terça-feira, 16 de maio de 2006

Guiné 63/74 - P764: Fala-se em 11 mil fuzilados (Leopoldo Amado, historiador)

Guiné > Região Leste > Bafatá > Soldado ferido em operações > "Ponto de honra no terreno. Não podia ficar para trás nenhum combatente, ferido ou morto", diz o João Varanda o fotógrafo, (ex-combatente da CCAÇ 2636, Có/Pelundo e Teixeira Pinto; Bafatá, Saré Bacar e Pirada, 1969/71) .

Foto: © João Varanda (2005)


Temos o privilégio de poder inserir hoje, no nosso blogue, um texto do Leopoldo Amado, historiador, mestre em Estudos Africanos, doutorando em história contemporânea pela Universidade de Lisboa, especialista da guerra de libertação 'versus' guerra colonial na Guiné, guineense, vivendo actualmente em Portugal, editor do blogue Lamparam II, e de quem já publicámos alguns excelentes e oportunos posts (1).

O Leopoldo teve a gentileza de responder ao meu pedido para "pôr os guineenses a falar" sobre o conturbado e ainda mal conhecido período que foi a partida dos portugueses e a subida ao poder dos guerrilheiros do PAIGC..."Eu bem gostaria de pôr a falar os guineenses... Talvez o nosso amigo Leopoldo, o historiador, o nosso doutor, queira dar uma achega"... Estou-lhe grato pelo seu contributo altamente qualificado sobre esta matéria (LG).


Caros amigos:

No período pós-independência, os fuzilamentos dos antigos colaboradores africanos incidiram sobre os Comandos Africanos, Milícias, agentes das forças especiais, fuzileiros, cipaios, régulos, agentes da PIDE, elementos da Acção Nacional, guias, e até agentes que trabalhavam para a administração colonial.

Só no caso da Guiné, fala-se em cerca de 11.000 o número de elementos fuzilados pelo PAIGC imediatamente após a independência. Certo ou não, a verdade é que houve como que uma espécie de vingança quando os ânimos se serenaram, depois que o PAIGC assumiu a administração política do país.

Foi nesse âmbito que, por exemplo, representantes dos Comandos Africanos chegaram a encetar encontros com elementos do PAIGC nessa fase de transição, no quadro e na sequências das negociações encetadas do lado português por Carlos Fabião, e em que se aquilatou a proposta/possibilidade de os ex-soldados africanos integrarem o Exército do PAIGC, proposta essa, de resto, liminarmente refutada pelo PAIGC.

Porém, na sequência do plano de evacuação do contingente do português na Guiné, aprovado nas negociações de Argel e sequencialmente nas matas de Cantanhez por delegações do PAIGC e de Portugal e perante a recusa liminar por parte do PAIGC de proceder a integração pura e simples desses elementos no seu Exército, a generalidade das ex-soldados africanos do, como que pressentindo o que lhes poderia suceder, declararam que não entregariam as armas, nem mesmo depois da evacuação do último contingente português, como forma de pressionar as autoridades portuguesas, junto de quem, aliás, exigiam uma solução para a sua situação.

Do lado do PAIGC, esta declaração dos ex-soldados africanos, sobretudo dos Comandos Africanos, apresentava-se não somente como um desafio à sua autoridade, mas igualmente como uma ameaça, esta última, de resto, alimentada à montante pelo facto de as tropas africanas do Exército Português e essencialmente os Comandos Africanos serem sobremaneira aguerridos e igualmente pelo facto de terem criado, no decorrer da guerra, imensas dores de cabeça ao Comando Militar do PAIGC.

Pois bem, o processo de descolonização na Guiné-Bissau é normalmente caracterizado por "Descolonização por conta própria”, essencialmente devido a inaudita celeridade que o processo conheceu, mas também devido ao facto de, no decorrer do processo, praticamente o PAIGC não ter abdicado da sua posição militar privilegiada para, num ou noutro sentido, influenciar decisões importantes.

É nesse contexto que enquadra a recusa do PAIGC em proceder a integração dos ex-soldados guineenses do Exército português, mas também a recusa por parte dessa formação política-militar da proposta de Spínola no sentido de o próprio se deslocar à Guiné para presidir a cerimónia onde se reconheceria a independência da Guiné-Bissau através de uma Assembleia Magna, em que igualmente marcariam presença as outras forças políticas guineenses, algumas delas como o MDG (Movimento Democrático da Guiné), fabricadas por Spínola à última da hora, com base nos elementos que com ele colaboram na política da Guiné Melhor e nos diversas acções de acção psicológica que quase feriam de morte o PAIGC.

Efectivamente, as tentativas de Spínola de conferir um estatuto que não a da independência as ex-colónias portuguesas, mas sim de uma ampla autonomia mas no quadro de uma federação ou confederação lusa, conforme preconizava no seu Portugal e o Futuro, originou um ambiente de crispação entre este e o MFA que mais tarde havia de levar ao afastamento do próprio Spínola da presidência portugusa.

Portanto, factores de natureza interna da Guiné, na qual o PAIGC não prescindia de influenciar a agenda e o rumo dos acontecimentos e também as decorrentes da política metropolitana, sobretudo em matéria do estatuto a conferir às colónias, acabariam na Guiné por condicionar e mesmo determinar a “Descolonização por conta própria”. Doravante, a evacuação dos contingentes portugueses conheceu uma acrescida celeridade, antecipando-se mesmo, na maioria das situações, o timing aprovado nas negociações havidas. Aliás, é curioso reparar-se que todo o processo de retracção dos contingentes portugueses, concluiu-se antecipadamente em cerca de quase dois meses relativamente ao plano estabelecido.

Assim, animados pela sensação de abandono, acentuado sobretudo pela rapidez com que se processava a retracção dos contingentes portugueses, os ex-soldados guineenses endureceram as suas posições públicas, procurando de alguma forma organizar-se militarmente, não sabendo ou ignorando o facto de que o PAIGC, aproveitando-se sobretudo da sua privilegiada situação militar no período de transição, havia conseguido introduzir meios bélicos e humanos indispensáveis ao aniquilamento de qualquer tentativa de subversão, mesmo nos centros urbanos, onde aparentemente esses ex-soldados africanos dispunham de maiores vantagens.

À medida que o PAIGC ia assumindo o controle total nas circunscrições e aquartelamentos onde, em cerimónias céleres, arreava-se a bandeira portuguesa enquanto se içava a bandeira do PAIGC e da Guiné-Bissau, os ex-soldados africanos encontravam-se numa situação de completo abandono, inteiramente resignados e entregues a si e sem qualquer capacidade de reacção ou de reorganização em termos militares.

Os mais previdentes ainda tiveram tempo de galgar a fronteira com o Senegal, fazendo posteriormente o percurso terrestre até Portugal, mas a maioria foi alvo fácil da estonteante caça às bruxas, imediatamente posta em prática pelas forças do PAIGC, entretanto mobilizadas com um discurso assente na necessidade de ripostar à tentativa dos ex-soldados africanos de continuarem a lutar contra o Exército do PAIGC. Sucederam-se então autênticas razias pelos bairros de Bissau e pelas tabancas do interior onde os ex-soldados africanos entretanto se refugiaram, e onde eram presos e, em regra, fuzilados.

A mesma sorte tiveram muitos agentes da PIDE e/ou colaboradores da administração portuguesa que, em geral, após um longo período de detenção em Bissau, Mansôa, Cantchungo, Quebo, Bafatá, Jugudul e outras localidades, eram sumariamente julgados e publicamente fuzilados, sem apelo nem agravo, sem direito ao contraditório ou o direito de constituição da defesa.

Ainda no alvor da adolescência, assisti em Cantchungo [antiga Teixeira Pinto ] a um desses fuzilamentos públicos, a 10 de Março de 1976, numa sessão pública em que foram fuzilados três traidores, entre os quais o Régulo Baticã do Chão dos Manjacos e um primo meu que pertenceu aos Comandos Africanos, a quem, de resto, visitava e assistia clandestinamente na prisão, graças a colaboração de um guarda prisional, na altura meu amigo.

Hoje, é todavia possível, à distância dos anos da euforia, fazer-se uma leitura mais serena dos acontecimentos que se seguiram à independência e que conduziram ao fuzilamento de milhares de guineenses, sob a acusação de terem pertencido às forças do Exército português, na qual alegada ou pretensamente cometeram crimes e outros porque alegada ou pretensamente colaboraram a vários níveis com as autoridades colónias como PIDE ou na Acção Nacional ou ainda com a política da Guiné Melhor de Spínola.

Com efeito, podemos até compreender que em certos casos teria havido excesso de zelo, mas excesso esse de que indirectamente a Direcção do PAIGC caucionava, em virtude de um sentimento misto que dele se apoderou e que se desdobrava numa espécie da necessidade de vingança para exorcizar algum mal (sobretudo àquela de que se nutriu relativamente aos Comandos Africanos no decorrer da guerra) e igualmente a necessidade de expurgar definitivamente a ameaça (que já não era real) que os ex-soldados africanos só aparentemente representavam, sobretudo os Comandos Africanos.

Hoje, não obstante a fraca capacidade negocial que lhe era intrínseco, fruto do sentimento do derrotismo que se apossou das estruturas de comando, penso que o Exército português devia e podia, ainda na mesa das negociações, ter encontrado uma solução global de compromisso, assente no respeito dos direitos humanos e na dignidade dos guineenses que combateram no Exército colonial.

Tivesse havido vontade política, creio que o próprio PAIGC estaria interessado numa qualquer solução equilibrada relativamente aos ex-soldados guineenses, uma vez que seriam, inquestionavelmente, uma mais valia para o Exército Nacional da Guiné-Bissau, para além da importante contribuição que a sua equilibrada reintegração na sociedade proporcionariam em termos de uma maior catarse em relação às mazelas da guerra, na senda das sinergias necessárias aos esforços ciclópicos de edificação de um novo Estado.

Do lado do PAIGC, pese embora o facto de em certa medida ser compreensível a forma como o PAIGC actuou relativamente aos ex-soldados africanos, é preciso convir que teria faltado a Direcção do PAIGC a serenidade e o sangue frio necessários para, pacificamente, lá onde era possível, integrar social e militarmente os ex-soldados guineenses, sem o prejuízo de, pela via judicial, chamar à razão aqueles sobre os quais pendiam gravíssimas acusações.

Mas em situação de guerra, ou no seu rescaldo, de qualquer guerra, como foi o contexto em que milhares de guineenses foram fuzilados, é sempre possível descortinar-se, a posteriori, imensas situações absurdas. Desde logo, a razão porque se fez a guerra e porque, na sua decorrência, fuzilados ou não, morreram nela milhares de inocentes, de um e outro lado barricada.

Pior ainda: se nos abstrairmos da noção ideológica que encerra a noção politicamente correcta do direito a autodeterminação e independência a que os povos têm direito e a imoralidade que representava a colonização, do lado guineense, tudo o resto tende cumulativamente a constituir-se num grande absurdo que certamente a História se encarregará de elucidar.

Hoje, para além da independência conquistada, infelizmente o povo guineense ainda não se encontra propriamente em posição de, plenamente, poder com propriedade dizer que valeu à pena a independência por que lutaram e morreram muitos guineenses nacionalistas. Do lado português, não é igualmente por acaso que os arcaicos mitos imperiais – em nome dos quais milhares de vidas foram inocentemente ceifadas –, tendem, até hoje, não obstante os novos paradigmas, a sobressaltar a consciência colectiva da sociedade portuguesa e, particularmente, daqueles que nele directamente participaram.

Leopoldo Amado
Abril de 2006
_____________

Notas de L.G.

(1)Vd. posts de:

25 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CLXXIX: Leopoldo Amado, guinense, historiador, novo membro da nossa tertúlia

(...)"Para mim, e para a Guiné-Bissau, é sumamente importante a compreensão dos contornos desta guerra, até para que a imprescindível catarse tenha lugar e possa curar as feridas que abriu (e são elas tantas!), pelo que proponho que me aceitem no vosso grupo de tertúlia, caso acharem que a minha presença não iria de alguma forma perturbar, na medida em que [sou] tão somente um estudioso do assunto e bem tão pouco participei na guerra, senão ouvindo os tiros de um o outro lado, que me deixavam borrado de medo (ainda era uma criança)" (...).

22 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLXXV: Simbologia de Pindjiguiti na óptica libertária da Guiné-Bissau (Leopoldo Amado) - I Parte

(...) "Inicimos hoje a publicação de um importante texto, inédito, do historiador guineense, Leopoldo Amado, doutorando em história contempânea pela Universidade Clássica de Lisboa e membro da nossa tertúlia, sobre o significado dos acontecimentos de 3 de Agosto de 1959, na perspectiva da luta, mais recente, de libertação nacional, liderada pelo PAIGC, e da tradição, mais antiga, de resistência dos guinéus à colonização europeia (incluindo a portuguesa).

"Devido à sua extensão, o texto teve de ser repartido em várias partes. Apesar de assoberbado com os preparativos para a defesa da sua tese de doutoramento, o nosso amigo Leopoldo quis ter connosco uma especial atenção, o que muito nos honra.

"Não temos dúvida, que este seu paper, alicerçado em minuciosa investigação empírica, baseada em documentação de arquivo (incluindo os ficheiros da PIDE/DGS) e em entrevistas a actores-chaves, vem fazer luz sobre uma parte da nossa história comum recente assim muito mal conhecida, contada, analisada e explicada. Obrigado, Leopoldo! (LG)" (...).

Guiné 63/74 - P763: Do Porto a Bissau (17): Finalmente entrámos em Sinchã Jobel (A. Marques Lopes)




Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Sinchã Jobel > 22 de Abril de 2006 > Bombas da Força Aérea Portuguesa que foram lançadas sobre a base do PAIGC, durante a guerra, e que não chegaram a explodir. Na foto de cima, o nosso amigo e camarada A. Marques Lopes.

Fotos: © Xico Allen (2006)

Texto de A. Marques Lopes, coronel DFA, na reforma, ex-alferes miliciano na Guiné (1967/68) (CART 1690, Geba, 1967/68; e CCAÇ 3, Barro, 1968)... Visitou recentemente a Guiné-Bissau, num viagem de grupo organizada pelo Xico Allen...

Pois, camaradas e amigos, eu e o Allen acabámos por entrar na base do IN em Sinchã Jobel, que nunca foi tomada pelas NT, nem quando eu, sem querer, lá fui em 24 de Junho de 1967 (Op Jigajoga) (1), nem em 31 de Agosto de 1967 (Op Jigajoga II), nem em 16 de Setembro de 1967 (Op Jacaré), nem 15 e 16 de Outubro de 1967(Op Imparável), nem em 27 de Outubro de 1967 (Op Insistir), nem em 28 de Outubro de 1967 (Op Instar), nem em 19 de Dezembro de 1967 (Op Invisível) e nem em 21 de Dezembro de 1967 (Op Invisível II), a última que se fez para tomar essa base, comandada durante esse período por Lúcio Soares, como ele próprio me disse (2).

A clareira de Jobel (a tal onde sofri uma emboscada) tem agora uma tabanca (vd. fotos a seguir). Como chegámos lá? Fomos, eu e o Allen, até Sare Banda [vd. carta de Banjara] e aí encontrámos um homem que nos acompanhou, indicando-nos o caminho para Sinchã Jobel.




Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Sinchã Jobel > 22 de Abril de 2006 > Aspectos da actual tabanca, sita no local da antiga base do PAIGC.

Fotos: © A. Marques Lopes (2006)

Durante a guerra, Sare Banda era uma grande tabanca, fruto do reordenamento da zona, e onde esteve um destacamento da CART 1690. É agora pequena, vendo nós pelo caminho já várias outras tabancas, explicando-nos o homem que nos acompanhou que muita gente saíu de Sare Banda para formar outras tabancas. Naturalmente, é claro.

E chegámos a Sinchã Jobel, com alguma dificuldade, é verdade, pois existe para lá um simples carreiro. E eu cheguei à conclusão que seria mais fácil ter chegado à base se as NT tivessem ido por ali, apesar de a mata ser muito cerrada. Lá encontrámos o Dirami e o Mulé (2), dois ex-guerrilheiros daquela base e agora moradores na tabanca de Sinchã Jobel.


Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Sinchã Jobel > 22 de Abril de 2006 > A actual tabanca fica a 200 metros da antiga base do PAIGC.

Foto: © A. Marques Lopes (2006)







Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Sinchã Jobel > 22 de Abril de 2006 > Antiga base do PAIGC. Está-se ainda em plena época seca.

Fotos: © A. Marques Lopes (2006)

Disse o Dirami que conseguiram rebentar várias, mas aquela que vimos não tinham conseguido... e lá está ainda. Muitas delas, eu já sabia, rebentavam nas árvores, outras batiam nelas e caíam sem rebentar, porque já não caíam da forma adequada para rebentarem as espoletas.




Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Sinchã Jobel > 22 de Abril de 2006 > Vestígios ainda bem visíveis, nas árvores, dos bombardeamentos feitos pela Força Aérea Portuguesa.

Fotos: © A. Marques Lopes (2006)

Duas coisas nos indicou o Dirami:

(i) uma, está ele de cócoras, "ali em frente, no tronco daquele poilão era o posto de vigia" (as NT disseram que eles estavam em cima das árvores, mas o que sucedia é que o vigia começava logo a disparar assim que nos via entrar na clareira);


Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Sinchã Jobel > 22 de Abril de 2006 > Local onde se situava o posto de vigia ou sentinela dos guerrilheiros, segundo indicação do Dirami.

Foto: © Xico Allen (2006)

(ii) outra, está ele a dizer-me (vd. foto do cemitério, tirada pelo Allen), "aqui, por baixo destes arbustos está um poço, para onde lançávamos os mortos, pois não havia tempo para fazer covas individuais", e está lá o poço, coberto de arbustos e já tapado com terra;

(iii) e - eu cá para mim - que "lá estarão os corpos do soldado Agostinho Francisco da Câmara, morto em 16 de Outubro de 1967 (3), e do alferes Fernando da Costa Fernandes, morto em 19 de Dezembro de 1967 de Dezembro de 1967, corpos esses que não foi possível recuperar durante as operações feitas nessas datas" (4).


Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Sinchã Jobel > Local onde se situava o poço, agora tapado, para onde eram lançados os cadáveres.

Foto: © Xico Allen (2006)

E ficou-me também a pena de as cabeças pensantes que mandavam na guerra terem insistido em várias operações, a começar nas bolanhas de Sucuta e Canhagina [vd. carta de Bambadinca] e na travessia do rio Gambiel, quando teria sido mais fácil e, se calhar, eficaz terem feito o caminho que eu fiz agora, tanto mais que em duas daquelas operações entrou a tropa especializada dos comandos. Coisas.

Abraços
A. Marques Lopes
_____________

Notas de L.G.

(1) Vd. post de 30 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XXXV: Uma estória de Sinchã Jobel ou a noite em que o Alferes Lopes dormiu na bolanha (1967)

(2) Vd post de 16d e Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXI: Do Porto a Bissau (16): Encontro com o IN (A. Marques Lopes)

O comandante Lúcio Soares tem agora 64 anos. Copm 25 anos, era o comandante de Sinchã Jobel, base que foi montada em maiod e 1967. O comissário político era o Gazela (que morreu há cerca de dois meses). No princípio de 1968, Lúxio Soares saíu para ir comandar a base do Morés, passando o Gazela a comandar Sinchã Jobel. Em 1970 o Gazela foi para sul, para a zona de Empada.

"Após o 25 de Abril integrou o grupo do Pedro Pires, em Londres, para negociar a formalização da independência. Mais tarde foi Ministro da Defesa no governo de Luís Cabral. Após o golpe de Nino Vieira, em 1980, exilou-se em Cabo Verde, onde esteve durante 14 anos. Regressou depois e está, agora, reformado como coronel (mantem o nome comandante porque é histórico" (...).

(3) Vd post de 3 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - XL: Sinchã Jobel IV, V e VI (A. Marques Lopes)

"17. Op Imparável. 15 de 16 de Outubro de 1967:

(...) "A operação foi comandada do PCV (Posto de Controlo Volante) pelo Comandante do Agrupamento. O Agostinho Francisco da Câmara (e não Camará), morto na operação, era açoriano e do meu grupo de combate; o Armindo Correia Paulino, aqui referido, também era do meu grupo de combate, o Bigodes, como lhe chamávamos, um minhoto que foi, mais tarde, aprisionado pelo PAIGC em Cantacunda e que acabou por morrer no cativeiro, em Conakry" (...)

(4) Vd. post de 5 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - XLV: Sinchã Jobel VII (A. Marques Lopes)

"22. Op Invisível. 16 de Dezembro de 1967

(...) “Começou também nessa altura o IN a fazer fogo com o Mort 82, com que abateu o alferes miliciano Fernandes. Verifiquei que nessa altura já o Dest B tinha as seguintes baixas: Alferes Miliciano Fernandes, 1º. Cabo Sousa da CART 1742 (que estava a fazer fogo com a ML MG-42), soldado metropolitano Fragata e um soldado milícia que não consegui identificar, além de vários feridos.

“Procurei trazer o alferes miliciano Fernandes para a rectaguarda, e quando o puxava pelos pés, fui surpreendido por um grupo IN, que corriam em direcção aos furriéis milicianos Marcelo e Vaz e em minha direcção gritando que nos iriam apanhar vivos. Note-se que neste grupo IN avistei elementos brancos os quais usavam o cabelo bastante comprido (a cobrir as orelhas), facto também confirmado pelos já citados furriéis milicianos. Devido a tal, tive que abandonar o corpo do alferes Miliciano Fernandes e retirar" (...).

Guiné 63/74 - P762: Sobre os fuzilamentos... e o nosso direito à tristeza e à mágoa (Jorge Cabral)

Texto do Jorge Cabral, ex-comandante do Pel Caç Nat 63 (Bambadinca, Fá Mandinga, Missirá, 1969/71), e hoje docente da Universidade Lusófona, presidente do Instituto de Criminologia, especialista na área da infância e direito penal, advogado e escritor (1)

Amigo Luís,

Porque comandei um Pelotão de Caçadores Nativos [nº 63] e fui amigo de alguns Comandos Africanos, a questão dos fuzilamentos toca-me profundamente (2).

Já sabia que militares guineenses pertencentes às Companhias e Pelotões de Caçadores haviam sofrido a mesma sorte. Do meu Pelotão foram três, e embora já me tenha referido a este assunto, em colaboração anterior, considero-me obrigado a mais uma vez reflectir serenamente e com a objectividade possível.

Compreendo, aceito e comungo da emoção sentida por todos aqueles que partilharam perigos, cansaços e medos com os africanos, caindo nas mesmas emboscadas e defendendo quartéis comuns.

A emoção porém, ou a falta dela, não nos devem obnubilar a razão ou tolher o raciocínio, contribuindo para conclusões simplistas. Não foram patriotas portugueses que foram fuzilados, nem o lixo, até porque a todo o Homem é devido o respeito pela sua dignidade, inerente à condição humana. Foram Homens que foram fuzilados!

Quero acreditar que todos somos contra a pena de morte e que também repudiamos frontalmente que alguém possa ser condenado sem julgamento. O ter pertencido ao Exército Português foi considerado facto suficiente para consubstanciar o crime de traição. Não se apuraram as culpas individuais, nem a consciência da ilicitude, num Tribunal imparcial, que garantisse o Direito de Defesa, como deve acontecer em qualquer parte do Mundo.

Parece evidente que o ter sido torcionário, cortador de cabeças ou criminoso de guerra, constitui uma realidade diferente do ter servido rotineiramente, por necessidade de sobrevivência, num Pelotão ou numa Companhia de Caçadores Africanos.

Tinham todos os guineenses que integravam as tropas portuguesas a consciência de que estavam a trair a sua Pátria? Haviam todos interiorizado o conceito de Pátria? Porque serviam no Exército Português?

Ao longo dos tempos, nas Campanhas de Subjugação e Pacificação, os Portugueses contaram quase sempre com a ajuda dos Fulas, os quais combatiam ao serviço de Senhores da Guerra, enquadrados em unidades africanas, ou desempenhavam funções de auxiliares. Não lutavam por nenhuma Pátria, eram aliados dos Portugueses, contra Papeis, Balantas, Bijagós, Felupes ou Mandingas, os quais se batiam em defesa do seu chão, contra o pagamento de impostos ou o recrutamento forçado para as obras. A sede do poder e da riqueza, e a possibilidade do saque, justificava a aliança Portugueses-Fulas.

A ideia do Portugal plurirracial é contemporânea do início da Guerra Colonial. A substituição do termo Colónias pela designação Províncias Ultramarinas, foi expediente saloio, para enganar a Comunidade Internacional, e procurar legitimar a Guerra – Portugal não tinha Colónias e todos eram Portugueses. Todos sabemos que se tratava de uma ficção.

Nas Colónias vigorou o Estatuto do Indigenato, de acordo com o qual, só alguns eram considerados assimilados, usufruindo da cidadania. Os africanos foram sempre subalternizados, empregados em funções menores, ou enfeitados com cargos honoríficos como os oficiais de 2ª Linha.

Até aos anos 60, nenhum negro tinha acesso à frequência da Escola do Exército. É com a guerra que esta situação vai ser alterada. A necessidade de homens para combater determinou uma estratégia de africanização, que deu lugar à criação de unidades africanas, Companhias e Pelotões, de base étnica, e primeiramente comandadas por quadros europeus. (Quando tomei conta do meu Pelotão, tinha soldados balantas, bigajós, mandingas, papeis e fulas. No fim da comissão só existiam fulas).

A primeira Companhia, totalmente africana, foi a dos Comandos Africanos, cuja instrução acompanhei em Fá Madinga. Oficiais, sargentos, furriéis e praças, incluindo mecânicos, vaguemestres, enfermeiros, todos eram guineenses.

Entre os militares nativos do meu Pelotão, existiram os que apenas cumpriram o serviço militar obrigatório e passaram à disponibilidade, designadamente todos os cabos (Injai, Carlitos, João, Negado e outro de etnia Manjaca de que não recordo o nome). Nenhum deles era Fula. Os Fulas continuaram. Porquê? Que iriam fazer fora da Tropa? Como sobreviver? De que forma alimentariam as mulheres e os filhos? Não haviam os avós e os bisavós, combatido ao lado dos portugueses? E combatido contra quem? Contra Balantas, contra Mandingas, que agora estavam no P.A.I.G.C. Onde o conceito de Pátria? Qual Pátria?

Obviamente que o caso dos quadros dos Comandos Africanos é diferente. Para os meus amigos Saegue, Januário, Jamanca, Camará, Justo ou Sisseco, o ser oficial do Exército Português representava a ascensão social, mas também a desforra contra séculos de humilhação. Os portugueses precisavam deles. Afinal também os negros podiam comandar tão bem ou melhor do que os oficiais saídos da Academia Militar (é interessante assinalar que as reticências postas por eles à Operação Mar Verde, tiveram principalmente a ver com o uniforme. Queriam ir, mas fardados de oficiais portugueses).

Que esperavam estes comandos no fim da Guerra? Não posso falar por todos. Mas conversei sobre o assunto muitas vezes com o Saegue, que acreditava numa solução política, numa independência negociada, na sua futura integração no Exército da Guiné Bissau, ou na sua vinda para Portugal, que ele conhecia, pois estudara em Santarém.

Só uma eufórica ingenuidade, pode ter permitido tão trágico quanto negligente abandono. Bastaria ter atentado no que sucedeu ao Januário, irmão de um quadro do P.A.I.G.C., que tendo desertado em Conakry com o seu grupo de combate foi fuzilado, ele e os seus homens.

Não podemos emendar a História! E quanto à dramática morte de Amigos, ou de Homens com quem convivemos diariamente, assiste-nos o direito à tristeza e à mágoa, independentemente dos erros, que eles possam ter cometido.

Como sempre, um Grande, Grande Abraço,
Jorge
__________

Nota de L.G.

(1) Vd. post de 17 de Dexembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXXII: Vocês não tenham medo, não fujam, sou o Cabral (Fá, 1969/71)

(2) Vd. posts recentes de (entre outros):

12 de maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXLIX: O fuzilamento do Abibo Jau e do Jamanca em Madina Colhido (J.C. Bussá Biai)

12 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXLVIII: Vítimas e carrascos, amos e servos, sacanas e traidores (João Tunes)

11 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXLIII: Aos nossos queridos nharros (Zé Teixeira)

10 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXLII: O poilão dos fuzilamentos em Bambadinca (David Guimarães)

6 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXX: Ex-comandos africanos, 'órfãos de Pátria', reportagem na RTP 1 (José Martins)

Guiné 63/74 - P761: Do Porto a Bissau (16): Encontro com o IN (A. Marques Lopes)

Guiné-Bissau > Bissau > Restaurante Colete Encarnado > 21 de Abril de 2006 > O coronel A. Marques Lopes, o comandante Lúcio Soares e o comandante Braima Dakar. Foto: © Xico Allen (2006)



Guiné-Bissau > Bissau > Restaurante Colete Encarnado > 21 de Abril de 2006 > O A. Marques Lopes e o Lúcio Soares. Foto: © Xico Allen (2006)


Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Sinchã Jobel > Darami Nabo, guerrilheiro do PAIGC, que esteve na base de Sinchã Jobel durante a guerra, e que hoje mora lá. É irmão do Mulé.
Foto: © A. Marques Lopes (2006)


Guiné-Bissau > REgião de Baftá > Sinchã Jobel > Mule Nabo, guerrilheiro do PAIGC, que esteve na base de Sinchã Jobel durante a guerra, e que hoje mora lá. É irmão do Darami.
Foto: © A. Marques Lopes (2006)

Texto de A. Marques Lopes, coronel DFA, na reforma, ex-alferes miliciano na Guiné (1967/68) (CART 1690, Geba, 1967/68; e CCAÇ 3, Barro, 1968)...
Comentário de L.G.: Agradeço ao A. Marques Lopes e ao Xico Allen esta oportunidade, excepcional, de conhecer o rosto daqueles a quem chamávamos eufemisticamente o IN... Pois o IN tinha rosto, eram homens (e mulheres), de carne e osso, como nós, que combatiam pelas suas razões... Reencontrá-los, apanhá-los ainda vivos e lúcidos, pô-los a falar, ouvi-los, saber por onde andaram, reconstituir a sua estória de vida como guerrilheiros, sentir a pulsão das suas emoções, paixões, alegrias e medos, mexer com a sua memória, fazer as pazes come eles... é uma tarefa urgente e imprescindível para que a nossa missão, agora de paz, se cumpra definitivamente...
Temos essa obrigação, a de dar voz (e imagem) a esses velhos guerrilheiros, caboverdianos e guineenses, que deram o melhor da sua vida e da juventude pela realização de um sonho, o sonho de Amílcar Cabral e de mais um punhado de homens e mulheres que queriam ser livres e donos da sua terra, e passar a falar connosco, em português, mas de iguais para iguais... O texto e as fotos que hoje inserimos marcam um momento muito simbólico da vida da nossa tertúlia... Perdõem-me o abuso do tempo de antena, mas eu, como editor do blogue, precisava de fazer esta pequena chamada de atenção. Obrigado Marques Lopes, Xico Allen, Lúcio Soares, Braima Dakar e irmãos Nabo... L.G.
Encontro com o IN

... Mas, desta vez, este encontro não meteu tiros, como sucedeu naquele dia 24 de Junho de 1967, durante a operação Jigajoga (1). Ao invés, tivemos que nos haver, em conjunto, com os belos pratos do restaurante Colete Encarnado, em Bissau, e isto sucedeu na noite do dia 21 de Abril de 2006, já eu e o Allen estávamos sozinhos (os restantes tinham regressado a Portugal no avião da tarde).

Através do nosso grande amigo Pepito , consegui o telefone do comandante Lúcio Soares, convidei-o para jantar e ele acedeu prontamente a estar comigo e com o Allen. Não tenham dúvidas que foi um encontro emocionante para mim, estar com o chefe guerrilheiro que montou a emboscada que me fez ficar uma noite na bolanha de Sinchã Jobel (2) e que, mais tarde, me mandou nove meses para o hospital (3).

Falámos sobre isso, e mostrou ser um homem calmo e comedido. Ele tem agora 64 anos e chegámos, pois, à conclusão que andámos aos tiros um ao outro, eu com 23 anos e ele com 25, eu mandado para lá sem quaisquer objectivos pessoais, a não ser sobreviver durante a missão que me foi imposta, e ele, como me disse, com o objectivo muito assumido de lutar pela independência da sua terra. Concordámos que foi pena as coisas se terem passado como passaram, que era melhor ter encontrado outra forma menos dolorosa de resolver o conflito imposto.

Contou-nos algumas coisas do seu percurso. As baracas foram montadas em Sinchã Jobel em Maio de 1967 e, a propósito, perguntou-me se, quando lá fui a 24 de Junho, já sabia que eles estavam lá. Esclareci-o que eu não sabia nada, mas que as cabeças pensantes tinham suspeitas disso sem me dizerem, que eu fui num jogo de cabra-cega, ao ludíbrio, que é o que quer dizer jigajoga, e por isso lhe deram o nome.

Enquanto lá esteve como comandante, o Gazela (morreu há cerca de dois meses) era o seu comissário político. No princípio de 1968 saíu para ir comandar a base do Morés, passando o Gazela a comandar Sinchã Jobel. Em 1970 o Gazela foi para sul, para a zona de Empada, mas não me soube dizer qual foi o seu substituto.

Após o 25 de Abril integrou o grupo do Pedro Pires, em Londres, para negociar a formalização da independência. Mais tarde foi Ministro da Defesa no governo de Luís Cabral. Após o golpe de Nino Vieira, em 1980, exilou-se em Cabo Verde, onde esteve durante 14 anos. Regressou depois e está, agora, reformado como coronel (mantem o nome comandante porque é histórico).

Contou-me que sofreu uma emboscada em 1968, na zona de Sambuiá (uma das zonas da minha actividade operacional, quando na CCAÇ 3 em Barro), quando se dirigia ao Senegal. Terei sido eu? Não sei.

O Braima Dakar, nome de guerra de Braima Camará, numa das fotografias, é outro comandante que esteve ligado à morte dos três majores em chão manjaco (4). Disse-me que se disseram muitas coisas sobre isso que não são verdade, que não queria falar, e não me contou nada.

O Mulé Nabo e o Darami Nabo são dois guerrilheiros do PAIGC, irmãos, que estiveram na base de Sinchã Jobel durante a guerra, em cuja tabanca moram actualmente. Perguntei ao Lúcio Soares se queria ir comigo lá, mas ele disse que não tinha disponibilidade.

Curiosamente, quando estávamos já a comer, entraram dois polícias no Colete Encarnado e ficaram numa mesa atrás. A certa altura, o Lúcio Soares foi à casa de banho e, quando voltou, deu com os polícias. Foi quando me disse que não podia ir a Sinchã Jobel e, de seguida, se levantou e se desculpou pois tinha de ir embora. Os polícias foram de seguida.

Mas eu e o Allen fomos a Sinchã Jobel. Depois conto.

Abraços
A. Marques Lopes

____________

Nota de L.G.

(1) Vd post de 30 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XXXV: Uma estória de Sinchã Jobel ou a noite em que o Alferes Lopes dormiu na bolanha (1967)

(...) " Na primeira metade de 1967, o PAIGC montou uma base de guerrilha em Sinchã Jobel. Sem querer (...), fui eu que dei com ela. O responsável militar dessa base era o Comandante Lúcio Soares, que foi, depois da independência, Ministro da Defesa; o responsável político era Cabral de Almada, conhecido como Comandante Gazela, que foi Vice-Presidente da Assembleia Nacional Popular.
"Quando estive na Guiné-Bissau, em 1998, pouco antes do golpe de Ansumane Mané, tive uma conversa muito interessante com o Comandante Gazela: lembrámos muita coisa sobre Sinchã Jobel, falámos dos problemas do povo guineense, concordámos que era melhor não termos andado aos tiros uns aos outros (pediu-me desculpa por me ter mandado para o hospital, mas teve de ser assim...)... e demos um abraço de despedida" (...).
(2) Vd. post de 30 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XXXVI: Na bolanha dá para pensar...


Excerto de um comentário de L.G. sobre este texto do A. Marques Lopes: "É um texto de uma grande riqueza humana e de excelente recorte literário... Um texto de cortar a respiração, ao reconstruir o inferno da guerra, o inferno físico e psicólogico daquela guerra, ao mostrar o absurdo daquela guerra e das suas razões de Estado...Fiquei com a ideia de que, mais do que uma simnples página de um diário, poderia ser o excerto de um livro em curso. Um daqueles livros que se vai construindo na cabeça de cada combatente da guerra colonial na Guiné, depois de passar à peluda. Um livro que todos nós, um dia, gostaríamos de escrever e de publicar. Ou de ter escrito e de ter publicado. Um livro que gostaríamos de dar a ler, porventura com secreto prazer mas seguramente com reserva e pudor, à nossa companheira, aos nossos filhos e netos, aos nossos pais, aos nossos irmãos e e aos nossos amigos, e até aos poucos companheiros da nossa geração que não foram à guerra. Talvez um livro, ou talvez apenas um conto, um conto de guerra, em todo o caso a merecer antologia" (...).

(3) Vd post de 30 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XXXIII: A morte no caminho para Banjara

(4) Vd. post, de João Varanda, de 26 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXIII: A morte de três majores e de um alferes no chão manjaco

Guiné 63/74 - P760: Tabanca Grande: Bem vindo, alferes Torcato Mendonça da CART 2339 (Mansambo, 1968/69)

Texto do CMS (Carlos Marques dos Santos):

Luís:

É com satisfação que vejo entrar na tertúlia o nosso Alferes Torcato.

A propósito do almoço da CART 2339, no próximo dia 20, no Gerês, enviei a nossa morada tertuliana e o Torcato ligou-me de imediato. Estivemos meia hora ao telefone, recordando factos da nossa experiência vivida na Guiné.

Um dos factos dizia respeito ao Malan Mané e à emboscada que nós tinhamos preparada na sequência da acção dos fusos [ou melhor, dos paras. L.G.]

Eu estava lá, em pé, atrás de um baga-baga, atento, e vi chegar 2 batedores do Bigrupo em fuga.

A minha secção era a da bazuca e o Moreira (apontador), percebendo que a linha de progressão do IN viria concerteza atrás, disparou.

Soubemos depois que Mamadu Indjai (comandante de Sector) tinha sido ferido.

Estes factos já foram contados, mas vêm a propósito.

Um abraço, camarada Torcato, e bem vindo.

Um abraço para ti, Luís.

CMS

Guiné 63/74 - P759: Panfletos de propaganda dirigidos ao 'homem do mato'

Panfletos de propaganda política, destinados aos combatentes do PAIGG, elaborados em 1970 pelo Exército Português, escritos em crioulo. Chegaram à nossa tertúlia por mão do Manuel Mata. Foram-lhe oferecidos pelo seu amigo, o comerciante Sr. Teófilo, de Bafatá (1).

© Manuel Mata (2006) (2)

Tradução do crioulo: © Mário Dias (2006) (3)


"COMBATENTES, NÓS FOMOS ENGANADOS!

Agora nós sabemos que no PAIGC
nós lutamos só contra a felicidade do povo,
e contra o progresso da Guiné...
Agora nós vemos claro como os dirigentes do PAIG nos enganam".
Foi assim que NHATE BUIDA falou na Rádio de Bissau no dia 23 de Junho de 1970.

HOMEM DO MATO:
O Governo está a construir o progresso e a felicidade do povo.
O PAIGC só traz morte, miséria e sofrimento para o povo
e para os combatentes.

HOMEM DO MATO!
NO PAIGC TU LUTAS CONTRA O POVO

VEM JUNTAR-TE AO POVO PARA CONSTRUIR
UMA GUINÉ MELHOR.


HOMEM DO MATO !
O MOTIVO DA LUTA JÁ ACABOU

Assim disse Nhate Buida, chefe de grupo do PAIGC, de Naga,
que foi apanhado pela tropa no dia 16 de Maio de 1970.
ELE NÃO QUER REGRESSAR PARA O MATO.
__________

Notas de L.G.

(1) Vd. posts de:

11 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCXCIV: Panfleto de propaganda, em crioulo, do PAIGC: Irmãos...(1970)
2 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCLXXII: Esquadrão de Reconhecimento Fox 2640 (Manuel Mata) (5): Foguetões 122 mm no Gabu

(2) Manuel Mata, ex-1º cabo apontador de Carros de Combate M 47, Esquadrão de Reconhecimento Fox 2640 (Bafatá, 1969/71).

(3) Mário Dias, ex-sargento Comando (Brá, 1963/66)

segunda-feira, 15 de maio de 2006

Guiné 63/74 - P758: Eles apenas queriam uma pátria (Américo Marques)

Texto do Américo Marques (Ex-soldado de transmissões, 3ª CART / BART 6523, Nova Lamego e Cansissé, Junho de 1973-Setembro de 1974) (1):

Boa tarde Luis!

Aqui envio uns desabafos em jeito de solidariedade para com os nossos Camaradas Combatentes, nascidos na Guiné. Que a reportagem televisiva mostrou, e ficamos a saber que existem; o que não sabemos, é se vivem! E esse pensamento mexeu comigo como eu não pensava. Porque os nossos governantes estão sempre atentos aos problemas dos Países que falam português; porque nunca imaginei que se esquecessem destas Pessoas que também falam português e são portuguesas.

Américo Marques

Gatilhos de Aluguer

Gatilhos de aluguer... É o que me apetece dizer! Depois de ouvir com a alma e ver com emoção cabisbaixa a reportagem televisiva, sobre os Competentes e Leais Combatentes da então Província Ultramarina da Guiné. E por conseguinte, irmãos de sortes e desventuras, servidores da Bandeira das Quinas.

Por estas e por outras, no meu ponto de vista, poderemos descobrir o porquê da nossa falta de autoestima; o determinismo redutor das capacidades individual e colectiva. Assim como se cultiva roendo unhas uma grande fragilidade patriótica.

E sobre a Pátria vou escrever e vou citando. Neste caso, Zeca Afonso que cantava “não sejas tão Castelhana” . E eu, como não sei cantar, apupo: não sejas tão Madrasta! Porque Aqueles esforçados Combatentes não eram mercenários. Eram, sim, pedaços de grande Gente que recebia uns poucos pesos e uns quilos de bianda.

Porque País não é o mesmo que Nação; então só lhe terá direito e direitos quem a defendeu quando necessário, e todo o outro que a dignificou. Logicamente, e óbvio não se pode tratar nunca semelhantes pessoas como números duma estatística comum da sociedade. Universalmente têm direito ao aplauso e ao respeito. Ao fim e ao cabo, oferecer-lhes uma existência digna.

Concluindo com prosa de escuteiro: "Honraram a Pátria para Serem Contemplados mas a Pátria não Os Contemplou”. E eles apenas queriam uma pátria que fosse: Protectora; Optimista; Respeitadora;Tolerante; Uniforme; Generosa; Altruísta; Leal

Américo Marques
_______________

Nota de L.G.

(1)Vd post de 12 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXVI: Américo Marques, o último soldado do Império (Cansissé, 1974)

Guiné 63/74 - P757: A festa do fanado ou a cruel Mutilação Genital Feminina (Jorge Cabral)

Cartaz de campanha internacional contra a Mutilação Genital Feminina, em inglês, francês e árabe, com apoio da União Europeia.

Foto: © International Campaign for The Eradication of Female Genital Mutilation (2002) (com a devida vénia...).

O Jorge Cabral, advogado e professor universitário, director do Instituto de Criminologia da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, deu há tempos uma entrevista a dois dos seus alunos (1), aceitando falar da sua condição, algo priviliegiada, de testemunha presencial de uma acto de mutilação genital feminina (MGF) na Guiné, em 1969.

Pelo contexto e época, percebemos que essa cereimónia decorreu nas imediações de Fá Mandinga, a nordeste de Bambadinca. O Jorge Cabral, branco, europeu, militar, comandante do Pel Caç Nat 63, deverá ter sido ser um dos raros homens, africanos e não-africanos, a assistir a este cruel ritual de passagem, ainda profundamente enraízado na cultura de certos povos, nomeadamente de África.

Pelo seu interesse e actualidade, voltamos a publicar esta entrevista (1), agora em post autónomo.

Entrevista ao Prof. Dr. Jorge Cabral (2)

P: Quando é que assistiu à excisão?

R: Em 1969.

P: Foi na Guiné Bissau?

R: Sim

P: Porque é que quis assistir?

R: Por curiosidade antropológica. Eu fui sempre uma pessoa extremamente curiosa. O problema da colonização portuguesa, que é o problema de qualquer colonização, é que o colonizador não fez um esforço para perceber a cultura do colonizado. A colonização é isto: partir da base que a nossa cultura é que é.Neste sentido, já que eu estava numa posição privilegiada, procurei compreender alguma coisa dessa cultura e, obviamente, a excisão fazia parte dela. Também procurei compreender o tipo de famílias, as relações familiares, perceber porque é que alguns cortavam as cabeças a outros, qual o significado de cortarem a cabeça e pô-la nos pântanos... procurei entender, embora não seja antropólogo.Eu nessa altura nunca tinha ouvido falar da excisão... em 69. Foi uma experiência sobretudo traumatizante. Se calhar tenho o trauma da excisão!

P: Mas foi lá de férias, estava de passagem...?

R: Não, não! eu estava na guerra!

P: Qual foi o tipo de excisão a que assistiu?

R: Foi a mais simples, foi a ablação do clítoris.

P: Em que condições foi feita?

R: As condições eram más... mas estavam várias miúdas para fazer a cerimónia. A cerimónia só tinha mulheres, a rapariga... era uma miudita de onze anos talvez... estava amarrada, era evidente que gritava, gritava bastante e era uma mulher mais velha que fez o corte para a ablação do clítoris.

P: Com que objecto?

R: Com uma faca e sem quaisquer condições de higiene, aliás, como era feita a circuncisão dos miúdos. Era feita com uma faca ou com uma lâmina.

P: Como é que foi feita a abordagem, como é que se proporcionou a hipótese de ver uma excisão?

R: Eu estava numa situação muito privilegiada, primeiro porque eu era chefe daquilo tudo, segundo porque estava só com soldados africanos e com população africana, cada soldado tinha as suas três mulheres, não sei quantos filhos, de maneira que eu era, pelo menos a um nível simbólico, uma espécie de chefe. Nesse sentido, por curiosidade, falei com mulheres, não falei com homens, e disse que estaria interessado. Primeiro negaram, disseram que os homens não podiam assistir e eu lá expliquei, lá entreguei dinheiro e lá consegui. A cerimónia não é feita na aldeia, é feita fora da aldeia.

P: Porquê?

R: Porque mesmo entre eles é dotado de algum secretismo, é uma cerimónia que tem alguma coisa de religioso por isso mesmo não é feita na aldeia, é feita na floresta. A rapariga não sabia como era. Há simultaneamente medo mas algum orgulho porque significa uma passagem para uma idade adulta, por isso há essa duplicidade, penso eu, ao nível das miúdas que têm medo, é evidente, porque as outras também já contaram como foi e que vão sofrer muito, mas ao mesmo tempo... se calhar é como usar o primeiro sutiã. Há efectivamente um certo orgulho.

P: Qual é a posição dos homens em relação à excisão?

R: Os homens concordam até porque eles não aceitam para mulher alguém que não seja excisada.Dentro da própria comunidade uma rapariga que não tenha passado pela excisão, dificilmente arranjará marido. Uma rapariga que não tenha feito a excisão é uma criança por isso elas submetem-se para evitarem a exclusão.Não podemos generalizar e falar da mulher africana porque mesmo na Guiné não são todas as etnias que fazem a excisão. Normalmente são os islamizados. Há excisões muito mais gravosas principalmente na Somália, na Etiópia.Há outro tipo de excisão, já agora. É uma excisão que se faz em Angola, eu ainda estou a começar a estudar isso, é uma excisão ao contrário, serve para mulher ter mais prazer durante o acto sexual. Ainda não vi nada disso escrito, li isso num romance. Já perguntei a várias angolanas e elas não sabem nada mas é uma excisão para dar mais prazer à mulher, não é como a outra. Não é a ablação do clítoris, é como um “desembaraçar” do clítoris e também é feita na pré-adolescência, aos 12, 13 anos.

P: A maior parte das pessoas é contra esta prática porque é uma violação dos direitos humanos...

R: Sim, embora isso hoje seja muito discutível há uma posição radical que diz que isto ofende os direitos humanos mas há vozes autorizadas que a defendem e eu já tive a oportunidade de assistir a uma conferência, creio que há três anos, em Valência, em que um professor dizia “O que é que nós temos a ver com isso?! Isso é um valor cultural, porque é que nós estamos sempre a ver de uma perspectiva europeia, europocêntrica o problema?”Por isso há vozes que discordam desta luta contra a mutilação sexual.

P: Mas hoje em dia há organizações e outras pessoas que trabalham no terreno, no sentido de dissuadirem as mulheres a praticar este tipo de ritual.

R: Pode ter o efeito contrário, não é?!, se é proibido...

P: O isolamento destas tribos torna muito mais difícil o acesso a qualquer alteração na mentalidade destas pessoas?

R: Será muito difícil. Se nós defendêssemos sempre os mesmo valores culturais não havia evolução. É precisamente a mesma coisa, os chineses partiam os pés às crianças, os aztecas apertavam os olhos, o meu avô tomava banho uma vez por mês... quer dizer esses são valores culturais. As coisas alteram-se.

P: O que é que a lei portuguesa diz acerca disto?

R: A lei portuguesa não prevê a excisão. Se aparecer algum caso será um crime contra a integridade física grave, se aparecer algum caso. Já me contaram um caso que apareceu num hospital em que os próprios médicos nunca tinham ouvido falar da excisão e não foi levantado nenhum processo crime. Os médicos apenas verificaram que havia uma ablação mas não sabiam mais nada.

P: A quem seria aplicada a medida?

R: Neste caso seria contra a mãe. Ela é que é responsável porque leva a criança e, também, contra quem fez isso. É evidente que os casos vão aparecer. Será inevitável que qualquer dia apareça um caso destes, em França já foram julgados alguns casos.

P: Quer dizer que não estamos preparados...

R: Claro que não! É natural que uma miúda apanhe uma infecção qualquer, vá para a Estefânia e... é natural! O que o médico devia fazer era participar imediatamente mas para isso é preciso que os médicos saibam o que é a excisão e que se pratica em Portugal .
_____________

Notas de L.G.

(1) Mafalda Sofia Félix dos Santos; Paulo César Lino Belchior de Matos - Mutilação genital feminina. Trabalho apresentado na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias no Curso de Pós-Graduação em Criminologia. s/d.

(2) Vd. post de 17 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXXII: Vocês não tenham medo, não fujam, sou o Cabral (Fá, 1969/71)

Guiné 63/74 - P756: Conferência sobre a Mutilação Genital Feminina, Hospital dos Capuchos, Lisdboa, 17 der maio de 2007, àss 16h00, com a participaçao de Jorge Cabral e Luís Graça



Mutilação Genital Feminina (MGF) > Cartaz da conferência a realizar, em Lisboa, no Centro de Formação do Hospital dos Capuchos, dia 17 de Maio de 2006, às 16h00.

Foto: Fórum de Santo António dos Capuchos (2006) (com a devida vénia...)

Convidam-se os membros da nossa tertúlia, e quaisquer outros vistantes do nosso blogue que estejam eventualmente interessados nesta problemática, a participar na sessão de apresentação e discussão do trabalho “Mutilação Genital Feminina”, de Mafalda Sofia F. Santos e Paulo César L.B. Matos (Universidade Lusófona).

Trata-se de um conferência sobre a abordagem multidisciplinar da Mutilação Genital Feminina (MGF), a realizar no Hospital dos Capuchos, Centro de Formação, no próximo dia 17 de Maio, às 16h.

Entre os comentadores figuram o editor deste blogue (Prof. Luís Graça, ENSP/UNL) bem como o nosso amigo e camarada da Guiné, o Prof. Jorge Cabral (Universidade Lusófona). Para mais informação ver o sítio Fórum de Santo António dos Capuchos.

Segundo o texto de apresentação desta confereência, a MGF provoca 3 Milhões de Vítimas por ano, de acordo com a denúncia feita no relatório da Unicef, Mudar uma convenção social nefasta: a mutilação genital feminina, publicado em 2005.

"Fenómeno social complexo, porque a sua explicação requer diferentes perspectivas de abordagem (antropológica, sociológica, religiosa, etc.), a mutilação genital feminina tem merecido a condenação dos organismos de direitos humanos, mas a prática continua violentando crianças e jovens mulheres.

"A temática escolhida para a conferência organizada pelo Fórum de Santo António, que reúne especialistas de renome, pretende evidenciar um diagnóstico e levantar pistas para a intervenção social, especialmente numa perspectiva de prevenção, dando visibilidade a um problema que muitas das vezes se apresenta escondido e clandestino".


Trata-se de uma conferência certificada, que se recomenda a profissionais, docentes e estudantes das várias profissões de intervenção social (porfissionais de saúde, técnicos de serviço social, animadores socioculturais, etc.).

Sobre este tema (que no nosso tempo, em plena guerra colonial, não mereceu qualquer atenção, interesse ou preocupação por parte das autoridades portugueses bem como dos militares portugueses), já em tempos foi aqui publicado um post de Luís Graça, com data de 4 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XII: O silêncio dos tugas face à MGF (Mutilação Genital Feminina)

Segundo dados da OMS - Organização Mundiald e Saúde, a taxa de prevalência da MGF na Guiné-Bissau seria da ordem dos 50%, atingimdo maior percenategm entre as mulheres fulas e mandingas (70% a 80%). A modalidade MGF mais praticada é de tipo II: Excisão do clitóris com parcial ou total excisão dos lábios menores...

Há um excelente dossiê do jornal Público sobre a MGF, disponível em linha.

A jornalista Sofia Branco recebeu o Prémio Mulher Reportagem Maria Lamas 2002 pelo trabalho “Mutilação genital feminina — O holocausto silencioso das mulheres a quem continuam a extrair o clítoris”, publicado em 4 de Agosto de 2002.

Guiné 63/74 - P755: Ajudar os guineenses a fazer o luto (Luís Graça)


Guiné-Bissau > Africanidades, blogue do Jorge Neto > Um tuga, da nova geração, um alentejano, que não fez a guerra colonial, que vive e trabalha em Bissau, e que dá voz (e imagem) aos guineenses que a não têm... Aqui, as crianças a caminho da escola. "25.4.06. Nós vamos à escola...e para além do caderno levamos o banco, para nos sentarmos!"... Que maravilhas, a foto e a legenda! Esta é a Guiné que queremos também a ajudar a construir...

Foto: © Jorge Neto (2006 (com a devida vénia, amigo...)

Mensagem enviada ao Jorge Neto:

Meu caro Jorge (1):

Continuo a apreciar (e a invejar...) o teu trabalho como jornalista independente, lúcido, sensível e corajoso e sobretudo o teu Africanidades, que muito nos ajuda a (re)construir uma certa ideia da Guiné, de hoje e de ontem... Tu fazes mais pela nossa cultura portuguesa e sobretudo pela lusofonia do que todos os burocratas do MNE [Ministério dos Negócios Estrangeiros] juntos e atirados ao Rio Corubal...

Desculpa-me a minha incursão pelos teus sonhos, ou melhor, a minha intempestiva intromissão, com os meus pesadelos atávicos, pela bolanha dos teus sonhos... Mas acho que, juntos, podemos de algum modo contribuir para que os velhos irãs da floresta da Guiné-Bissau se acalmem...

Quando fores para os lados de Bambadinca e do Xime, peço-te que procures almas penadas como o do Abibo Jau, o Jamanca e tantos outros, que foram meus camaradas de armas e que, enquanto guinéus, apostaram no cavalo errado (2)... Um dia destes, se fores para aqueles lados, para a região leste, procura saber notícias deles... Tal como fizeste como o Seni Candé, quando foste ao Cantanhez.

Um grande chicoração para ti.

PS - Estive há dias no teu chão e na tua terra. O Alentejo, rouxo, verde e amarelo, estava esplêndido. Tal como na Páscoa, em Abril, quando lá estiveste e fizeste umas belíssimas fotos que publicaste no teu blogue... E a tua Évora, cada vez mais menina e moça... Enfim, sabes que a beleza é um estado de espírito. Mas tu devias de gostar de atravessar o teu Alentejo no mês de Maio (3)...

Luís


2. Resposta do Jorge;

Olá Luís,

Obrigado pelo e-mail e pelas elogiosas palavras. Ainda este fim-de-semana passei por Bambadinca, mas só de passagem. Um dia que passe com tempo pararei e perguntarei por essas pessoas.

A situação dos antigos combatentes é de lamentar. Vamos tentar, devagarinho, alertar consciências. O problema é sensível e antigo, mas não pode ser esquecido. Sinto vergonha de ser português, quando encontro homens como o Seni [Candé], a viver como vivem!

Espero que as forças para continuar com a Blogueforanada continuem, pois tornou-se um espaço de referência para questões ligadas aos antigos combatentes e à guerra colonial (e não só)! Ainda um dia o veremos em livro, ou, se as editoras persistirem em não abrir as pestanas para certas realidades, concerteza vê-lo-emos citado em trabalhos de investigação, pois ele é uma fonte a não descurar no estudo do que foi a nossa passagem por África.

Um abraço,
JN
____________

Notas de L.G.

(1) Mensagem enviada no seguimento de uma outra, que mandei, sábado, 13 de Maio, ao resto da tertúlia, e que dizia basicamente o seguinte:

"Amigos e camaradas: A barra hoje está pesada... Temos que despejar o saco...Só quero lembrar que na nossa tertúlia ninguém censura ninguém: somos a mais plural das casernas de todas as tropas do mundo... Aqui só é proibido proibir... Eu bem gostaria de pôr a falar os guineenses... Talvez o nosso amigo Lepoldo, o historiador, o nosso doutor, queira dar uma achega... O meu muito obrigado ao José Carlos Mussá Biai, o nosso menino do Xime... Os teus olhos de criança já viram demasiadas coisas (más) na vida... Obrigado ao António Duarte, ao Hugo, a todos os demais tertulianos que também são capazes de falar destas merdas que nos atormentam... Obrigado também ao João Tunes, pela sua brutal franqueza... Confesso que hoje estou deprimido: levei um murro algures, no corpo e na alma, não sei onde... Vou beber um copo... Luís".

(2) Vd post de 12 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXLIX: O fuzilamento do Abibo Jau e do Jamanca em Madina Colhido (J.C. Bussá Biai)

(3) Também escrevo no Blogue-fora-nada ... E Vão Dois. E às vezes sobre o Alentejo > vd. post de 14 de Maio de 2006 > Blogantologia(s) II - (26): Às vezes este país quase perfeito e sem mácula

Guiné 63/74 - P754: O Nosso livro de visitas: Joaquim Pinheiro (CCAÇ 3566, Empada/Catió, 1972/74) - Que maravilha de trabalho

Texto do Joaquim Pinheiro (CCAÇ 3566, Os Metralhas, (Empada/Catió, 1972/74) (1):

Olá, amigo Luís!

O Xico Allen já me havia falado do seu blogueforanada, mas como foi por telefone, penso que tenha deixado de anotar algo, pois não consegui acesso.

Ontem [7 de Maio de 2006], fazendo uma pesquisa sobre Empada [na região de Tombali, Catió], eis que me deparo com este seu maravilhoso trabalho! Me emocionei, pois logo á entrada reví a foto e a história da morte de um soldado na cagadeira que eu tão bem conheço (2)... e cuja história, logo que eu cheguei a Empada, uns amigos que arranjei da Companhia, Os Catedráticos, me contaram.

Juro que, como periquito, fiquei muito impressionado. Ao ponto de sempre me conscientizar que, em caso de ataque, jamais correria pra lá...

Bem.... o importante, é que agora eu conheço melhor (estou conhecendo) o seu trabalho. Muito obrigado. Pois coisas como estas, nos fazem retornar a tão longínquos tempos.... É como se, por magia, o tempo voltasse e a memória se rejuvenesce, fazendo-nos lembrar de tantos amigos, de tantos momentos (bons e ruins) e acima de tudo, fazer aflorar o sentimento que penso todos nós, independentemente da patente carregamos nos nossos corações...A SAUDADE!!!!

Vou tomar a liberdade de enviar algumas fotos que possuo, da malta da CCAÇ 3566, Os Metralhas (Empada/Catió, 1972/74).

Um abraço deste seu fã,
Joaquim Pinheiro da Silva (o brasileiro)

(Cidade de Itanhaém - S.Paulo/Brasil)
_____________

Notas de L.G.

(1) Sobre outros camaradas da CCAÇ 3566 - Os Metralhas, vd os posts de:

16 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXVI: O Xico de Empada, grande amigo dos guinéus (Albano Costa)

18 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCCX: O Cherno Rachid da Aldeia Formosa (Antero Santos, CCAÇ 3566 e CCAÇ 18)

(2) Vd. post de 11 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXXIV: Estórias do Zé Teixeira (2): o Conceição ou o morrer de morte macaca

(...) "O Conceição era uma camarada de Lisboa, que tanto quanto eu sabia, não tinha pais e vivia com a avó. Era um moço muito alegre e passava o dia a cantar.

Já perto do fim da comissão, em Empada (...), estava na retrete ... e a cantar. Não ouviu as saídas de morteiro que nos foram enviadas do cimo da pista e controladas via rádio por alguém lá dentro ou junto ao arame farpado. Uma das primeiras rebentou no telhado da retrete e projetou-o para trás, esmagando parte da nuca contra a parede.

"Eu, logo após o ataque, dei uma volta pelo quartel. Fiquei assustado, pois cairam várias lá dentro e gritava de contente. Não havia aparentemente feridos e muito menos mortos. Nesse momento, o Furriel Pedro (actualmente muito doente, com um derrame celebral) grita-me:
- Teixeira vem aqui ! - Fiquei horrorizado com o que vi. Mais uma vez chorei de raiva" (...).

Vd. também post de 2 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DC: Poema em memória do Conceição (Zé Teixeira)

Guiné 63/74 - P753: O Nosso Livro de Visitas: Torcato Mendonça, ex-Alf Mil da CART 2339 - O Malan Mané estava vivo em Novembro de 1969 e eu abracei-o

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Estrada Bambadinca-Mansambo > 1970 > Uma coluna auto da CCAÇ 12 a caminho de Mansambo.

Arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).

Foto: © Humberto Reis (2006)


Texto do Torcato Mendonça (ex-Alf Mil da CART 2339, Mansambo, 1968/69):


O [Carlos] Marques dos Santos deu-me a conhecer este blogue. Há muito que a guerra acabou para mim, só que quase diariamente ela aparece…! Não resisti, fui à Net e tenho navegado pelo blogue.

Fui alferes miliciano na CART 2339 [Fá Mandinga e Mansambo, 1968/69](1). Li certos eventos que os vivi: por exemplo, o Malan Mané (2) estava vivo em Novembro de 1969 e recebia tratamento no Hospital Militar de Bissau. Abracei-o, causando espanto ao fuzo que o guardava. Só que eu estive na mata com o Malan Mané, soube que foi ferido (... Eu usava como arma, quando se justificava, o dilagrama)...

Meu caro, há escritos que não tinha deles essa recordação. Vou ter que ir á História da Companhia. Agradeço-lhe este blogue, o fazer-me relembrar certas vivências e questionar-me sobre outras. A Mansambo da foto não era a do meu tempo. O Zacarias Saiegh [da 1ª Compnahia de Comandos Africanos] foi meu amigo. Era um homem extraordinário, ele e outros que foram meus camaradas e foram fuzilados. Nunca os esqueço e não sei perdoar.

Vou reler a história da CART 2339 e talvez um dia faça um escrito e lho envie. Em Madina Xaquili o meu Grupo de Combate fez escolta a uma CCAÇ… seria a 12? Estávamos no Cop 7, em Galomaro É a memória a abrir-se. Paro aqui.

Um abraço do
Torcato Mendonça
_____________

Notas de L.G.

(1) Há cerca de 4 dezenas de referências à CART 2339 no nosso blogue. Dica: pesquisar no blogue, inserindo o termo "CART 2339" através da janela ao canto superior esquerdo (clicar depoois em "search this blog").

(2) Guerrilheiro do PAIGC, feito prisioneiro pelas NT e ferido na Op Pato Rufia, na regiãodo Xime (7 de Setembro de 1969): Vd post de 9 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - CXLVII: Malan Mané, guerrilheiro, vinte anos, mandinga

Guiné 63/74 - P752: O abandono dos comandos africanos (Paulo Reis)

Texto do jornalista Paulo Reis:

Caro Professor Luís Graça:

Tenho 'passeado' longas horas, nas últimas semanas, pelo Blogue-fora-nada. Sou jornalista profissional (carteira nº 734) há 24 anos e trabalho em regime de freelancer, actualmente.

Tenho um contrato com uma editora para fazer um livro sobre o abandono dos comandos africanos da Guiné-Bissau. É uma história com que me cruzei, ainda estagiário, em 1982, quando encontrei o alferes Bailo Jau, já falecido e o soldado Demba Embaló com quem ainda mantenho contacto.

Estive na Guiné em 1998, por duas vezes, quando da guerra do Ansume Mané. Andei por Pirada, Bafatá, Bambadinca, Mansoa, Gabú, Bissau, etc, etc. Tendo, para além disso, nascido e vivido em Angola até 1976, calcula que sinto algo mais que mera curiosidade profissional, em relação a África.

Segui com atenção o programa da RTP1 ' Órfãos de Pátria', e acho que foi fraco - a montanha pariu um rato, como dizia um dos comentários que vi, no seu blogue. Houve, de facto um processo de decisão política, da parte portuguesa, que levou ao abandono desses homens. Mas houve também a aplicação, no terreno, dessa decisão - através, por exemplo, da passagem de licenças registadas a muitos deles, com ordens para se apresentarem no quartel no dia 1 de Janeiro de 1975, já a retirada portuguesa estaria concluída há muito.

Gostaria de poder trocar algumas impressões consigo e de saber se poderei contar com a sua ajuda, tanto em matéria de contactos como de informação e documentação de que disponha e que possa ser útil para clarificar esta página menos feliz da nossa História.

Com os meus melhores cumprimentos

Paulo Reis

Comentário de L.G.:

Meu caro Paulo: O que sabemos sobre a ascensão e queda dos comandos africanos tem sido divulgado através do nosso blogue. Estamos, eu e os restantes membros da tertúlia dos amigos e camaradas da Guiné, disponíveis para trocar impressões, informação e até documentação sobre este e outros tópicos.

De qualquer modo, bom sucesso (e boa sorte) para as suas pesquisas sobre este tema, que há muito caiu no esquecimento de portugueses e guineenses... Sem querer parecer cínico ou provocador, quem no continente africano (com tantos desastres humanitários, com tantas violações dos direitos humanos, com tantos genocídios nestes últimos cinquenta anos, que foram os anos das independências, como por exemplo a tragédia do Darfur ou a hecatombe da Sida) se vai interessar pela sorte de algumas centenas de homens que escolheram o cavalo errado, servindo a bandeira dos colonialistas, e foram tratados como mercenários e traidores pelos guerrilheiros do PAIGC que substituiram os tugas no poder, em Bissau ?

Infelizmente o que sabiam (de) mais já morreram ou foram mortos. Outros, os que podiam e deviam falar,vão provavelmente morrer na cama e até, alguns, ser tratados como heróis, com direito a lugar no panteão nacional da santa terrinha... Sempre foi assim ou tem sido: são os vencedores que escrevem a história. Nós, quando muito, podemos pôr um pauzinho na engrenagem, fazendo alguns perguntas incómodas, insalubres e perigosas... (LG)

domingo, 14 de maio de 2006

Guiné 63/74 - P751: Do Porto a Bissau (15): Diário de bordo e avisos à navegação (A. Marques Lopes)





Viagem Porto-Bissau > Abril de 2006 > Percalços no deserto. Créditos fotográficos:

© A. Marques Lopes (2006)


Texto do nosso amigo e veterano desta tertúlia, o A. Marques Lopes, coronel DFA, na reforma, ex-alferes miliciano na Guiné (1967/68) (CART 1690, Geba, 1967/68; e CCAÇ 3, Barro, 1968)...

Caros camaradas e amigos:

Já lá vão quinze dias após o regresso. Vários problemas que houve a resolver. Só agora deu para começar a falar.

Não vos vou fazer o relato pormenorizado desta nossa viagem por terra até à Guiné-Bissau (Rali Porto-Bissau...) (1). Vou, apenas, realçar alguns aspectos que, em minha opinião, podem ser úteis e alertas para futuros andantes nestas aventuras.

MARROCOS:

5 de Abril [de 2006]


Em Tânger, já de noite, o inspector da alfândega Abderalak El Moussadek, com os seus ares e ademanes esquisitos, reteve o jipe por causa do material médico que continha (cerca de 200 quilos de soro fisiológico e seringas), alegando falta de guia e incumprimento das normas nacionais marroquinas, e dizendo que, pelas mesmas razões, já tinha sido detida uma viatura portuguesa na véspera...

Grande chatice (no barco que faz a travessia de Tarifa para Tânger, o Allen já tinha sido obrigado por um polícia a apagar uma fotografia, pois é proibido tirar fotografias no barco...); mas deu para uma conversa amigável com o sargento dos guardas, Mohamed Farak, que tem duas mulheres e sete filhos, com 30 anos de serviço e prestes a reformar-se (a reforma é aos 50 anos) com dirhams equivalentes a 300 € e, por isso, muito interessado em saber as condições de reforma dos militares portugueses; dorminos no Hotel Ibis (El Jadida, Place Nour El Kamar, Route de Casablanca), que se recomenda, tem perto o Café Oasis, aberto toda a noite (mas, cerveja só no hotel...).

6 de Abril

Eu, o Allen e a Inês voltámos à alfândega logo de manhã para ver da situação. Ainda pensámos que o amigo sargento Farak tivesse feito alguma coisa a nosso favor. Mas não, o inspector, só visto ao longe, agora, tinha dado ordem para o material médico não sair sem guia. Os muitos cadernos e canetas, bem como as centenas de chupa-chupas e dezenas de camisas que tínhamos não interessaram... Palpitou-nos, a mim e ao Allen, que a razão era o receio de entregarmos o material médico à Frente Polisário. Pusemo-nos a andar e lá ficaram os 200 quilos de soro fisiológico e as seringas.

7 de Abril

Dormimos em El Quatia, praia perto de Tan-Tan, já pero do Sahra Ocidental, na Villa Ocean, uma pequena pousada de um casal francês, ele ex-militar. Também a recomendo. Depois do jantar, eu fui dar uma volta (meu hábito) e encontrei um marroquino que me perguntou se tínhamos vinho e se lhe dávamos um copo. Fui buscar um copo de vinho e dei-lhe (no dia seguinte trouxe-me o copo lavadinho).

A seguir entrei numa escola infantil, porque a vi aberta, com luzes e gente lá dentro. Espanto deles e o director dirigiu-se a mim e perguntou-me o que queria. Disse-lhe que só queria visitar. Depois de eu falar, diz-me ele:
- Você bebeu vinho!.

Perguntei-lhe como é que ele sabia. Disse-me que o cheiro conhecia (o bafo deu-lhe...). Não me digam que ele vai bufar a alguma autoridade religiosa... Lá lhe fui dizendo que as religiões na minha terra não proibiam as bebidas alcoólicas, cada um podia ter a religião que quizesse, que eu até nem tinha nenhuma, etc, etc... Mas, depois desta conversa, achei por bem desistir da visita à escola e fui-me embora.

SAHARA OCIDENTAL

8 de Abril


Saímos de El Quatia em direcção ao Sahara e, 20 km depois tivemos um controlo policial. Cinco minutos depois, fui eu controlado pessoalmente. É que o Allen tinha dado antes uma lista com os passageiros e respectivas profissões, tendo colocado que eu era militar. Que estivessem descansados, que estava reformado e não tinha já nada a ver com a actividade militar... Lá os consegui convencer e seguimos para Tarfaya.

No caminho para lá, o turbulento fotógrafo Hugo pediu ao Allen para sair do asfalto para colher uma imagem. Assim foi feito e... o jipe enterrou-se na areia, rodou, rodou, mas nada. Lá ficou. Valeu-nos a juda de uns marroquinos que passaram num camião. Com uma corda que tinham e força de braços lá conseguimos voltar ao asfalto.

Às 11h20 entrámos no Sahra Ocidental, por Tah. Às 12h10 tivémos um controlo policial. Cinco minutos depois, antes de entrarmos em Layoune, capital do Sahara, novamente controlados, desta vez com militares também. Há, aliás, um quartel à entrada desta cidade, que, verificámos depois, está altamente militarizada, com vários quartéis e muita tropa pelas ruas, embora não armada. Sinal da situação são também as dezenas de jipes junto à delegação da ONU. Depois de Layoune, há uma grande cimenteira, em El Marsa, com uma grande cintura de segurança à volta e várias guaritas de vigia.

Almoçámos conservas no meio do deserto, ao sol, e surgiu um jipe da polícia pelo que tivemos de beber o vinho à pressa e guardar as garrafas. Seguimos e, às 14h45 tivemos novo controlo da polícia, com um camião de soldados por perto. Às 15h15 novamente controlados.

Entrámos, de seguida, em Boujdour, que verificámos ser igualmente uma cidade muito militarizada, também com muitos soldados na rua. Boujdour tem uma extensa praia, o que leva a estranhar que seja aqui o cabo Bojador dos portugueses (o nome foi afrancesado), mas tem um grande farol. E há razão para isso, embora não haja penhasco algum, nem na praia nem no mar: os vários navios que se vêem encalhados testemunham as marés e correntes contrárias que se cruzam naquela zona, a dor que os marinheiros portugueses tinham de passar.

À saída de Boujdour há um grande quartel e fomos controlados por perto. Seguimos e fomos novamente controlados às 16h20, e mais outra vez às 16h30. Houve outro controlo policial às 17h30, e mais outro às 18h45.

Dormimos em Rokchip, no Hotel Oasis (fácil de encontrar, pois é uma localidade muito pequena), com chuveiros e casas de banho comuns, mas já vi pior. Travei aí conhecimento com três marroquinos imigrados em Itália e que vinham com duas brutas máquinas, um BMW e um Mercedes do último modelo. Falámos lindamente em italiano e...
- Temos de fazer pela vida!, disseram-me. Os carros eram roubados e eram para vender na Mauritânia. Pediram-me para os acordar às 7 da manhã (eu era, aliás, o despertador de todo o nosso grupo), pois tinham pressa para serem os primeiros na fronteira.

MAURITÂNIA

9 de Abril

Antes de pertirmos, um dos guias do deserto pediu-nos, a mim e ao Allen, para lhe arranjarmos uma garrafa de vinho e lha darmos, depois, na terra de ninguém, cerca de um quilómetro pedregoso e sem qualquer controlo entre a fronteira do Sahara e a fronteira da Mauritânia.

Às 08h48 chegámos a Gargarate, a fronteira do Sahara, mas já estava uma longa bicha de carros. Nos primeiros lugares da frente lá estavam os tais marroquinos italianos. Durante a espera vi muitos tuaregues, claramente aborrecidos, assentados no chão, à espera que os funcionários marroquinos os atendessem. Decidi fazer uma provocação a um deles. Perguntei-lhe se era marroquino. Olhou-me duramente e com ar ofendido:
- Marroquino no!! Esta es mi tierra!- respondeu-me em perfeito castelhano. E lá me explicou que a terra dele tinha sido uma colónia espanhola e que os marroquinos a tinham ocupado após os espanhóis saírem.

Esperámos algum tempo, mas, após várias conversas minhas e do Allen com os funcionários alfandegários, e após o Allen lhes ter dado várias camisas, canetas e chupa-chupas lá passámos à frente da bicha. Os italianos olharam para nós desconsolados. O tuaregue perguntou-me:
- Te marchas ya?- Disse-lhe que sim e ele pôs a cabeça de lado e abriu os braços como quem diz: - Blanco, claro.

Antes de sair a fronteira fomos controlados por militares. Depois da terra de ninguém , entrámos na Mauritânia, depois de três controlos, um na alfândega, um policial e um militar. Depois, fiquei a saber, junto de uns tratadores, que podia comprar um camelo por 2 €.

Até Nouakchott fomos controlados às 15h35 pelos militares mauritanos, às 16h20 pela guardas alfandegários e às 16h35 pela polícia. Chegámos a Nouakchott, capital da Mauritânia (e, se não única, quase única cidade deste país deserto). É uma cidade que se caracteriza pelos montes de lixo acumulado nas ruas e nos passeios, com um trânsito caótico, sem regras, com os ministérios, os organismos oficiais e a estação de rádio guardados por militares.

Falei com um mauritano (sei o nome dele mas não ponho aqui, por razões óbvias) sobre isto, sobre um país com uma cidade, com escassos centros populacionais, muito deserto, e um governo que parece não tratar de nada, não cuidar do bem da população:
- Oh, le gouvernement!... Il mange, il mange, seulement! (que é como quem diz: eles comem tudo e não deixam nada).
- E vocês não fazem nada?
- É que - disse-me ele - há poucos brancos, alguns árabes e a esmagadora maioria são pretos, como eu, mas o problema é que estão divididos em vários partidos políticos que não se entendem, é difícil.

Dormimos no Hotel El Amane (Av Gamal Abdel Nasser, 26), um sítio muito agradável, com uma recepcionista muito simpática, destoando de todo o ambiente degradante da cidade.

10 Abril

Metemos-nos ao caminho e tivemos às 09h00 o primeiro controlo policial do dia, seguido, às 09h15 de um controlo militar. Às 10h20 tivemos outro em Tiguent e, às 10h52 e 11h20, mais dois controlos policiais. Á entrada de Rosso dois controlos policiais imediatamente seguidos: um às 11h30 e outro às 11h35.

Metemo-nos, de seguida, por uma picada de 90 quilómetros até chegarmos à fronteira (lado da Mauritânia), onde chegámos às 14h00, demos 5€ ao guarda da alfândega, o Mohamud (disse que era solteiro e perguntou ao Allen quanto é que queria pela Inês...), mas só saímos de lá às 14h55.

Desde esta hora até às 16h10 estivemos empatados com os vários guardas da fronteira do Senegal, polícias, alfandegários, militares, e até nos obrigaram a fazer um seguro para o carro. Aqui, com os senegaleses, foi só largar dinheiro. No final, um major queria meter um polícia no jipe para ir connosco até à Guiné-Bissau. Chamei-o à parte, mostrei-lhe o meu cartão militar:
- Ouve lá, nós somos colegas! Não confias em mim? Pega lá 50 € e deixa-nos andar.

E lá andámos, sem polícia pendura. Fomos controlados pela polícia às 16h30 e chegámos a Saint Louis às 16h40. Dormimos no Hotel Cab St. Louis. Muito agradável, e pudémos aí comprar CFAs. Fica perto da margem direita do rio Senegal e está pegado, do outro lado, a uma praia oceânica.

SENEGAL

11 Abril

Partimos para Tambakounda e fomos controlados às 12h00 e 12h15 pela polícia. Chegámos a Tambakounda depois de almoço (de conservas, no caminho). Ficámos no Hotel Oasis. Houve quem fosse à piscina. Não é mau. A empregada do bar é solteira mas diz que não quer saber de homens.

12 Abril

Saímos às 07h10 a caminho da Guiné-Bissau. Às 10h15 passámos a fronteira do lado do Senegal sem qualquer problema. À entrada da Guiné já não estavam para chatear. Também há uma terra de ninguém. A entrada na Guiné foi uma festa.
- Até que enfim oiço falar português - disse-lhes eu.

E um guarda até era sportinguista!

Recomendações ou dicas para quem se aventurar por estes caminhos:

(i) Quem se aventurar nestes caminhos conte em levar bastante dinheiro para distribuir pelas várias fronteiras (nós gastámos cerca de 500€, pagos pelos patrocínios conseguidos); levem camisas, caramelos e canetas também para distribuir, em certas situações os guardas contentam-se com isso;

(ii) Quem se aventurar nestes caminhos tenha uma conversa prévia com o Francisco Allen, o globtrotter destas viagens, batido em todos os esquemas necessários para ultrapassar as chatices destes espíritos africanos.

_____

Nota de L.G.

(1) Vd post de 20 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLXIII: O Rali Porto-Bissau (1): Jantar em Moreira de Cónegos

Guiné 63/74 - P750: Capelão militar por quatro meses em Mansoa (Padre Mário da Lixa)

Guiné > Mansoa > BCAÇ 1912 (1967/68) > O capelão, Mário de Oliveira, alferes miliciano, entre soldados. Viria a receber ordem de expulsão da Guiné em 8 de Março de 1968.

Foto: © Padre Mário da Lixa (2003) (com a devida vénia...)

Já aqui falámos de vários capelães militares: por exemplo, do Padre Libório, que passou por Nova Lamego e Canjadude, no tempo do José Martins (1); do major capelão Nazário, que o A. Marques Lopes conheceu, em Lisboa e em Geba (2); do Padre Poím, que era amigo do David Guimarães (3)... Também já aqui evocámos a curta e dramática experiência de capelão militar do Padre Mário de Oliveira, mais conhecido por Padre Mário da Lixa (4). Este último foi, dos poucos (onde se inclui o açoriano Poím) que entrou em rota de colisão com a dupla hierarquia da Cruz e da Espada...
Da sua página pessoal retirámos alguns apontamentos autobiográficos que nos ajudam a entender melhor a o seu percurso como homem, cidadão e padre bem como a sua curta passagem pela Guiné. Espero que o Mário (que eu conhei, pela primeira vez, no dia do meu casamento civil, em Candoz, Paredes de Viadores, no dia 7 de Agosto de 1976) me perdoe este abuso e que venha a aceitar o meu convite para integrar esta tertúlia de amigos e camaradas da Guiné:

(i) Nascido em 1937, na freguesia de Lourosa, concelho de Santa Maria da Feira, numa família da classe trabalhadora, entrou no seminário em 1950;

(ii) Em 1962, foi ordenado padre, na Sé Catedral do Porto, pelo bispo D. Florentino de Andrade e Silva, Administrador Apostólico da Diocese, que subsitui o Bispo D. António Ferreira Gomes (1906-1989), exilado por ordem de Salazar em 1959...

(iii) A partir de 1963 foi professor de religião e moral em dois liceus do Porto;

(iv) Em Agosto de 1967 "foi abruptamente interrompido nesta sua missão pastoral pelo Administrador Apostólico da Diocese, por suspeita de estar a dar cobertura a actividades consideradas subversivas dos estudantes (concretamente, por favorecer o movimento associativo, coisa proibida pelo regime político de então)"... Nomeado capelão militar, "sem qualquer consulta prévia, pelo mesmo Administrador Apostólico", viu-se compelido a frequentar, durante cinco semanas seguidas, um curso intensivo de formação militar, na Academia Militar, em Lisboa;
(v) Em Novembro de 1967, desembarca na Guiné-Bissau, na qualidade de alferes capelão do Exército português, integrado no Batalhão 1912, com sede em Mansoa;

(vi) "Março 1968: foi expulso de capelão militar, por ter ousado pregar, nas Missas, o direito dos povos colonizados à autonomia e independência, e regressou à sua Diocese, rotulado pelo Bispo castrense de então, D. António dos Reis Rodrigues, como padre irrecuperável " (2).

(vii) Em Abril de 1968, foi nomeado pároco da freguesia de Paredes de Viadores (Marco de Canaveses);

(viii) Em Junho de 1969 é exonerado da paróquia de Paredes de Viadores pelo mesmo Administrador Apostólico da Diocese do Porto, que o havia nomeado;

(ix) Em Outubro de 1969 está a paroquiar a freguesia de Macieira da Lixa (Felgueiras), por nomeação do Bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, entretanto, regressado do exílio;

(x) Em Julho de 1970 é preso pela PIDE/DGS;

(xi) Em Março de 1971 sái da prisão política de Caxias, depois de ter sido julgado e absolvido pelo Tribunal Plenário do Porto;

(xxii) Volta a ser preso pela PIDE/DGS em Março 1973; quando sai em liberdade, em Fevereiro de 1974, é "informado, de viva voz, pelo Bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, que já não era mais o pároco de Macieira da Lixa";

(xxiii) Em 1975 torna-se jornalista porfissional ...

(xxiv) "Em Julho 1995, e a convite do jornal PÚBLICO, regressou à Guiné-Bissau, onde permaneceu durante uma semana, com o encargo de escrever uma crónica por dia sobre o passado e o presente daquela antiga colónia portuguesa, hoje, mais um país de língua oficial portuguesa, felizmente independente" (...) (5).

Guiné > Mansoa > 1995 > Mário de Oliveira com o padre missionário que foi encontrar em Mansoa.
Foto:© Padre Mário da Lixa (2003) (com a devida vénia...)

Sobre a sua experiência na Guiné entre finais de 1967 e princípios de 1968, disse o seguinte:
"Na guerra colonial, vivi integrado no Batalhão 1912, sedeado em Mansoa. Era o único padre capelão. Havia outro padre em Mansoa, mas na igreja da Missão, com quem sempre dialoguei, durante os quatro meses que lá vivi e actuei. Mas como capelão militar era o único padre no Batalhão.
"Enquanto não me expulsaram, pude privar de perto com as diversas chefias militares e com as centenas de soldados rasos que davam corpo ao Batalhão. Encontrei homens que estavam na guerra com convicção. A tese oficial do Regime sobre a guerra estava bem interiorizada neles. E eram generosos, à sua maneira, na entrega de si mesmos àquela causa, sem se aperceberem que era uma causa perdida. Mas havia também os que se aproveitavam da guerra, com sucessivas comissões, bem remuneradas, e quase sempre longe dos perigos das frentes de combate. Dizê-lo, não é novidade para ninguém. E havia os oficiais milicianos que, duma maneira geral, estavam na guerra contrariados e cuja preocupação maior era poderem regressar à sua família e à sua terra sãos e salvos" (...).
Fonte: Vd. post de 27 de Junho de 2005 > Guiné 60/71 - LXXXV: Antologia (5): Capelão Militar em Mansoa (Padre Mário da Lixa)
_________

Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 12 de maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXLVI: Procissão em Canjadude ou devoção mariana em tempo de guerra (José Martins)

(2) Vd post de 28 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LXXXVII: A caminho da Guiné, no "Ana Mafalda" (1967)

(..) "Mas deixem-me contar o que aconteceu antes do embarque. No dia 3 de Abril [de 1967] houve a cerimónia de despedida, assim lhe chamaram, no RAC (Regimento de Artilharia de Costa) de Oeiras, que era onde estávamos à espera de embarque. Houve missa na parada celebrada pelo padre Nazário, perdão, o senhor Major-Capelão Nazário, que, ainda por cima tinha sido meu superior quando eu fiz a instrução primária nas Oficinas de S. José, em Lisboa!

"Não fui à missa nem ouvi o sermão que ele fez, e que me disseram que foi uma bela dissertação sobre o amor à pátria e a defesa do património nacional. Mas tive que o gramar mais tarde, porque ele, um dia, apareceu em Geba para ver como estava a guerra.
- Nós por cá todos bem, é claro, disse-lhe eu" (...).

(3) Vd post de 27 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LXXXIV: A igrejinha de Geba

(...) "Em Bambadinca lembro-me do Padre Poím, capelão militar, de origem açoriana, pertecente ao BART 2917 (1970/72) (vd. respectiva foto com o furriel miliciano Guimarães da CART 2716, na nossa página dedicada ao Xitole).

"Devido às suas homilias, este capelão teve problemas com a PIDE/DGS, acabando por ser expulso do Exército, tal como o Padre Mário da Lixa. Não sei muito bem o resto da história, que me foi (re)contada pelo Guimarães. Confesso que nunca ouvi nenhuma das suas homilias, uma vez que não ía à missa. Mas conheci-o pessoalmente em Bambadinca e lembro-me do seu ar frágil e sofrido" (...).

(4) Esta experiência foi relatada no seu livro Como fui expulso de capelão militar (Edições Margem, 1995)
(5) Essaas crónicas forma publicadas em livro: "Mas à África, Senhores, Por Que Lhe Dais Tantas Dores...(Porto, Campo das Letras, 1997). Vd post de 17 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - CX: Bibliografia de uma guerra (4)