidi

Kurpu intchadu pabia di kandjan
kurpu di sarna ku pe di djigan
mininus di nha tera
tristis pabia susegu ka ten
ma ku rostu finkadu na speransa di amanha

Mininus di nha tera
tene speransa forti
flur di amanha
aos sin kantchaklet

Nelson Medina


CRIANÇAS DA MINHA TERRA

O sol aqueceu as alfarrobas
mas a escuridão vai já espreitar
e as crianças com a barriga dorida de areia
vão queixar-se
e de mais um dia de fome
vão despedir-se

O corpo inchado pela lanterna
corpo de sarna com pé de matacanha
crianças da minha terra
tristes porque descanso não têm
mas com o rosto fincado na esperança de amanhã

Crianças da minha terra
esperem com firmeza
flor de amanhã
agora sem seiva

Nelson Medina

(tr. de A. Marques Lopes)

quinta-feira, 13 de outubro de 2005

Guiné 63/74 - P219: Crónicas de Bissau (ou o 'bombolom' do Paulo Salgado) (2)

Guiné > Olossato > CCAV 2712 (1970/72) > Um patrulhamento "à maneira" © Paulo Salgado (2005)

Texto do Paulo Salgado (i) que vive em Bissau, (ii) e que descobriu que é vizinho do Jorge Neto no Bairro da Cooperação, (iii) e que estranha o silêncio do Humberto Reis (eu acho que ele está é no bem-bom duma estância de turismo em Cabo Verde), (iv) e que por fim submete à aprovação da tertúlia a admissão da Paula Salgado, sua filha, mais guineia que muito guinéu...

Eu cá, por mim, terei muita honra em apadrinhar a nova tertuliana, a nossa doutoranda Paula, mas aqui quem mais ordena é o colectivo dos tertulianos: no nosso tempo as mulheres não entravam nas casernas, mas isso foi no século passado... Bom, não quero influenciar o resultado da consulta tertuliana. Limito-me a dar a minha opinião. E já agora, cá para mim não entrava só uma camariga, entravam duas, a filha e a mãe, neste caso a Maria da Conceição, a mulher do Paulo... Mais: respeito o silêncio (ou o pudor) do Paulo que tem uma cópia da história da companhia dele mas que não quer escarrapachá-la aqui no blogue, assim, sem mais nem menos, as folhas todas abertas... Respoeito e concordo, desde que o bombolom do Paulo vá trazendo notícias e estórias da Guiné-Bissau de ontem e de hoje. Hoje publica-se, a seguir, "mais uma parte do Capítulo I". Até à próxima Paulo e Maria, gente de cepa rija, que não desanima facilmente com o macaréu da desgraça... LG
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Camaradas e Amigos (aqui incluo a minha filha Paula Salgado – a camariga que vive em Oxford e que adora ouvir as histórias e as estórias do velhote - camariga que só o será com a licença de vossas mercês, pois ela fez aqui o 11.º ano e papia kriolo diritu i tene amigus manga deli).

Ele é a sina de conduzir os periquitos (designação que se dava às companhias que chegavam da metróple à Guiné – e os velhinhos até cantavam: Periquito vai pró mato, a velhice vai pra Bissau; bem se compreende o desaforo: os novos que gramassem!). E vai-se a Quinhamel, a Uaque, ao Saltinho, conhece-se o rio no cais do Pidjiguiti, são os colegas que chegam do Porto para colaborar no Projecto.

Ele é o corre-corre no campus hospitalar à procura não sei de que solução para tantos problemas, tantos que as gentes já passam indiferentes ao sofrimento, tenha ele a feição e a forma e a dimensão que tiverem: a cólera, a malária, a elevada taxa de mortalidade infantil e maternal… E coisas mais simples como o gerador que avariou e … não há luz nem água para enfermarias, nem PC que registe, nem a fresquidão de ventoínhas e de ares condicionados onde os há, e lá se vão, estragados, os parcos reagentes do laboratório de análises clínicas (35 horas sem luz é muita hora!), e as intervenções marcadas que ficaram no papel (até foi necessário transportar de longe água para desinfecção e dar ao doentes da cólera). Isto só visto, camarigos!

No Olossato, os frigoríficos a petróleo ou a electricidade do geradorzinho aguentavam lindamente… Alguns camaradas até tinham ventoínhas que colocavam no cimo da cabeceira, seguras na parede, para refresco de suores quentes - adivinham-se quais - ou frios, estes devidos a saída iminente para o mato, ali para Manacá, ou Amina Dala, ou Iracunda, esta tabanca bem perto do Morès, ver foto de saída bem cedinho e dizei lá se não era à maneira correcta!!!...

Ah!, aquelas ventoinhas pequeninas que nos batiam no corpo sedento de amor, e que, rodopiando, serviam para afastar os insistentes mosquitos que teimosamente zumbiam aos nossos ouvidos – porra, a mim não me deixavam nem sequer fechar os olhos. Aquele geradorzinho até dava para alumiar os campos até 100 metros, e encandeavam as tropas quando regressavam de sortidas nocturnas.

Acho que estas coisas todos vivemos…! Até se conta a estória de um capitão, de que não digo o nome, que se lembrou de apagar os holofotes em momento de ataque e, pasme-se, quando o IN estava a tentar entrar no aquartelamento, foi uma razia nos guerrilheiros ao acenderem-se as luzes. Se tal foi verdade, como ouvi, foi uma emboscada nocturna a preceito...

Mas a sério: quem não se lembra de uma patrulhamento, bem feito? – segue foto



Então não é que o Jorge Neto [nosso tertuliano, autor do blogue Africanidades] vive aqui paredes meias no Bairro da Cooperação, no segundo piso. E esta, enh?!

Para a visita à GB [Guiné-Bissau], para aqueles que quiserem e puderem, vamos começar a trabalhar.

Nota bem: Eu devo confessar-vos uma coisa – tenho a história da companhia [CCAV 2712, comandada pelo capitão Mário Tomé, entre 1970 e 1972]. Parece-me pouco correcto que a traga a terreiro. Mas tentarei traduzi-la, sem romancear, mas recontando-a à minha maneira.

Que me desculpem os historiadores, que me perdoem os puros… mas há coisas que eu não acho oportuno contar, por escrito.

A todos os Camaradas e Amigos muitas mantenhas e com a promessa de que podeis contar comigo porque eu tenho, também, a segurança à retaguarda – ou não é, Humberto?

Bissau, 13 de Outubro de 2005
Paulo Salgado

Guiné 63/74 - P218: CART 1525, Os Falcões (Bissorã, 1966/67) (Rogério Freire)

"Passou muita água sob a ponte para a Outra Banda e os peixes que o Carlos Fortunato lá pescou eram, pelo menos, os tetranetos dos que eu lá pesquei" (Rogério Freire, 2005).



1. Acabo de receber notícias de mais camaradas que estiveram na Guiné, e mais precisamente em Bissorã... Estes é que são mesmo velhinhos (1966/67), camaradas!... Aqui fica mensagem:

"Dei com o seu site por acaso e nunca me tinha passado pela cabeça que pudesse haver tanta informação disponível sobre a nossa Guiné e sobre Bissorã.

Já anteriormente tinha encontrado o site dos Leões Negros [CCAÇ 13, Bissorã e outros sítios da Região do Cacheu, 1969/71] que muito apreciei.

É com muito prazer que o informo de mais um site de ex-camaradas ligados à Guiné e a Bissorã: Os Falcões - a Companhia de Artilharia 1525 que esteve em Bissorã em 1966 e 1967, um par de anos antes de si...

Pois é, passou muita água sob a ponte para a Outra Banda e os peixes que o Carlos Fortunato lá pescou eram, pelo menos, os tetranetos dos que eu lá pesquei.

Convido-o a visitar a nossa página: Os Falcões - Companhia de Artilharia 1525, Bissorã (1966/67)... Informo-o de que foi com muito prazer que incluimos o seu link no nosso site. Não soube bem como caracterizar o site , por isso se tiver a oportunidade de me dar uma opinião ficar-lhe-ei agradecido.

Vamos ter a nossa reunião anual no próximo dia 12 de Novembro, na Mealhada, e nela irei fazer referência à vossa página e incentivar o nosso pessoal a visitar-vos.

Se puder ser útil de alguma forma, é só dizer.

Um abraço
Rogério Freire


2. Comentário de L.G.:

Camarada Rogério e camarigos (=camaradas & amigos de tertúlia):

Mas que bela surpresa! Ainda não tinha apanhado o vosso sítio... Os meus parabéns por manteres a companhia... operacional! Recordar é viver, e tu estás ajudar os teus camaradas a viver, mais e melhor...

Devo dizer que fiquei impressionado com o curriclum vitae dos Falcões: nada menos do que 10 (dez) cruzes de guerra!... E manga de ronco, pessoal, lá para os lados do Morés (mítico, no nosso tempo, 1969/71), Iracunda, Cambajo, Jugudul, Iarom, Bará, Quéré, Biambe, Conjogude, Uenquen, Tiligi, Rua...

Os Falcões eram mesmo uns verdadeiros... predadores. Vejam só o material capturado por eles naquele tempo (o que para uma companhia de artilharia é obra!):

52 armas (incluindo metralhadores, ligeiras e pesadas);

39 granadas de morteiro;

33 granadas de canhão s/r;

14 granadas de LGF

10 minas (a/c e a/p)

15 granada de mão,

7000 munições, mais documentos, medicamentos, etc.

Só não sei quantas baixas tiveram: não consigo abrir o respectivo link...

Um correcção: 

(i) Rogério, este blogue já não é do Luís Graça, é da nossa caserna, uma caserna tão grande e tão bonita onde cabem todos os que fizeram a guerra da Guiné, de 1963 a 1974, independentemente da bandeira que defendiam e da arma que empunhavam! E essa é a única razão por que nos tratamos por tu e por camaradas, do coronel ao soldado, mesmo que a maior parte de nós nunca se tenha encontrado (ou conhecido pessoalmente), nem ontem nem hoje...

Um convite: 

(ii) Rogério, tu és bem-vimdo a esta tertúlia. Peço-te que faças a ponte com os restantes camaradas Falcões e com a malta de 1966/67. Vamos também pôr os Falcões na nossa lista de endereços. Creio que não temos ninguém de 1966... 

Comparado contigo e os restantes falcões, somos uns periquitos... Eu, Luís Graça, sou de 1969/71, pertenci à CCAÇ 12 (uma unidade de intervenção africana) e actuei na zona leste. Não conheço Bissorã. O Carlos, dos "leões negros", esse é que esteve lá. Somos da mesma fornada, viajámos no mesmo barco, o N/M Niassa.. Ele também é membro desta tertúlia, recebendo por isso os e-mails que mandamos uns aos outros... Vai mandando notícias: se quiseres, manda uma foto tua, do tempo da Guiné e outra de agora... Talvez para o ano possamos ir à Guiné... Já começamos a estabelecer contactos com malta que está lá (Paulo Salgado, Jorge Neto)...

terça-feira, 11 de outubro de 2005

Guiné 63/74 - P217: As estranhas noites de Sare Gana (Luís Graça)

Mulher africana. Pano tradicional de Cabo Verde.

Foto: © Luís Graça (2005)

Excertos do Diário de um tuga. 20 de Agosto de 1969:

Os dias em Sare Ganà [ no subsector de Geba, a noroeste de Bafatá] ainda vão sendo suportáveis, à aparte o calor, as moscas e o estado de sítio... As noites, essas, é que são longas e penosas. O que me custa mais é não poder ler. Os meus soldados fulas estão de serviço, reforçando o sistema de autodefesa (1). Por causa de um possível ataque da guerrilha (2), é proibido fazer lume ou foguear na tabanca. Aqui come-se cedo e deita-se cedo. Ficam os vampiros dos mosquitos. Por sorte, não apreciam lá muito o meu sangue. Deve-lhes saber a uísque.

Resta-me a companhia silenciosa e furtiva da Fátima, uma das mulheres do comandante da milícia: logo ao segundo ou terceiro dia, introduziu-se-me, lesta como uma gazela na palhota onde durmo, junto ao espaldão do morteiro. Tapou-me a boca com a mão, esboçou um sorriso cúmplice, puxou o pano de chita até à cintura, virou-se delicadamente de costas e ofereceu-me o seu esguio corpo negro, ressumando húmidos odores da floresta!... De pé, ligeiramente curvada para a frente, enigmática como uma máscara, lasciva como a serpente bíblica, submissa como uma fula!

Não é bonita, o rosto deve-lhe ter sido marcado pela varíola, quando mais nova... Mas é sensual e ainda jovem. Tenho dificuldade em perceber a sua atitude e em advinhar-lhe a idade. Terá menos de trinta. Trocámos apenas olhares no primeiro dia, na linguagem mais universal dos seres humanos.... E, tal como tinha chegado, partia depois, furtivamente, pela calada da noite, sem dizer uma única palavra em português ou crioulo: a única, de resto, que até agora lhe ouvi, foi uma estranha corruptela do meu apelido.

O affaire (que palavra tão deslocada aqui no cú do mundo) foi celebrado com uma singela troca de roncos: dei-lhe a minha toalha de banho turca e fiquei-lhe com a sua pulseira de missangas vermelhas e brancas como recordação das estranhas noites de Sare Ganà.

Deveríamos ser, ali, em Sare Ganá, os dois seres mais deslocados e solitários do mundo... Nunca mais a vi, nem cheguei a saber a sua verdadeira estória.

Luís Graça
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(1) Vd. post o meu post de 30 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XXXI: Sare Ganá, a última tabanca de Joladu

(2) Vd. post de A. Marques Lopes, de 28 de Maio de 1969 > Guiné 69/71 - XXIX: Um ataque a Sare Ganá (1968)

Guiné 63/74 - P216: Em busca de: CCAÇ 2366, Jolmete (1968/70)

Guiné-Bissau > O Rio Cacheu, margem sul. Em frente, Farim. 1996.

© Humberto Reis (2005)

1. O Vasco Andrade (também conhecido no tempo da tropa por "cabo maluco", a expressão é dele próprio) contactou a nossa tertúlia, a mim e ao João Tunes, mandando-nos a seguinte mensagem:

"Camaradas, preciso de encontrar um grande amigo meu que esteve na Guiné, em Jolmete (1) nos anos de 68, 69 e 70, chamado António Manuel Feio, pertencente à Companhia [de Caçadores] 2366, os 'Periquitos atrevidos'... Digam-me também se conhecem algum algum site em que eu possa pesquisar o contacto dele e de outros camaradas.

Muito agradecido"
Vasco Andrade


2. Resposta da tertúlia:

(i) No ponto de encontro da ADFA - Associação dos Deficientes das Forças Armadas há uma referência à CCAÇ 2366 – BCAÇ 2845 (Guiné) > "Convívio na Mealhada. Contacto - Albino Silva: 96 329 78 04".

(ii) No livro de visitas do sítio dos Kimbas (Companhia de Cavalaria 3378, Olossato, Brá, Safim e João Landim, 1971/73 ) foi encontrada uma mensagem do Alfredo Gaspar, com data de 2 de Outubro de 2002:

"Fui furriel miliciano na CCAÇ 2366 - Periquitos Atrevidos. Estive na Guiné entre 1968/1970. Em Jolmete. Um grande abraço. Hoje vou inscrever-me na Associação".

Infelizmente o Gaspar não deixou nenhum endereço de e-mail, endereço postal ou nº de telefone. Nem disse em que associação se ia inscrever: presumo que seja a Associação Portuguesa dos Veteranos de Guerra, com sede em Braga.
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(1) Jolmete fica a nordeste de Teixeira Pinto / Canchungo, acima do Pelundo, junto ao Rio Cacheu, antes de Farim. Vejam a nossa carta da Guiné, velhinha, já com 40 anos... Eu nunca aprendi tanta geografia da Guiné, como agora. L.G.

segunda-feira, 10 de outubro de 2005

Guiné 63/74: P215: A mesquita de Barro (Marques Lopes)

Mesquita de Barro. Construída pela CCAÇ 3 (1968) © A. Marques Lopes (2005)

Texto de A. Marques Lopes (ex-Alf Mil da CCAÇ 3, Barro, 1968).

É evidente que este blogue tomou uma projecção importante para a história da guerra, sobretudo na Guiné. No entanto, não exageremos. Fazendo uma pesquisa através do Google, como sugere o Luís Graça, cheguei à seguinte conclusão:

(i) o milhar dos 1.010 referêncais sobre Geba é a respeito do rio Geba, as restantes à tabanca de Geba;

(ii) das 10.050 sobre Barro só meia dúzia se referem à tabanca de Barro; as restantes são "colher de barro", "chão de barro", "panela de barro"... e alguns da Nova "Guiné".

Não é uma crítica, é só para colocar as coisas no nível devido. Mas foi-me muito útil essa pesquisa:

(iii) apanhei coisas que não sabia sobre Geba;

(iv) descobri que, em Barro, em Novembro de 2001, foi criada a rádio Tchéte Binhin, com 5 jornalistas e 4 técnicos, e cujo director é César Cumuca, e que está sedeada no edifício da Casa dos Médicos do Centro de Saúde de Barro; fiquei contente porque alguma coisa se fez desde 1998, altura em que lá estive: não havia nem rádio nem Centro de Saúde; falta muito, claro; a rádio só tem um raio de cobertura de 300 metros, é para a tabanca.

(v) Aproveito aqui para corrigir uma coisa e pedir desculpas ao Fernando Chapouto (já lhe tinha falado nisto mas ele nunca me disse nada) e ao Belmiro Vaqueiro: a fotografia que, em tempos mandei não era da construção da capela de Geba mas, sim, da mesquita de Barro. Mando uma fotografia dessa mesquita, essa, sim, construída pela CCAÇ 3. Confusões do tempo... e misturas de lembranças.

(vi) Também vi que o Fernando Chapouto tem dispersas várias fotografias de Camamudo, Banjara, Cantacunda e Geba. Apelo que as mande para o nosso blogue.

Guiné 63/74 - P214: Uma estória comovente de camaradagem: o Carvalhido e o Freixinho (Luís Carvalhido)

Um dos grupos de combate da CCAÇ 2590 (futura CCCAÇ 12), ainda em período de instrução da especialidade . Contuboel, 30 de Junho de 1969.

A guerra na Guiné criou fortes laços de solidariedade entre os combatentes, de um lado e de outro, independentemente da cor da pele, da origem social ou da etnia.

© António Levezinho (2005) (O Levezinho, aqui na foto, e pé, na terceira fila, juntamente com o Reis, era Fur Mil Atirador da CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).

O Luís Carvalhido (ex-soldado de transmissões, radiotelegrafista, da CCS do BART 3873, Bambadinca, 1972/74) mandou-me, em tempos, uma mensagem por e-mail, com data de 21 de Abril de 2005, que me sensibilizou muito e que eu guardei (como, de resto, o faço em relação às mensagens de todos os tertulianos)... Infelizmente, não a cheguei a inserir no blogue em devido tempo, por mero lapso. Recupero-a hoje, com os meus pedidos de desculpa ao Luís e à nossa tertúlia. O Luís não precisa de ser adjectivado. Esta carta fala por ele, da sua grandeza de alma, e honra esta tertúlia de ex-combatentes da Guiné... O Luís Carvalhido tem uma frase, no fim, que se aplica, muito apropriadamente, a todos nós, ex-combatentes: "Perdoa-me, porque quando começo [a falar] nunca mais acabo".
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Companheiro:

Permite-me que te chame companheiro e amigo. Não me conheces, mas tal como muitos outros milhares de Portugueses falamos uma linguagem mais comum que a própria linguagem de Camões. Vivemos Africa e sentimos o frio das noites de medos disfarçados no fumo do tabaco e no paladar acre da cola.

Não sabes quem eu sou e isso não é muito importante, ou melhor deixa de ser importante se te disser que pisei os mesmos caminhos que tu, num triângulo que ia do portinho do Xime, até ao interior do Xitole. Decerto que não estarás admirado se te disser que te chamo companheiro porque também tu deves conhecer de cor e salteado a localização das tabancas de Bambadinca, onde eu passei cerca de vinte e sete meses.

Deixa-me voltar um pouco atrás, para te dizer como é que cheguei até ti. Para além de estar socialmente ligado à Associação Portuguesa dos Veteranos de Guerra (isto é outra história, que dava outro livro, ou outros livros), sou amigo do António Castro, meu amigo e companheiro de armas na Guiné. Com ele mantenho contactos diários e através dele tomei conhecimento da tua existência e das muitas coisas que temos em comum.

Já agora, e por curiosidade, lembras-te dos furriéis brancos que vos foram substituir na CCAÇ 12? Eu conheci dois, o Domingos, de Leiria, conhecido pelo Lavrador (nunca percebi porquê) e o pequenino Alfredo Guerreiro, o homem que nunca tinha medo pois tomava uma carga etílica de tal ordem que os seus homens (deixa-me lembrar o Suleimane Baldé, esse fula que tantas vezes foi comigo à caça dos patos, lá para as bandas da baía do Enxalé) diziam que ele nunca aninhava debaixo de fogo (pudera, era tão pequenino). Estes dois, foram com certeza substituir-te, por isso deves ter-lhes dado o testemunho. Penso que não era do teu tempo, eles estiveram debaixo das ordens do capitão Bordalo, o das barbas grandes.

Como vês, calcorreámos os mesmos locais e sentimos da mesma maneira. Decerto e porque presumo que a vossa sede era Bambadinca, jogaste futebol no mesmo campo onde eu tantas vezes joguei. Provavelmente comeste mangas da mangueira que existia no posto do Governador Civil [administrador de posto, quer o Luís dizer]. Não vou falar em outras coisas que deves ter comido também, já que, dada a diferença de ocasião, eu devo ter feito outras escolhas.

Podia dizer-te muitas coisas, tais como: eu aprendi aquilo que era o macaréu, porque estive envolvido nele e na sua acção. Podia dizer-te que percebi aquilo que é a morte e o que é ficar estropiado.

Podia dizer-te que, tal como tu, também não dei um tiro, a não ser aqueles que dava aos patos e aos pombos verdes. Podia dizer-te que fui apelidado pelos meus oficiais do quadro (leia-se, xicos) de nharro, devido às minhas ligações de amizade com os nativos e com o pouco respeito que tinha pelas regras instituídas.

Podia dizer-te que no meu batalhão fui o único homem que esteve exilado, já que estive durante dois meses, sem mais nenhum branco, em Fá Mandinga (quantas saudades e como aprendi que a diferença da pele não tem qualquer valor, como aprendi que havia Africanos melhores que Europeus).

Podia dizer-te, meu caro, que tal como tu e milhares de muitos outros eu tenho a mente repleta de momentos e de histórias. Deixa-me dizer-te por exemplo: ou melhor deixa-me lembrar o Freixinho, um companheiro nosso que estava no Xitole e que veio para Bambadinca com paludismo em último grau.

Deixa que te diga que eu quando soube que havia um homem de Viana do Castelo na enfermaria em situação de precariedade, pedi autorização ao meu amigo Palhinhas e ao meu amigo Costa (analista e enfermeiro) - quantas vezes comi os frangos que vocês trocavam com os nativos!-, que me deixassem ser eu a tratá-lo.

Não era enfermeiro, mas tinha jeito, meu caro. Não era enfermeiro, mas tinha a capacidade do improviso a que éramos obrigados. Era preciso sobreviver e neste caso era preciso fazer sobreviver. Foi um luta de dois meses. Foi uma luta diária, metendo uma colher de leite condensado pelas goelas do Freixinho que nem os olhos abria.

Todos os dias lhe barbeava a cara, onde só se viam ossos sobrepondo-se àquilo que em tempos tinham sido as maçãs do rosto. Todos os dias o levantava (não custava muito porque ele nessa ocasião, não devia pesar mais de 48 quilos) para o limpar nas partes mais íntimas. Recuperei-o para a vida, meu amigo, e arranjei um amigo sério a quem mais tarde recorri em momentos difíceis para mim. Pena que o Freixinho se tenha partido desta [vida], muito cedo. Penso que tinha uma estrada muito curta, por isso se foi, ainda não teria quarenta anos.

Como vês, meu caro, podia dizer-te muitas coisas. E digo-te isto sobretudo porque nessa altura eu tinha um olhar de menino rebelde. Olhar de quem vê e não acredita. Olhar de quem sabe que tem que ser, mas que não fica calado. Olhar de menino ingénuo, mas muito selvagem. Olhar de quem brinca com coisas sérias, não se detendo com os medos comuns. Medo de morrer sim, medo de afrontar nunca.

Perdoa-me, porque quando começo nunca mais acabo. Africa é imensa, Africa é linda, Africa é inesquecível, a guerra colonial é uma nódoa que tem quer ser exorcizada.

Um abraço

domingo, 9 de outubro de 2005

Guiné 63/74 - P213: Em busca de: Camaradas do BCAÇ 3884 (Bafatá, 1972/74), procuram-se! (Maurício Nunes Vieira)

Guiné-Bissau > Região de Bafatá > 1996:
Ponte sobre o rio Geba na estrada Bafatá-Geba.

© Humberto Reis (2005) (ex-Fur Mil Reis, da CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)

1. Texto do Maurício Nunes Vieira:

Gostaria de contactar com ex-combatentes do BCAÇ 3884, do qual faziam parte a CCAÇ 3547, CCAÇ 3548 e CCAÇ 3549, estacionadas em Geba, Fajonquito e Contuboel, respectivamente (1). Eu fazia parte da CCS, que estava sediada em Bafatá (1972/74). Era comandante o tenente coronel Correia de Campos,o 2º comandante era o conhecido major Vargas (ligado ao Ginásio Clube Português).

Eu era radiotelegrafista. Recordo entre outros o Machado e o Freitas, de Guimarães; o Rato, da Vidigueira; o escriturário Pais, de Lisboa, o Martins, também de Lisboa, além do Faria, do Luis Catarino, da Vidigueira, do Martins, de Vila Real, do furriel Alves, não esquecendo o nosso furriel Martins, de transmissões.

Agradecia contacto para e-mail:
maunuvi@hotmail.com

Telemóvel > 914614074
Telefone de serviço > 219236088 (Câmara Municipal de Sintra)

Maurício Nunes Vieira

Um abraço a todos os ex-combatentes, especialmente aos que sofreram na Guiné.


2. Comentário de L.G.:

Amigos e camaradas de tertúlia:

Temos um aqui mais um camarada que quer entrar para a tertúlia, presumo... Para já quer saber notícias dos antigos camaradas do seu BCAÇ 3884 (Bafatá, 1972-1974)... Quem se lembra deste Batalhão ? Quem é deste tempo e da região leste é o Sousa de Castro, o Manuel Ferreira, o Luís Carvalhido e outros tertulianos...

PS - Os periquitos, para entrar na tertúlia, têm que mandar uma foto antiga e contar uma estória... Ficou assim combinado... O Maurício está dispendado da estória, porque já nos deu aqui uma série de elementos... Em contrapartida, deve-nos pelo menos uma (boa) foto, digitalizada... De resto, será bem vindo,se ele quiser fazer parte deste grupo (que jé é um grupo de combate reforçado mas ainda não chegou a companhia e muito menos a batalhão).


3. Encontrei na Net uma referência a este Batalhão, o BCAÇ 3884. Trata-se de um comentário, inserido no livro de visitas da CCAÇ 3378 - Os Kimbas do Olossato (1971/1973). Aqui o reproduzo:

M. Oliveira Pereira (24-04-2003 - 12:24:10 AM)

Camarada ex-combatente,

Fui Furriel Miliciano. Tenho desde há algum tempo acompanhado a vossa página e pela qual vos dou os meus parabéns. Seguindo o vosso exemplo, estou também a elaborar uma dedicada ao meu Batalhão (como informação geral) e em particular à minha Companhia (CCAÇ 3547).

Estivémos na Guiné entre Março de 72 e Julho de 74. A sede do BCAÇ 3884 (CCS) estava sedeada em Bafatá e as companhias operacionais 3547, 3548 e 3549, respectivamente em Contuboel, Geba e Fajonquito, no Leste da Guiné. Muitas foram as localidades / tabancas palmilhadas e ocupadas [por nós]: Cumeré, Bafatá, Bambadinca Tabanca, Sare Bacar, Nova Lamego, Medina Mandinga, Galomaro, Dulombi e claro está CONTUBOEL e SONACO.

Desde o nosso regresso que, de uma forma ou de outra, nos temos encontrado. A CCAÇ 3547 [Contuboel], pioneira nestas andanças, já vai no seu 26ª encontro; a 3548 [Geba] sete ou oito vezes; a 3549 [Fajonquito] tomou lhe o gosto e também já fez o seu 5º convívio.

Também realço o facto de um grupo do qual fiz parte, constituído por dois ou três elementos das ex-companhias, aproveitando a experiência da CCAÇ 3547, organizaram com êxito o Encontro de todo o Ex-Batalhão na cidade de Chaves, em comemoração do 25º aniversário do nosso retorno.

Foi uma festa que será difícil esquecer pois as mais de 700 pessoas presentes no evento, vindas de todas as partes do mundo e aqueles que, embora não presentes fisicamente, tiveram a gentileza de, aproveitando as novas tecnologias, se porem em contacto com os já carecas, barrigudos e desdentados ex-companheiros.

Deixando agora de lado a minha/nossa vida de companhia/batalhão e enquanto a nossa página não é activada (2), pedia que fosse informado o nosso próximo encontro, a saber: A Companhia de Caçadores 3547, Os Répteis de Contuboel , vão ter o seu 26º convívio no próximo dia 7 de Junho na região de Santarém, mais concretamente na Estação Zootécnica Nacional, na localidade de Vale de Santarém. O ponto de encontro será pelas 10.30. horas na estação da CP em Santarém. Contactos: Vitorino (Santarém) telefones 919 992 835 (a qualquer hora) e 243 760 067 (telefone de casa, depois das 20.30 horas)(3)

O nosso muito obrigado.
Manuel Oliveira Pereira
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Notas de L.G.

(1) Para uma localização destas povoações da Guiné-Bissau, na zona leste, a norte de Bafatá, vd. a carta da antiga província portuguesa da Guiné (1961), dos Serviços Cartográficos do Exército. Fajonquito ficava a noroeste de Contuboel, já perto da fronteira com o Senegal.

(2) Vd sítio da CCAÇ 3547 (Contuboel, 1972/74) (em construção)

(2) No sítio da ADFA - Associação dos Deficientes das Forças Armadas, no resepctivo "ponto de encontro", há mais informação sobre esta unidade:

Companhia de Caçadores 3547 - "Répteis de Contuboel" (Guiné 1972/74)> 28º encontro, em Ponte de Lima [em 2005]. Contactos - M. Oliveira Pereira: 96 412 88 42, mailto:ccac3547repteis@sapo.pt

sexta-feira, 7 de outubro de 2005

Guiné 63/74 - P212: BART 2917 (Bambadinca, 1970/72): Monumento aos mortos em combate (Luís Graça)

Guiné > Região Leste > Bambadinca > s/d (1972, 1973 ou 1974): O Manuel Ferreira, soldado condutor auto, dos "Fantasmas do Xime" (CART 3494 do BART 3873, 1972/74), junto ao monumento aos mortos do Sector L1, erigido pelo BART 2917 (1970/72).

© Manuel Ferreira (2005)

1. Texto de Luís Graça:

Podem ver-se na fotografia em cima, quando ampliada, os nomes dos oito mortos do Batalhão de Artilharia, BART 2917, incluindo o Fur Mil Cunha e mais quatros combatentes da sua secção, mortos em 26 de Novembro de 1970, na região do Xime (Op Abencerragem Candente) (1).

Os restantes sãos mais 3 furriéis milicianos (ou 1 alferes e 2 furriéis: a imagem não é nítida).

Das unidades adidas ao BART 2917 (1970/72), vem em primeiro lugar a CCAÇ 12, com três mortos:

(i) o Sold Ieró Jaló, morto em 7 de Setembro de 1969, na Op Pato Rufia (2);

(ii) o Sold Cond Auto Soares, morto em Nhabijões, na sequência do rebentamento de uma mina anticarro, em 13 de Janeiro de 1970 (3);

e (iii) o Sold Sissé, este último já em data posterior ao fim da comissão dos quadros metropolitanos, originários da CCAÇ 2590, e que formaram a CCAÇ 12 (1969/71).

Outra unidade adida era o PEL CAÇ NAT 52, com 1 morto, seguido do PEL CAÇ NAT 54 (que esteve muito tempo em Missirá), com 6 mortos. Ainda se consegue ver o PEL NAT 63, com um morto. No caso da última unidade adida ao BART 2917, que teve 3 mortos, só se consegue ler, os dois últimos números: 01.

No total, contabilizo 22 mortos (não se incluem aqui as baixas mortais sofridas pelos vários pelotões de milícias que estavam integrados no Sector L1 da Zona Leste). Falta-nos ainda os feridos graves, evacuados para o Hospitalar Militar (Bissau e Lisboa) bem como os feridos ligeiros, e todos os outros que, sem marcas visíveis no corpo, vieram com a morte na alma... cacimbados !

2. O David Guimarães (ex- Fur Mil da CART 2716 do BART 2917, Xitole, 1970/72), depois de analisar a fotografia, não tem dúvidas:

"o Furriel abaixo do Cunha - até me arrepiei agora - é exactamente o Quaresma, o furriel Quaresma que está ao meu lado na inagem em que eu apareço a tocar viola... Em cima não distingo bem o nome mas é o Alferes Ranger, do Xime (CART 2715).

"Todas as Companhias tinham um Alferes Ranger. É ele mesmo, o do Xime. Quando ia para sair para a última operação, teve uma exclamação:
- É hoje, é a última vez! - E foi foi mesmo. Dois tiros mataram-no quando estava sentado.... Evacuado, acabou por morrer no Hospital Militar.

"O outro, sim, é o Cunha. Coloca isto no blogue, é importante, Luís. Eles estão vivos e são bloguistas como nós...

"Pensar em quem morreu também é importante. Os momentos de guerra foram todos e esses também, aliás, foram os que nos marcaram mais.

"O Luís Moreira não sei se ainda lá estava em Bambadinca quando isso aconteceu. Mas ele que se lembre do Alferes Ranger do Xime. É ele, não há dúvida, que está a encabeçar essa negra lista que, tudo indica, estava organizada por posto hierárquico... Estava, porque hoje esse monumento já não existe em Bambadinca. Já não existia quando lá voltei em 2001".


3. Texto de L.G. :

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > 1972:

Aquartelamento de Bambadinca, sede do BART 3873 (e anteriormente, entre 1970 e 1972, do BART 2917 e, antes deste, do BCAÇ 2852, entre 1968 e 1970).

Monumento aos camaradas mortos em combate e à presença das NT em Bambadinca entre 1970 e 1972, incluindo o BART 2917 + Adidos: CCAÇ12, PEL CAC NAT 52, 53 e 54 e outros (a parte de debaixo do monumento é ilegível).

Presume-se que este singelo monumento tenha sido destruído a seguir à independência. Em Novembro de 2000, Bambadinca era sede de um batalhão do exército da Guiné-Bissau, de acordo com uma reportagem em vídeo feita por ex-combatentes portugueses que voltaram à Guiné-Bissau nessa altura, vídeo esse que visionei, graças às cópias em DVD que o Sousa de Castro magnanimamente me fez chegar pelo correio...

O mesmo monumento mostrado na foto do Manuel Ferreira, mas mostrando, ao fundo, as instalações dos oficiais portugueses (Comando + CCS + Alferes milicianos). Em frente destas ficavam a dos sargentos.

Este aquartelamento, novinho em folha, foi alvo de uma forte ataque do PAIGC em 31 de Março de 1969, como resposta à Op Lança Afiada, que envolveu cerca de milhar e meio de homens das NT (4). As instalações dos sargentos foram, por exemplo, atingidas.

© Sousa de Castro (2005)
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(1) Vd. post de 25 de Abril 2005 > Guiné 69/71 - VII: Memórias do inferno do Xime (Novembro de 1970)

(2) Vd. post de 8 de Agosto 2005 > Guiné 63/74 - CXLVI: Setembro/69 (Parte I) - Op Pato Rufia ou o primeiro golpe de mão da CCAÇ 12

(3) Vd. post de 23 Setembro 2005 > Guiné 63/74 - CCV: 1 morto e 6 feridos graves aos 20 meses (CCAÇ 12, Janeiro de 1971)

(4) Vd. post de 31 de Julho 2005 > Guiné 63/74 - CXXXI: As grandes operações de limpeza (Op Lança Afiada, Março de 1969)

quinta-feira, 6 de outubro de 2005

Guiné 63/74 - P211: Os sitiados de Guileje (João Tunes)

João António Tunes, Alferes Miliciano de Transmissões. Andou, de 1969 a 1971, por vários sítios da Guiné (não diz com quem...): Pelundo, Teixeira Pinto, Catió, Guileje, Bissau...

© João Tunes (2005)

Texto do João Tunes:

Obrigado, Jorge (1), pela informação. Vivi uma pequena parte (mas marcante e bem) da odisseia de Guiledje (2). Como o quartel estava sob a jurisdição do batalhão sedeado em Catió (assim como Gadamael e Cacine), eu tinha de lá ir uma vez por mês (ficando lá,uma semana) para ver como estavam as transmissões e mudar as cifras das mensagens e esperar por transporte de regresso a Catió. Porque, é claro que só lá chegava e de lá vinha por via aérea. E enquanto lá estava era "sempre a assoar". E julgo que em nenhum outro lugar da Guiné se sofreu tanto a intensidade e a impotência da guerra.

Excelente ideia a deste projecto a que, julgo, devemos dar todo o apoio. E bem me parece merecido que, pelo que se passou em Guiledje, se concentre neste projecto o apoio de todos os que combateram na Guiné (independentemente da localização que lhes calhou em sorte), construindo aí um memorial aos que de um e outro lado se pegaram com armas na mão. Melhor será que uns andarem às voltas com Mansoa, outros com Bula, outros com Pelundo, outros com...

Em tempos, Abril de 2004, coloquei um post em que recordo algumas sensações sobre Guiledje e que me permito transcrever.

Abraços para todos.
João Tunes


Guiné-Bissau > Foto aérea do antigo aquartelamento de Guileje (c. 1973)

© AD - Acção para o Desenvolvimento (2005)

Um voo com muita valentia, por João Tunes (Blogue Bota Acima, 7 de Abril de 2004)

O Tenente Aviador Aparício, lenço azul ao pescoço e ar de quem está meio cá meio lá, entre a terra e o céu, aterra a Dornier (3) na pista de terra batida de Catió. Quando encontra o primeiro militar que o foi receber, diz-lhe, rindo-se:
- Então, aqui come-se e bebe-se? - Claro que havia. Havia sempre para o Tenente Aparício.

O aviador é levado, de jipe, ao bar de oficiais e são-lhe servidas as melhores iguarias disponíveis, acompanhadas de cervejas bem geladas. Sabia-se do voo que já era, aliás, aguardado ansiosamente há vários dias. Os aviadores eram sempre recebidos como VIPs na messe de oficiais do batalhão de Catió, lugar que, na maior parte do ano, só tinha ligações com o exterior pelo ar. O aterrar de um avião ou de um heli era sempre motivo especial e que comportava a emoção de confirmar que Catió existia no mapa.

Entre todos os aviadores em serviço na Guiné, o marado do Tenente Aparício era o mais festejado e o mais bem-vindo. Não por ser marado mas por ser o mais marado de todos, tanto que era o único que se dispunha a aterrar de Dornier em Guileje. E Guileje era a posição mais martirizada e mais isolada da área de intervenção do batalhão e em toda a Guiné. Por causa disso, a tropa encaixava bem as risadas sem motivo e uma ou outra frase desconexa que ia largando, pelo valor único que ele representava para o batalhão e para o pessoal de Guileje.

Após meia hora a descansar, a comer e a beber, o Tenente Aparício ajeitou o lenço azul e levantou-se:
- Vamos a isto -, disse com os olhos a brilharem. Se era o único que aterrava em Guileje, aquele era o sítio onde ele mais gostava de ir. Cada viagem era uma aventura. E o Aparício adorava aventuras.

Carregado o correio, medicamentos, algumas peças e acessórios, tudo em quantidade limitada por causa do pouco peso que a aeronave podia transportar, o Tenente Aparício despediu-se. E mandou-me subir. Naquele dia eu ia ser seu companheiro de viagem até Guileje.
- Vamos a isto -, repetiu, repetindo também uma nova risada.

João Tunes, "sempre fardado": ontem de verde-rubro, hoje de vemelho, de águia ao peito...

© João Tunes (2005)

Ia para passar uma semana em Guileje, como fazia quase todos os meses, para tratar de problemas com as transmissões e trocar os códigos das cifras da criptografia. E, daquela vez, seria companheiro de viagem do Tenente Aparício. E uma ida a Guileje era sempre uma emoção, pelo risco e por rever os camaradas martirizados e isolados bem junto da fronteira com a Guiné-Conacri. Para mais, com o aviador mais marado da Guiné.

O aviador conduziu a aeronave com os jeitos e o ar de condutor habituado a uma estrada de todos os dias. E ia sempre a rir. De repente, a janela da Dornier do meu lado salta e desaparece. O ar entra em turbilhão e faz esvoaçar toda a papelada solta. O aviador riu-se ainda mais. Como tendo achado que aquele incidente só ia tornar mais insólita e mais típica aquela viagem e ainda dava para gozar com a cara azulada da preocupação do seu companheiro inquieto e que duvidava que, sem janela, aquela geringonça se pudesse aguentar no ar. O aviador comentou, contendo o riso:
- Eu bem disse na Base que essa merda estava mal apertada, mas não faz mal, o avião não cai, ficamos é com as ideias mais frescas.

A viagem decorreu, num regalo de vista sobre as matas luxuriantes de verde intenso como era típico do sul da Guiné, permanentemente atravessadas por enormes e serpenteantes cursos de água. Sempre a sobrevoar uma zona controlada pelo PAIGC. É que, no sul, tirando os quartéis isolados e sitiados de Catió, Guileje, Gadamael e Cacine, todos sob o comando militar de Catió, a zona era inteiramente controlada por guerrilheiros. Estes, só eram contrariados no seu domínio pelo exército português através de bombardeamentos aéreos, fogo de artilharia e surtidas temporárias das forças especiais. E isto durou até o PAIGC receber os mísseis dos soviéticos, porque, a partir daí, todos os aviadores se recusaram a voar no sul. Mas isso foi mais tarde (4), já o Aparício de lá tinha saído. Voar, naquela zona, era um desafio permanente às clássicas antiaéreas e havia que confiar na divina providência ou coisa do género. Naquela viagem, o risco era o costume, a beleza da paisagem idem, só a ventania dentro da cabine estava fora da rotina.

As palmeiras da periferia do quartel de Guileje perfilaram-se na frente da Dornier. À frente delas, distinguia-se o que parecia ser um quartel em estado degradado e meio despedaçado com uma bandeira portuguesa comida pelo sol e rota nos cantos, içada no meio dos casinhotos. O avião fez uma rápida volta de reconhecimento, rasou as copas das palmeiras, baixou repentinamente de altitude na clareira entre o palmeiral e o quartel, apontou o nariz direito a uma espécie de campo de futebol em terra batida, aterrou num movimento brusco e parou a poucos metros de uma carcaça de outra antiga Dornier que, antes, não tinha conseguido parar a tempo e se espatifara contra o muro do quartel. Era este risco permanente de as aeronaves imitarem a sua irmã espatifada que levava a que todos os camaradas do Aparício se recusassem a aterrar em Guileje. Mas ele preferia aquela viagem sobre todas as coisas na vida. Há homens para tudo, é o que vale aos abandonados pela sorte.

Indolentemente, alguns soldados montaram segurança à Dornier. Sem dirigirem palavra aos recém-chegados. Rostos fechados, olhares distantes e desinteresse ostensivo. O Tenente Aparício não queria sair do avião pois tinha de regressar a Bissau enquanto era dia. Só deu tempo para descer e tirar a carga destinada a Guileje. A guarda estava montada, G3 carregadas ao ombro, nada mais. Nenhum oficial ou graduado apareceu e os soldados da guarda não falavam. Disse alto e com bom som:
- Então não descarregam as vossas coisas? Porra, pelo menos, tirem o vosso correio.- Nada de reacção. Tivemos de ser, eu e o Aparício, que resolvemos o impasse mandando com os embrulhos e o saco do correio para o chão da pista, para que a Dornier pudesse regressar vazia.

Os militares em Guileje queriam lá saber das peças e dos acessórios. Inclusive, não mostravam qualquer interesse em ler as cartas dos familiares. Queriam lá saber da família. Ali, naquele sítio, nada interessava. Se calhar, já nem estavam interessados em sair dali. Talvez porque achassem que já não eram pessoas mas ratos metidos dentro de uma ratoeira, destinados a apanhar porrada, só apanhar porrada.

O Tenente Aviador Aparício regressou a Bissau sem a janela do lado direito. Que se lixasse o raio da janela.
- Talvez tenha acertado na cabeça do Nino -, disse com voz sumida. E levantou voo rumo a Bissau. Sem se rir. Talvez porque achasse que tinha visto, não uma companhia de militares portugueses, mas sim um bando de humanóides sem vontade de viver.

Enclausurados dentro do quartel, morteirada todos os dias em cima, com baixas quando iam buscar água a um quilómetro, comendo com uma perna fora da mesa para se atirarem para uma vala quando a primeira granada caísse, os militares de Guileje sentiam-se mais perto de outra vida que da vida vivida.

Os que não estavam malucos por lá andavam perto. Saudável, mesmo saudável, não havia quem servisse de amostra. O único divertimento era juntarem-se à volta de um bidão cheio de água do pântano que trazia meia dúzia de peixes minúsculos, dobrarem alfinetes, amarrá-los a uma linha, meterem uma côdea de pão em cada alfinete e tentarem pescar os ínfimos peixes. Cada um que apanhava um peixito, contava alto o seu score de pescador e voltava a deitar o peixe para dentro do bidão antes que morresse e o jogo tivesse de acabar por falta de motivo. E ali estavam horas naquilo, só se ouvindo, uma vez por outra, uma voz dizer oito, ou cinco, ou dez. No fim, nem o campeão se interessava por dizer que tinha sido ele a ganhar o concurso de pescaria. Em Guileje, ninguém se atrevia a dizer que ganhava o quer que fosse. Ali, a sensação era que só se perdia.

Perguntei pelo Alferes Médico Gouveia, pândego como poucos e meu companheiro inseparável na viagem de vinda no Niassa.
- Já cá não mora-, foi a resposta seca que obtive.
Só muito mais tarde me explicaram a sorte do meu amigo médico. O Alferes Médico Gouveia, quando foi destacado para Guileje, declarou toda a companhia em baixa psiquiátrica e requereu a sua substituição imediata.
- Está tudo maluco -, afirmou com a sua autoridade de médico. Ninguém lhe passou cartão. Ao fim de estar três meses em Guileje, o Alferes Médico teve autorização para ir passar férias a Portugal. Quando chegou a Bissau, exigiu que uma auto-metralhadora fosse disponibilizada para o levar à pista para embarcar no avião da TAP. Oficiais amigos conseguiram arranjar maneira de lhe fazer a vontade. E foi dentro de um blindado ligeiro que o Alferes Médico Gouveia se aproximou da escada de acesso ao avião pousado na pista civil de Bissau. Saiu do blindado, subiu a escada do avião, no cimo voltou-se, fez uma continência para a linha do horizonte e embarcou. Não regressou. Durante as férias, foi visto por uma junta médica e considerado inapto para o serviço militar. E safou-se de mais Guileje e de mais Guiné. Estava mais maluco que os malucos que ele não conseguira evacuar.

Muitas vezes mais haveria de fazer companhia ao Tenente Aviador Aparício, nos seus voos aventureiros pelos céus da Guiné. Mas a sensação de voar sem janela, essa nunca se repetiu. Repetia-se, isso sim, o resto: o aviador ria-se, sem jeito nem propósito, até chegar a Guileje, voltava sempre calado e de rosto fechado. Mas, continuava a ser o único que aterrava uma Dornier na pista de Guileje. Enquanto esteve na Guiné, ninguém quis disputar o título de aviador mais marado que pertencia, com todo o direito, ao Tenente Aviador Aparício.
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Notas de L.G.

(1) Jorge Neto. vd. post anterior, com a data de hoje > Guiné 63/74 - CCXXXI: Projecto Guileje... ou o triunfo da vida sobre a morte

(2) Dornier DO-27. Segundo a página do João Gil, dedicada a "algumas aeronaves militares usadas na Guerra Colonial em Moçambique" (T-6, Do-27, Fiat g-91, Noratlas, etc.), a Dornier DO-27 "foi o primeiro avião feito na Alemanha (Oeste) depois da Grande Guerra, seguindo o mesmo conceito do Fieseller Storch. Foram manufacturados 628, e tanto teve uso civil como militar". Citando como fonte a FAP, o autor diz que "os aviões Do 27, de que a Força Aérea teve 133 exemplares nas versões A3 e A4, começaram a ser recebidos em 1961", tendo sido "adquiridos para operação no Ultramar, em missões de transporte ligeiro, evacuação sanitária e reconhecimento armado, para o que eram equipados com lança foguetes".

Ainda segundo a mesma fonte, eis algumas das especificações do Dornier DO-27:

Motor: 270 hp;Envergadura: 12,00 m; Comprimento; 9,54 m; Altura: 3,28 m; Superfície Alar: 19,40 m2; Peso vazio: 983 Kg; Peso equipado: 1570 Kg; Velocidade máxima: 250 km/h; Raio de acção; 870 km; Razão de subida: 198 m/min; Tecto de serviço: 5500 m; Tripulação: 1 + 5. Ver ainda página, em inglês, dedicada ao DO27

(3) Guiledje ou Guileje ? Perguntei ao Ciberdúvidas da Língua Portuguesa qual é a grafia correcta. No tempo dos tugas, escrevia-se Guileje. Hoje, os guineenses e os cooperantes portugueses na Guiné-Bissau tendem a escrever Guiledje (ou até Guiledge). Em que é que ficamos ? Aguardo a resposta.

(4) Abril de 1973

Guiné 63/74 - P210: Projecto Guileje (1): o triunfo da vida sobre a morte (Luís Graça)

Guiné- Bissau > Antigo aquartelamento de Guiledje (2005). Na foto, vêm-se dois guineenses, de nome Abubacar Serra e José Filipe Fonseca, que são a ssociados da AD e os grandes dinamizadores do Projecto Guileje.

© AD - Acção para o Desenvolvimento (2005)

Notícias do nosso amigo Jorge Neto (um tertuliano de fresca data, e que trabalha, vive e sobrevive em Bissau).

Boa tarde a todos,

Recebi na caixa de correio informação sobre uma ONG [Organização Não-Governamental]guineense que tem um projecto de reabilitação/restauro do histórico quartel de Guiledje [na região de Tombali, no sudoeste, na fronteira com a Guiné-Conacri].

Se alguém tiver interesse em conhecer o projecto bem como ver algumas fotos do que era e do que é, aqui fica o link.

http://www.adbissau.org/projectoguiledje.php

Para as fotos:

http://www.adbissau.org/fotos_guiledje.php

Cumprimentos
Jorge Neto


2. Comentário de Luís Graça:

Acabei de ler o documento, em formato.pdf, de seis páginas, intitulado "Guiledje, ideias para um projecto de reabilitação". Gostei, desde logo da citação: "Salvaguardar a memória é a única forma da vida triunfar sobre a morte". Mais do que uma citação, é um programa de acção!

Li e fiquei entusiasmado com as ideias apresentadas, a sua fundamentação, a sua metodologia de acção. E disse logo cá para mim mesmo: Ora aqui está um projecto à nossa medida, à medida destes ex-combatentes da guerra colonial da Guiné e dos demais amigos desta tertúlia.

Sinto que podemos fazer alguma coisa de concreto para viabilizar este projecto. Para já, podemos divulgá-lo e dá-lo a conhecer em Portugal. Penso que é um projecto, de grande interesse (histórico, cultural, económico, social e ambiental) para os guineenses, mas também para nós. Daqui uns anos os nossos netos e bisnetos irão aprender, na escola, onde ficava Guileje e discutir a sua importância para dois países que hoje se tratam como irmãos: Portugal e a Guiné-Bissau...

Guileje vai figurar, seguramente, nos manuais de história tal como Alcácer Quibir, ou outras batalhas que ficaram no nosso imaginário e marcaram o nosso destino. E o mesmo se passará com os netos e os bisnetos dos homens e das mulheres que lutaram pela independência da Guiné-Bissau, de armas na mão, e que cercaram o quartel de Guileje, de 18 a 22 de Maio de 1973 (Op Amilcar Cabral), até ao seu abandono pelos portugueses (1).

Guileje foi, a par de Madina do Boé (Fevereiro de 1969), um dos poucos aquartelamentos (não falo de destacamentos...) que os portugueses tiveram que abandonar, devido à pressão militar do PAIGC (que desde Março de 1973 já dispunha de mísseis terra-ar).

Guine > Guileje > Dois militares portugueses, junto ao Obus 140, em 1970 e 1971. Segundo informação do Carlos Schwarz, fundador e director executivo da AD, "a fotografia junto do Obus 140 foi-me dada por um militar português que lá esteve entre 70 e 71, na CCAÇ 2617, de nome Abílio Alberto Pimentel da Assunção, que é um dos 2 militares". A esta companhia deve-se ter seguido a CCAV 8350 (1972/73), uma unidade constituída essencialmente por soldados açorianos.

© AD - Acção para o Desenvolvimento (2005)

As consequências político-militares desta vitória da guerrilha foram enormes: (i) a partir de Agosto de 1973, está em marcha, em Bissau, o movimento que levará os militares ao poder, em Lisboa, a 25 de Abril de 1974; (ii) a 24 de Setembro é proclamada unilateralmente pelo PAIGC, nas colinas do Boé, a independência da Guiné e Cabo Verde, imediatamente reconhecida por mais de sete dezenas de países de todo o mundo.

Hoje há um projecto de desenvolvimento integrado para a região, incluindo a recuperação e a reabilitação do antigo quartel do Guiledje e da sua envolvente, a criação de um museu e de um centro de documentação, a par da criação do Parque Transfronteiriço do Cantanhez.

A iniciativa é de uma ONG, com sede em Bissau, que acaba de celebrar os seus 14 anos de trabalho em prol do "desenvolvimento justo e solidário". Trata-se da de AD-Acção para o Desenvolvimento, associação sobre a qual se pode saber mais, consultando o seu sítio.

Aqui fica, para já, o registo do meu apreço por este projecto que pode vir a não passar do papel, mas que à partida nos toca e sensibiliza a todos... O entusiasmo, a mobilização, o lobbying e a capacidade de realização ficam para outra fase. Para já deixem-nos sonhar, fazer flashback, voltar a ver o filme de trás para a frente e de frente para trás... Deixem-nos salvaguardar a memória dos portugueses e dos guineenses que viveram momentos dramáticos em Guileje... para que a vida saia vitoriosa, triunfando desta vez sobre a morte. Lá como cá.

Reproduzo, com a devida vénia, duas das fotos que ilustram o sítio do Projecto Guiledje, com conhecimento ao webmaster da página da AD a quem, desde já, agradeço.

Numa das fotos há dois guineenses (que tanto podem ser os autores deste projecto, como os antigos combatentes do PAIGC que participaram na batalha de Guileje: Braima Djassi e Roberto Quessangue, nomes referidos no site, sendo o último o presidente da Assembleia Geral da própria ONG), junto aos restos do brasão da Companhia de Cavalaria que defendia Guileje: a CCAV 8350, (19)72/74, Piratas de Guileje (as inscrições são perfeitamente legíveis na foto inserida na página da supracitada ONG)...

Na outra foto há dois militares portugueses, em 1970 ou 1971, junto ao obuz 140 mm, que equipava o aquartelamento.
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(1) Sobre a batalha de Guileje, vd. post de 2 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - XCI: Antologia (6): A batalha de Guileje e Gadamael

quarta-feira, 5 de outubro de 2005

Guiné 63/74 - P209: Crónicas de Bissau (ou o 'bombolom' do Paulo Salgado) (1)

Guiné-Bissau (2005) > Antigo e actual quartel de Mansoa.

© Jorge & Paulo Salgado (2005)

Texto do Paulo Salgado

Camaradas e Amigos:

Vou tentar relatar (narrar, contar, ficcionar quanto baste) as minhas vivências nesta terceira (ou quarta?) comissão / presença demorada... (Agora estamos numa Missão que é um termo muito divulgado por quem passa aqui curtas ou mais longas estadias em nome de alguém a fazer qualquer coisa – confesso-vos que tenho visto muita coisa mal feitinha).

Mas estou para aqui com um arrozoado inicial que só faz sentido porque estamos entre Camarigos (bolas, saiu!) para vos dizer que gostaria de poder cumprir este desafio. Mas essa promessa só pode ser cumprida quando me der na real gana, quando tiver um tempo solto, quando levantar emboscadas, quando deixarem de me atacar… Ou seja: não é um diário, nem semanário, nem mensário – o que for, seguirá. Mas ao correr da pena.

O Luís Graça dar-lhe-á a forma mais conveniente para ser lido no nosso blogue.


CAPÍTULO I – Viagem

O filho da mãe do Carvalho Araújo fazia a primeira viagem depois de transformado em transportador de carne para canhão – ele era um dos transatlânticos entre Lisboa e Açores: um barquinho, sem quilha, chato, que levava víveres e algumas pessoas e trazia gado, muito gado das ilhas (vós já imaginastes o gado numa quilha?!)

Então os chefões do tempo resolveram fazer plataformas, e pôr o barco plano, no fundo carradas de pedra para o navio se aguentar e equilibrar e nele construíram camaratas, aos montes: era ali que vinha a tropa macaca, jogando cartas, zangando-se, vomitando o pouco que se comia.

Mas, nessa primeira viagem (que a CCAV 2721 e mais duas companhias de que não me lembro o número), o barquinho andou a acertar agulhas nesse dia 4 de Abril de 1970 (nesse dia, anos mais tarde, nasceria a minha filha Paula – a tal que está em Oxford, e que adora esta terra, que é a Guiné-Bissau) desde o Cais de Alcântara até quase Santa Apolónia durante seis horas… E as famílias , rio acima e rio abaixo, a fazerem adeuses com lenços brancos, na esperança de o barco não passar o Bugio – a malta triste, encostada ao convés (que me desculpem os marinheiros se a linguagem não está correcta) também triste.


Desta vez, adivinhais quem estava: o Humberto. O malandro emboscou-me à entrada da porta / gate 18 - embarque para Bissau. Lá estava, apanhou-me. E demos aquele abraço. Descobriu-me, porque levava uma miúda e a minha mulher.

Que sorriso aberto, o do Humberto! Que delicioso encontro (ou reencontro?), não esquecerei! Aliás, oh Humberto, fiquei com a sensação de que te conhecia, que nos cruzáramos antes… ou já será a minha senilidade?!? Mas, olha que eu tenho uma memória visual muito boa… Foi giro estares ali, abraçares-me, com uma mão cheia de amizade e de carinho, e dares-me o teu cartão…

O pior foi à chegada. A miúda já não me queria largar. Tinha sido bem tratada no Hospital de Gaia e de Santo António – foi o bom e o bonito! Valham-me os deuses todos, quase chorei ao ver a criança cair, obrigada, nos braços dos pais. Aliás, confesso-vos: vou passar um mau bocado. Estas coisas dão-me volta ao coração. A Maria da Conceição [Salgado] e o Jorge (magnífico e exemplar colaborador, tiro-lhe o meu chapéu) ficaram mesmo chocados! Pudera!

No Olossato, a malta dizia que eu iria meter o Chico. Eu era, de facto, um bocado disciplinado e gostava das coisas direitas. Em Lamego, nos 'rangers' aprendera muito sobre a maneira de andar na mata, a sobrevivência, a disciplina. Pois não meti o Chico e, penso, à distância: como eles se enganavam… eu até já tinha uma profissão: professor primário.

A seguir, foi o que vos tinha dito: primeiro umas gorjetas para facilitar a saída (sempre ajuda para o peixe), os putos, os acotovelanços, o motorista João. E logo a seguir pousar as coisas no Bairro da Cooperação, ir ao Hospital, ao Laboratório com o Jorge (técnico de análises clínicas que veio também para fazer a manutenção dos equipamentos).

Primeiro a obrigação e depois a D. Berta – a Instituição D. Berta, a Pensão Central (merecerá um capítulo bem à parte), onde almoçámos e bebemos as primeiras poderosas Cristal (termo que aprendi com um médico moçambicano que esteve aqui no Projecto…e como foram dias porreiros com esse gajo…)... Estavam poderosamente geladinhas!

No sábado fui visitar alguns funcionários no [Hospital] Simão Mendes – a puta da cólera lá está. Não está só nos jornais. Está ali, viva, matando…

Deixámos a cerimónia a decorrer no Palácio Colinas do Boé – Assembleia Nacional (os chineses quiseram deixar a marca de palácio), já o discurso do Presidente ia a meio (na rádio ouvíamos a oratória) e era uma boa altura para nos safarmos da confusão de convidados, de amigos - que sei eu? - e saímos, correndo a almoçar a Uaque (perto de Jugudul, perto de Mansoa, onde está o António que dirige um turismo de caça e pesca – é uma hipótese para dar resposta ao apelo de muitos, em especial do João Tunes, em termos de visita a Bissau), demos um salto a Mansoa e o Jorge tirou umas fotos ao actual aquartelamento.

O Jorge Neto tem razão: não se pode tirar fotos à maluca e sem autorização. Tivemos que andar depressa.

Bolanha de Mansoa © Jorge & Paulo Salgado (2005)

Mas, meus Caramigos: vimos a azáfama da plantação do arroz, a ida à pesca, as crianças correndo ou ajudando, um jovem balanta que vinha do trabalho com o seu arado, e pedaços do velho pontão de Mansoa (substituído por uma ponte). E a bolanha, bela, longínqua. Verdíssima, alagadíssima.

Ainda fomos pela picada fora, no finzinho de tarde até ao porto de Encheia, mas a bolanha não deixou a viagem ir até ao fim. Demos boleia à Maria: que sorriso e que simpatia.
- A nós, portugueses (tugas…) – disse eu, num arremedo de crioulo - e ela riu (ainda temos que esclarecer essa de tugas, a coisa não está clara, Amigos e Camaradas).
- A mim na odja ki bos i bom, ki ta patim bolea…- e ficámos satisfeitos com a satisfação da mulher balanta.

Ao fim, mesmo, mais duas fotos (entre muitas) de um pôr de sol com cores amarelas e cinzentas. E passámos Nhacra, Safim e, ao lado, o aeroporto com alguns aviões a partir com os convidados…

Partilhar “isto” com a minha mulher e com o Jorge foi uma lufada de ar fresco.

Dia di dumigu: na diskansa um bukadu; dia di segunda fera nô tem ki pega teso.

Mantenhas pa tudus.
Paulo Salgado.
Bissau, 2 de Outubro de 2005

PS - Seguem fotos em novas mensagens separadas porque a Net funciona aqui à velocidade africana....

terça-feira, 4 de outubro de 2005

Guiné 63/74 - P208: Guerra limpa, guerra suja (3) (Luís Graça)

1. Texto de Luís Graça:

Meu caro João, meus caros amigos & camaradas (versão "universal", sem bolinhas vermelhas ao canto superior direito):

1. A realidade é sempre mais complicada do que a construção (social) que dela fazemos... Ainda não li o livro da Dalila, vi só um resumo... É claro que a Pide trabalhava bem articulada com as NT... O Spínola e a sua corte protegiam os gajos porque também precisavam deles.. No 25 de Abril, ele terá deixá-los cair, não sei...

Fui obrigado uma vez a partilhar um almoço em Bafatá, com dois ou três pides... Como antifascista, desde os meus catorze, quinze anos, eu tinha um asco aos pides... Eu estava incomodado com a merda da conversa e com a presença deles: um deles tinha levado uma dentada de um "filho da puta de um turra" (sic) mas não lhe pudera "cascar" (sic), em resposta, por causa do Caco Baldé, o Spínola... Tenho isso algures escrito nos meus canhenhos (eu tinha um diário lá na nhos terra....)...

Mas também tenho outros revelações tenebrosas que os meus soldados (fulas) me contavam, nas noites longas que passávamos no mato, em operações, em emboscadas, em patrulhamentos ao Mato Cão (Rio Geba Estreito, para protecção da navegação civil, os barcos da Casa Gouveia que iam e vinham de Bafatá), em tabancas de autodefesa, aqui e acolá...

Revelações da guerra pura e dura, em 1963, 64, 65, no tempo do Schultz, que terá sido uma verdadeira política de terra queimada e de genocídio (é a minha interpretação: nunca saberemos a extensão disto; há documentos da tropa que continuam secretos; além disso, branqueávamos os relatórios...).

No entanto, no meu tempo, havia ainda muitos vestígios desse tempoo: eu (mas também o Humberto, o Tony, Fernandes) passei por muitas tabancas, balantas e beafadas, reduzidas a cinzas, no outro tempo; havia só algumas estacas, tudo tinha sido invadido pelo mato; os habitantes terão fugido, "ido no mato", ou terão sido deslocados)...

Assim como já contei (está no blogue) a história, arrepiante, do Seco Camará, mandinga, que foi nosso guia em muitas operações no Xime, até ao dia em que lerpou, com um roquetada (andei a apanhar os bocados dele na manhã de 26 de Novembro de 1970; fizemos uma trouxa com o que restou, dele e de mais cinco dos nossos...). O Seco era o gajo que matava, à paulda, de noite, os "turras" (ou elementos suspeitos, ligados à população), e depois o capitão do Xime, "manga de bom pessoal" (sic), pagava uma laranjada no regresso ao quartel: o desgraçado contou-me esta estória, a mim, uns tempos antes de morrer...

Tudo isto se terá passado no início da guerra, por volta de 1963/64... Agora, não vos posso garantir que não era fanfarronice do gajo... Não creio que fosse. A coisa colava com outras estórias que os meus fulas me contavam, com aquele ar inocente e amoral das criancinhas que sabem coisas horríveis mas não têm (ainda) o sentido do trágico e do horror...

E o Uloma , dos comandos africanos ? ... De facto, tens razão: deixámos a parte suja da guerra para os pides (mas também para os gajos dos pelotões de reconhecimento & informações, como o sinistro sargento do cavalo marinho de que eu falo no post de 11 de Julho de 2005)... Para os pides e ... para os próprios guinéus!... Essa é que é a verdade. Mas também alferes e furriéis milicianos que eram mais chicos que os chicos...

Andei sempre de arma calada, sem bala na câmara, sem granadas, sem nunca ter feito fogo debaixo de fogo... Mas também engoli muitos sapos, até que um dia rebentei e chamei uns nomes feios ao A. C. e ao resto do comando do BART 2917, em plena parada, em frente à messe de oficiais, alto e bom som: "assasinos, cabrões, criminosos de guerra, limpo o cu às folhas do RDM"...

Nunca mais pude esquecer estas palavras de raiva e de impotência... Não me deram uma porrada, não sei porquê: (i) talvez por que por tinham a conscência pesada, no dia 26 de Novembro de 1970, em que tivemos seis mortos e 7 feridos graves; (ii) talvez por que não queriam arranjar problemas com um "gajo porreiro" de uma "companhia de pretos" que gostavam do tuga, o "furié Enrico" (Henriques, o meu apelido paterno)...

Mas eu hoje sei: havia já um claro desiquilíbrio de forças entre os tontos dos oficiais superiores e o resto da maralha a começar por nós, milicianos; eles já não tinham, por falta de competência e sangue na guelra, qualquer força (física e moral) para comandar; (iii) esse A.C.
teve uma entrada de leão e uma saída de cordeiro em Bambadinca; em suma, (iv) os gajos não tiveram tomates para me dar uma porrada; além, disso, (v) éramos muitos unidos, mesmo que a maior parte da malta não fosse lá muito politizada; (vi) por fim, o meu gesto foi interpretado, pelo meu capitão, como um "distúrbio emocional", pelo que no dia seguinte fui enviado à consulta do Dr. Vilar (se não me engano, o mesmo que é amigo do Guimarães): dá-me um Valium 10 que eu nunca cheguei a tomar; recordo-me de ter sido muito porreiro para comigo; interpretei o seu gesto como uma prova de solidariedade e de cumplicidade:

- Os filhos deles é que precisam de Valium 10 para ficarem com baixa psiquiárica em Lisboa e livrarem-se da guerra...

Enfim, é giro, há anos que não pensava nesta merda e agora fico perturbado... Eu sei que a escrita, como tu diz o João Tunes, é meia cura... Mas eu nunca mais consigo perdoar a mim a mesmo o não ter tido coragem ou dinheiro ou apoios para ir para Paris (aos 18 anos, como cheguei a planear), ter sido "apanhado como um cão" e mandado para a Guiné... Se calhar, isto também se passou com alguns de vocês... Eu não sou diferente.

Continuando: a gente não sabe exactamente o que se passava com os paras, comandos, fuzos, que não eram menos brutais... Já repararam que, tirando o Jorge Santos (fuzo, em Moçamboque), não temos aqui ninguém das tropas especiais na nossa tertúlia ?... Há malta das tropas especiais que ainda hoje falam por meias palavras, com um grande sentimento de culpa, julgo que muitos deles precisariam de apoio terapêutico e psicológico...

Tenho para aí também um post sobre os paras (uma operação que fizémos juntos e em que apanhámos o pobre do Malan Mané, roqueteiro, mandinga, que fazia parte de um bigrupo comandado pelo lendário Mamadu Indjai, também ferido nessa operação, em Setembro de 1969...).

Em suma, gostei do texto do João Tunes. É saudavelmente provocatório. Temos dificuldade em falar disto. Ele toca aí num ponto sensível para a rapaziada, pelo menos para os operacionais: por exemplo, eu, o António Levezinho, o Humberto, todos da CCAÇ 12; o Marques Lopes, que esteve como alferes, miliciano, em Geba e em Barro, e que foi gravemente ferido; o Vitor Junqueira que também era alferes, atirador; e depois há o Guimarães, que era de minas e armadilhas; e outros mais recentes, que ainda não se manifestaram muito... Estou a citar de cor... Não somos muitos, os operacionais...

Bom, vou ter que basar... Ciao. Façam o link para este endereço (se quiserem saber a estória do gigante Uloma, felupe, caçador de cabeças):

11 Julho 2005 > Guiné 69/71 - CIII: Comandos africanos: do Pilão a Conacri

Vejam também o que o escrevi, há tempos (uma parte de vocês já deve ter lido) sobre o guerrilheiro Malan Mané (o primeiro de vários que capturámos)...

09 Agosto 2005 > Guiné 63/74 - CXLVII: Malan Mané, guerrilheiro, vinte anos, mandinga