domingo, 7 de outubro de 2007

Guiné 63/74 - P2163: História de vida (7): Manuel Carneiro, 55 anos, director de rancho folclórico, ex-pára-quedista da CCP 121 / BCP 12 (Luís Graça)


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Rancho Folclórico da Associação Juvenil de Paredes de Viadores > Actuação na festa de São Romão > Adro da igreja de Paredes de Viadores > 2 de Setembro de 2007 > Danças tradicionais do Douro Litoral. Rancho fundado em 1997. Actual director: Manuel Carneiro, 55 anos, residente no Juncal, reformado da CP, ex-pára-quedista (Guiné, CCP 121 / BCP 12, 1972/74)

Vídeo: Alojado em You Tube > Nhabijoes. © Luís Graça (2007). Direitos reservados.



Marco de Canaveses > Paredes de Viadores > 2 de Setembro de 2007 > Romaria de São Romão > Procissão > A imagem de São Romão, orago da freguesia. Foi aqui que conheci o Mamuel Carneiro.

Foto:© Luís Graça (2007). Direitos reservados.


Manuel Carneiro, director do Rancho Folclóiuco da Associação Juvenil de Paredes de Viadores, ex-pára-quedista...

Foto:© Luís Graça (2007). Direitos reservados.


Costuma-se dizer que o mundo é pequeno quando encontramos alguém, em circunstâncias, inesperadas ou insólitas. Alguém que já não vemos há muito, alguém de quem ouvimos falar mas que não conhecemos, enfim, alguém que gostaríamos de (re)encontrar.

Foi o que aconteceu com o Manuel Carneiro, ex-pára-quedista da CCP 121, BCP 12, que esteve na Guiné entre 1972 e 1974. Quem, primeiro, me falou do Manuel Carneiro foi o Victor Tavares, à mesa do Restaurante Vidal, em Aguada de Cima, Águeda, em 2 de Março último, tendo a nosso lado o Paulo Santiago, que jogava em casa (1)…

Como emtão tive ocasião de escrever, o Victor é um digno representante dessa escola de virtudes humanas e militares que foram (e são) os pára-quedistas. Ele foi sobretudo um valoroso elemento da CCP 121 /BCP 12 que, na Guiné, entre 1972 e 1974, sofreu nove baixas mortais: seis na Operação Pato Azul (Gampará, Março de 1972) e três na valorosa 5ª coluna que, entre 23 e 29 de Maio de 1973, rompeu o cerco a Guidaje. Estes espisódios já aqui foram evocados pelo Victor, com dramatismo, autenticidade e rigor (2).

Foi nesssa ocasião, na véspera de ele partir para a Guiné-Bissau, em missão de reconhecimento das campas dos seus três camaradas pára-quedistas que morreram em Guidaje, em Maio de 1973, que eu conheci pessoalmente o Victor.

Ele acabava de aceitar o convite e o desafio feitos pelo jornalista Jorge Araújo que estava a fazer um trabalho de reportagem para a TVI. O Victor aceitou voltar a Guidaje, com sentido de missão, com humildade, com naturalidade (e sem se queixar do prejuízo que esses cinco dias iriam representar para a sua vida familiar e profissional, ele que é um honesto trabalhador independente, além de presidente da junta da sua freguesia)...

À mesa, na conversa que com ele tive, ao almoço, deu também para perceber que ele é também um grande homem, um grande português e um grande camarada, que foi um notável operacional mas que não se envaidecia pelo seu brilhante currículo como combatente e pelo facto de ainda hoje privar com os seus antigos oficiais, incluindo aquele que foi seu comandante e que atingiu o posto de major-general (se não erro, Bação da Costa Lemos, hoje na reforma), posto esse que é dificilmente alcançável entre as tropas pára-quedistas...

O Victor foi e continua a ser muito respeitado pela família pára-quedista, camaradas e superiores hierárquicos... A sua presença, na nossa Tabanca Grande, também nos honra, sobretudo pela sua grande experiência, camaragem e lealdade.

Foi também nessa ocasião que eu vim a saber que um grande camarada e amigo do Victor foi um tal Manuel Carneiro, conterrâneo da minha mulher, Maria Alice Ferreira Carneiro, natural de Paredes de Viadores, concelho do Marco de Canaveses… Não têm qualquer parentesco entre si, apesar do apelido Carneiro…

No dia 2 de Setembro de 2007, seis meses depois, acabo por conhecer o Manuel Carneiro. Estava eu a acabar as minhas férias de Verão, passando os útimos dias na pacadez e frescura de Candoz, com vista para a albufeira da barragem do Carrapatelo… No dia 2 era a festa do São Romão, orago da freguesia, Paredes de Viadores. Por volta das 16h, decidimos ir dar uma volta até ao sítio onde se realizava a festa do São Romão que não se compara, nem de longe nem de perto, com a grande festa anual da freguesia e do concelho, que é a Senhora do Socorro, na última semana do mês de Junho de cada ano…

São Romão resume-se, em boa verdade, a um pequena procissão e pouco mais. Mas nesse dia actuava o Rancho Folclórico da Associação Juvebil de Paredes de Viadoires…. Assiti a (e filmei) a segunda parte deste simpático e jovem rancho, fundado em 1997. No final, entendi dever dar uma palavrinha reconhecimento e de estímulo ao respectivo director, que eu não sabia quem era…

Levaram-me até ele e, qual não é a minha surpresa, quando lá chegado ele dispara, rápido, a seguinte exclamação:
- Mas é o Dr. Luís Graça!
- Já nos conhecemos de algum lado ?
- Do blogue, pois, claro! Do blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné! Sou camarada do Victor Tavares, pára-quedista da 121…
- Podes então dispensar o doutor… Dá-me cá um abraço, que os camaradas da Guiné tratam-se todos por tu!

Fiquei então a saber que o Manuel Carneiro, de 55 anos, pai de três filhas, era nosso vizinho, conhecia muito bem a família da minha mulher, os Carneiro de Candoz, que era refomado da CP, que residia no Juncal, mesmo junto à estação do Juncal (Linha do Douro, entre Marco de Canavese e Mosteiro) e que assumira há pouco tempo funções de director do Rancho Folclórico da Associação Juvenil de Paredes de Viadores…

A conversa inevitavelemte foi parar ao blogue, à Guiné e aos pára-quedistas. O Manuel Carneiro está amiúdas vezes com o Victor, nos convívios periódicos da Companhia (CCP 121) e do Batalhão (BCP 12). Prometi-lhe apadrinhar a sua entrada na nossa Tabanca Grande. Disse-me que ainda não tinha email mas que ía com frequência visitar o nosso blogue, a partir do computador da filha mais nova…

Prometi-lhe também divulgar o rancho por quem ele tem muito amor e a que dedica um boa parte do seu tempo, tanto no nosso blogue como no blogue da família, a Nossa Quinta de Candoz… Aqui fica, hoje, e com o atraso de mais de um mês, uma parte do prometido… A voz que se ouve no vídeo (no início deste post), é do Manuel Carneiro a quem eu saúdo, como novo membro da nossa tertúlia.

_____________

Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 8 de Março de 2007 >Guiné 63/74 - P1573: O Victor Tavares, da CCP 121, a caminho de Guidaje, com uma equipa da TVI (Luís Graça)

(2) Vd. posts de:

25 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1212: Guidaje, de má memória para os paraquedistas (Victor Tavares, CCP 121) (1): A morte do Lourenço, do Victoriano e do Peixoto

9 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1260: Guidaje, de má memória para os paraquedistas (Victor Tavares, CCP 121) (2): o dia mais triste da minha vida

21 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1540: Os paraquedistas também choram: Operação Pato Azul ou a tragédia de Gamparà (Victor Tavares, CCP 121)

Guiné 63/74 - P2162: O fatídico dia 12 de Outubro de 1970 - Emboscada no itinerário Braia/Infandre (Afonso M. F. Sousa)


Afonso M. F. Sousa, ex-Fur Mil Trms, CART 2412 (Bigene, Binta, Guidage e Barro) (1968/70)

Mais um dossiê organizado pelo nosso camarada Afonso Sousa (1), residente actualmente em Maceda, Ovar, a quem o nosso blogue agradece a persistência, o entusiasmo, a paixão do rigor, o amor da verdade, a discrição e a camaragem (Carlos Vinhal, co-editor)


O fatídico 12 de Outubro de 1970
Guiné - Região de
Mansoa

Dossiê organizado por Afonso M.F. Sousa

A sequência dos momentos que precederam a trágica emboscada (Uma descrição sumária onde se procura circunscrever os passos e os momentos que preencheram este trágico dia do Pel Caç Nat 58 e da CCAÇ 2589)


Brasão do Pel Caç Nat 58

O Pel Caç Nat 58, em Outubro de 1970, estava sediado em Infandre. Defendia, juntamente com a CCAÇ 2589, o itinerário Mansoa - Infandre – Namedão (segurança e picagem).

Um aspecto do aquartelamento de Infandre

Vista parcial do aquartelamento de Infandre

Vista parcial da Parada de Infandre

Militares de Infandre numa pausa do quotidiano de guerra


O 12 de Outubro de 1970

7 horas da manhã. Militares do Pel Caç Nat 58 e da CCAÇ 2589, acantonados em Infandre (cerca de 10 Km a NW de Mansoa), partem deste aquartelamento em direcção a Mansoa, em 2 viaturas Unimog, a fim de efectuarem mais um reabastecimento da Unidade.

Para a detecção de minas, um grupo de militares segue à frente das viaturas, fazendo a habitual picagem da estrada (de terra batida). Duas horas depois a coluna chega a Mansoa.

As viaturas são colocadas nas posições de reabastecimento. Alguns dos militares, como sempre o fazem (sempre que se deslocam à vila), procuram de imediato o único estabelecimento de comidas onde poderão refrear todo o seu justificado apetite pelo esforço destas 2 horas de marcha.

Encaminham-se, como sempre, para a Casa Simões, ali mesmo ao lado da Igreja de Mansoa. O Simões havia também cumprido o seu serviço militar na PM em Bissau e resolveu continuar na Guiné, abrindo em Mansoa um pequeno restaurante, sobretudo para apoio à comunidade militar desta zona. Por aqui, ele estava na boca de quase todos. Os que vinham da periferia não hesitavam em fazer uma visita ao restaurante. Assim aconteceu com estes militares do aquartelamento de Infandre. Era como que reviver, por instantes, sabores e momentos da saudosa Metrópole.

Mansoa > Igreja onde estiveram as urnas, para as devidas honras e formalidades

Mansoa > Na Esplanada da Casa Simões, almoçam os furriéis César Dias e Caetano

Mansoa > O Fur Mil César Dias (à direita) e o 1º Cabo Brogueira

Reconfortados, estes militares lá voltaram ao espaço do reabastecimento. A operação de carga conclui-se. Eram cerca de 11 e meia. Ia começar a viagem de regresso a Infandre. Alguns civis, como de costume, acomodam-se nas viaturas, com as suas compras. A velocidade rondam os 50 - 60 Km/h. Por volta das 11,45h a coluna está à vista do aquartelamento de Braia. Resolvem parar para um cumprimento rápido aos seus vizinhos e camaradas amigos e tomarem uma bebida. Deixam as viaturas sobre a direita da picada e vão até ao interior do fortim. A visita é rápida, não mais que 10 minutos.

Braia > Um aspecto do aquartelamento

Efectivos de Braia > Parte do 3.º Pelotão da CCAÇ 2589 (Os Peras) mais quatro elementos do PEL CAÇ NAT 58 (um deles é o Fur A. Silva Gomes). Os restantes elementos destes dois Pelotões, juntamente com um Grupo de Milícia, constituiam o efectivo de Infandre.

Braia > Interior do aquartelamento (Messe)

Braia > Em posição de continência, o Fur A. Silva Gomes do PEL CAÇ NAT 58

É agora quase meio-dia. Vão retomar o caminho rumo a Infandre. Faltam apenas pouco mais que 4 Km.

Decorrem cerca de 5 minutos, após a partida. Os militares de Braia ouvem um intenso tiroteio para o lado do caminho que a coluna de Infandre seguia. Pressentiram, de imediato, que estava a ser atacada. A sua reacção foi instantânea. As duas viaturas do fortim, puseram-se estrada fora, a toda a velocidade. A estrada descreve uma curva à direita. Há um fardo de palha (talvez colmo) na estrada. Contornam-no. Cerca de trezentos metros depois da curva avistam-se as duas viaturas do aquartelamento de Infandre. Estão paradas na estrada. Em cima delas, nativos de armas apontadas ripostam à progressão dos homens de Braia. Estes saltam das viaturas e começam a progressão de forma mais cautelosa, pelas bermas da picada, junto ao capim. O Furriel António Gomes refere que teve necessidade de reposicionar-se para não ser atingido. Alguém lhe estava a chamar a atenção para isso. A nossa reacção foi determinada e eficaz. Os elementos do PAIGC começam a evadir-se no mato. Os militares socorristas aproximam-se. Junto às duas viaturas o ambiente é desolador, dramático...

Militares mortos e feridos, no chão, em redor das duas viaturas. Os feridos em estado desesperado. Começam a ouvir-se o estrondo das granadas dos obuses de Mansoa que caíam para o lado da fuga do inimigo. Alguém já tinha dado o alerta. Procura-se o socorro possível aos feridos e estabelece-se a comunicação para as necessárias evacuações. O cenário é dantesco e de profunda emoção e tristeza. Um pelotão inteiro está ali, naquele pequeno espaço, completamente abatido. Os olhos humedecidos são de tristeza e de raiva. O inimigo tinha atingido os seus desígnios de forma cruel e bárbara. Diz o Furriel António Gomes: - Deparámos depois que a cerca de 50 metros, para o lado contrário da emboscada, junto a um baga-baga, aí se haviam escondido 5 dos nossos militares, sobreviventes sem ferimentos, que de forma instantânea e algo feliz conseguiram evadir-se através do alto capim, para o outro lado da picada.

Entretanto chegavam também, em socorro, militares de Infandre. Estes demoraram mais porque tiveram que fazer a deslocação a pé (as duas únicas viaturas existentes eram as que tinham sido emboscadas).

Introduzo aqui um parêntesis para referir que tive, entretanto, conhecimento que o 1.º cabo enfermeiro António Oliveira, do Hospital Militar 241 de Bissau, chegou, exactamente ao local da emboscada, por volta das 12,30h. Ele era um dos elementos que integrava a equipa do helicóptero que procedeu à evacuação dos feridos de maior gravidade.

Por ironia do destino, o Oliveira também é da Mealhada e morava a pouco mais de 2 Km do José da Cruz Mamede. Este tinha estado a gozar férias em Bissau onde, conforme combinação prévia, deveria ter visitado o António Oliveira, no Hospital Militar. Por qualquer circunstância o José não esteve com ele e voltou a Infandre uns dias antes da fatídica emboscada.

O António Oliveira reconheceu, no capim, o seu amigo. Estava do lado esquerdo (conforme a orientação das viaturas), a cerca de 10/15 metros da berma da estrada. Já estava sem vida. À minha observação para a distância a que se situava em relação ao local exacto da emboscada, disse-me que, provavelmente, ainda se terá arrastado naquele espaço, enquanto as forças lho permitiram.

Quanto ao Serifo Djaló, que morreu em Bissau, 5 dias depois e o Natcha que morreu em 20 de Novembro, confirma que se tratavam de elementos apanhados nesta emboscada e que haviam sido evacuados para Bissau.

Dada a quantidade de feridos, deram instruções imediatas para que de Bissau, partissem 2 ambulâncias, por estrada. Os 3 ou 4 feridos de maior gravidade, foram, de imediato, evacuados de helicóptero.
Refere que, antes de procederem à descida, no local, um T6 procedeu a bombardeamentos no enfiamento de Morés e Canquebo.

O António Oliveira não põe de lado a hipótese da coluna ter parado entre o fortim de Braia e a zona da emboscada, para dar boleia a alguém da população. Continua, por isso, a haver alguma dúvida se terão parado, para esse efeito (**). A paragem poderia ser tácita com os elementos do PAIGC. Por ora, é ainda uma questão difícil de investigar ou concluir. Sobre esta questão, o ex-Furriel António Silva Gomes (um dos socorristas de Braia) afirma de forma quase peremptória que não houve qualquer paragem, dado que entre a saída de Braia e o momento da emboscada, apenas decorreu um intervalo de cinco minutos.
Quem sabe se algum daqueles 5 militares que estavam ilesos, atrás de um baga-baga, poderiam ajudar a esclarecer o assunto.

O problema é que ainda não se descobriu os seus nomes. Supõe-se que um deles terá sido o 1.º Cabo Costa (Laureano Augusto Costa ?) que esteve emigrado em França e que acaba de regressar à sua terra, em Mirandela. O seu depoimento seria de grande interesse, mas não foi ainda possível contactá-lo.

Segundo o António Oliveira, quem esteve também no local, nesse momento ou no dia seguinte, foi o Marcelino da Mata. O seu testemunho também poderia ajudar na pormenorização de uma ou outra questão sobre as quais pareça subsistir ainda alguma dúvida ou menor clarificação, como, por exemplo, esta: o ex-Furriel César Dias diz que só no dia seguinte (13 de Outubro) foram evacuados, de Mansoa, 6 elementos do Pel Caç Nat 58. O Cabo Enf António Oliveira diz que, de imediato (12 de Outubro), foram chamadas ambulâncias, de Bissau, para procederem à evacuação de todos os feridos que o transporte de helicóptero não pôde contemplar.

Falta saber, quanto ao atado de palha, deixado na estrada (logo após a curva, pouco mais de 1 Km à frente de Braia), se foi ou não aí colocado pelo IN e, em caso afirmativo, se o terá feito antes ou depois da passagem da coluna emboscada.

Os taipais das viaturas encontravam-se muito esburacados por força das rajadas, feitas quase à queima-roupa, já que a emboscada foi executada por elementos do PAIGC, camuflados no alto capim (lado N), a escassos 2 metros da borda da picada. Os nossos militares estimaram que seriam cerca de 100 guerrilheiros, com um relevante potencial de armamento.

O Furriel Dinis César de Castro, foi capturado, tendo-lhe sido exigido que tirasse a farda. Recusou-se, com grande determinação e enorme sentido de patriotismo. Foi cruelmente rasgado, de lado a lado, com rajada de metralhadora. Este incomensurável gesto de patriotismo haveria de ser reconhecido pelo Estado português, quando, na cerimónia do 10 de Junho de 1971, Dinis César de Castro foi condecorado, a título póstumo, com a Cruz de Guerra.

Introduzo aqui um testemunho, recente, de alguém que, na altura, seguiu e viveu este acontecimento:

"12-10-1970 é uma data que recordo com tristeza. Como muitas outras, era mais uma coluna a passar naquele itinerário, (Braia-Infandre), mas daquela vez havia à volta duma centena de guerrilheiros emboscados com morteiros, lança-granadas-foguete e armas automáticas. Chegaram mesmo a lutar corpo a corpo. Sofremos 10 mortos (entre os quais, do Pel Caç Nat 58, o 1.º cabo José Mamede, o 1.º cabo Joaquim Baná e os soldados Cumba, Seidi, Mundi, e Baldée da CCAÇ 2589 o meu amigo Furriel Mil de Op Esp Dinis Castro, e os soldados Joaquim M Silva, Joaquim J Silva, Duarte Gualdino, a quem presto sentida homenagem), 9 feridos graves, 8 feridos ligeiros e um soldado capturado. Recorri aos documentos que guardo com muito carinho, e mais uma vez fiquei emocionado" (Furriel Mil César Dias – CCS BCAÇ 2885, Mansoa)

Em 20 de Novembro de 1970, o Furriel Carlos Fortunato, da CCAÇ 13, que se dirigia para Bissau para participar na Operação Mar Verde, passou no local da emboscada e viu, espetada num tronco, uma granada de RPG-7, que não tinha explodido. Estimava em cerca de 3 Km a distância até Braia. E, de facto, esse cálculo não estava muito longe da realidade.

Mais duas informações, entretanto recolhidas:

- Às 18,35h do próprio dia 12 de Outubro de 1970, o IN flagelou Mansoa, com canhão sem recuo, a partir de Cussanja (junto ao Rio Geba) - 4,4 Km a SE de Mansoa, no entroncamento da estrada Mansoa-Cussaná-Cussanja com a estrada de Jugudul-Porto Gole. Cussanja, pela sua situação, junto à margem do Rio Geba, o IN tinha-a como um ponto privilegiado para flagelações de Mansoa. Tudo indica que esta flagelação terá surgido como retaliação aos bombardeamentos aéreos feitos pelas nossas tropas, logo a seguir à emboscada e teriam como objectivo surpreender os efectivos de Mansoa que estavam preocupados com a recolha dos mortos e feridos e com todas as acções inerentes ao desfecho da emboscada. Cussanja ficava precisamente do lado oposto de Braia/Infandre, a NW de Mansoa.

- As pesquisas levam-nos, por vezes, a resultados surpreendentes, como é este caso que me acaba de ser relatado pelo 1.º Cabo Luís Camões, à altura, em Mansoa: - O condutor de uma das duas viaturas emboscadas, quase dado como desaparecido, surgiu, à noite, em Mansoa (com a sua G3), depois de ter percorrido, pela mata, cerca de 9 km, previsivelmente em puro sofrimento (*). Falta averiguar o seu nome e se ainda permanece entre nós para, neste caso, procurar obter o seu testemunho e o porquê deste seu arriscado procedimento.
(*) Pertencia à C. Caç. 2589 e estava adstrito ao PEL CAÇ NAT 58, em Infandre.

O trajecto

A zona da ocorrência e o percurso para Bissau

No trajecto da emboscada

…e os momentos

7 horas – Saída (Infandre)
9 horas – Chegada a Mansoa
9,30 às 10 h – Alguns dos elementos da coluna fazem a habitual visita à Casa Simões
10 às 11,30 h – Carregamento do reabastecimento
11,50 h - Chegada a Braia
11,45 ás 11,55 h – Paragem em Braia
12,00 h – Emboscada
12,04 h - Ajuda de Braia (chegada a 300m do local da emboscada)
12,10 h – Termo dos confrontos – evasão dos guerrilheiros do PAIGC

Distâncias:

Braia ao local da emboscada: 2,26 Km (0,8 Km na parte recta)
Braia a Infandre: 4,69 Km
Local da emboscada a Infandre: 2,43 Km
Infandre – Mansoa: 9,56 Km
Infandre – Namedão: 8 Km

Recta de 800 metros, entre a estrada da emboscada e a entrada do aquartelamento de Infandre

Local: a cerca de 500 metros do cruzamento para Infandre.
Deslocação de uma das viaturas de Infandre, para apanhar lenha precisamente junto à estrada, a cerca de 1500 metros, onde, mais tarde, havia de acontecer a emboscada


Algures, após o Fortim de Braia

A coluna da CCAÇ 13 acaba de atravessar a bolanha e o Rio Braia e aproxima-se do aquartelamento de Braia

Uma coluna da CCAÇ 13 após atravessar a bolanha, junto ao Rio Braia

Notas:

Justificação do espaço de 5 minutos entre a saída da coluna de Braia e o momento da emboscada:

Saída do fortim, chegada às viaturas e pô-las em movimento: 2 minutos.
Percurso de 2,26 Km (à velocidade provável de 50 Km/h): 2,71 minutos.
(total: +/- 5 minutos).

Tem este cálculo o objectivo de comprovar (e confirmar testemunhos) de que neste espaço de 2,26 Km a coluna não fez qualquer paragem e que o molho de palha encontrado na estrada, pelos militares de Braia, terá, eventual e estrategicamente, ali sido colocado por algum dos guerrilheiros do PAIGC, logo após a passagem da coluna, talvez com o objectivo de confundir ou surpreender os homens de Braia ou moderar a passagem das suas viaturas.

- José da Cruz Mamede (n.º 17762169), desembarcou em Bissau em 21/11/69. Veio, em rendição individual, para substituir o 1.º Cabo Joaquim da Silva Magalhães (n.º 01779368), falecido em combate (PEL CAÇ NAT 58) em 30/8/69.

- O Pel Caç Nat 58 chegou a Infandre a 16/11/69, para substituir o Pel Caç Nat 62, que foi extinto.

- Durante a permanência em Infandre, o Pel Caç Nat 58 sofreu 16 confrontos, entre flagelações e emboscadas.

- À data da emboscada, era esta a distribuição dos efectivos militares, nestes 2 destacamentos:


Infandre: 2 SEC do Pel Caç Nat 58 + 1 SEC de um 1 Gr Comb da CCAÇ 2589 + Grupo de Milícia
Braia: 2 SEC de um PEL da CCAÇ 2589 + 1 SEC do Pel Caç Nat 58

- Henrique Martins de Brito – Furriel – mais tarde (20/11/70), viria a ser evacuado para a Metrópole, não se sabe se em consequência de ferimentos, nesta emboscada.
- Era comandante do PEL CAÇ NAT 58 o Alferes Eduardo Ribeiro Manuel Cardoso Guerra que não esteve envolvido neste acontecimento, visto não ter feito parte da coluna de reabastecimento. Consta-se que, posteriormente, foi evacuado para a Metrópole, não se sabe se por doença ou por ferimentos em combate.

- Em Mansoa estava sediado o BCAÇ 2885 (RI 15 – Tomar – Maio de 1969 a Fevereiro de 1971).

- Manuel João Mimoso Belo – (Sacavém) – Foi posteriormente para Infandre, para substituir o José da Cruz Mamede.

- Rendição do BCAÇ 2885 pelo BCAÇ 3832 (RI 2 – Abrantes - Janeiro de 1971 a Janeiro de 1973.

José da Cruz Mamede > Um quadro de saudade

Os mortos e feridos

A trágica ocorrência redundou em 10 mortos, 9 feridos, 8 feridos ligeiros e um soldado capturado. (6 mortos e 6 feridos(*) eram do Pel Caç Nat 58 e os restantes da CCAÇ 2589 e população) .

(*) Dois, vieram depois a falecer em Bissau, o que elevou o número de mortos, do Pel Caç Nat 58, para oito.

Listagem de mortos do PEL CAÇ NAT 58 e da CCAÇ 2589

As listas dos combatentes falecidos no Ultramar, que podem ser consultas no site da APAV, ou da Liga dos Combatentes, nem sempre são rigorosas, neste caso omitiram o falecimento do (Sold) Joaquim Manuel da Silva da CCAÇ 2589 - (12/10/1970).

Lista dos mortos do Pel Caç Nat 58

Bomboro Joaquim - 21-08-1969
Joaquim da Silva Magalhães, 1.º Cabo - 30-08-1969
José da Cruz Mamede, 1.º Cabo - 12-10-1970
Joaquim Banam, 1.º Cabo - 12-10-1970
Idrissa Seidi, Sold - 12-10-1970
Tangina Mute, Sold - 12-10-1970
Betaquete Cumbá, Sold - 12-10-1970
Gilberto Mamadú Baldé, Sold - 12-10-1970
Serifo Djaló, Sold - 17-10-1970
Natcha Quefique, Sold - 20-11-1970

Lista dos mortos da CCAÇ 2589/BCAÇ 2885

José Luciano Veríssimo Franco - 29-05-1969
António José Penhasco da Costa - 09-11-1969
Joaquim Moreira Marques - 09-11-1969
Dinis César de Castro, Fur Mil - 12-10-1970
Duarte Ribeiro Gualdino, Sold - 12-10-1970
Joaquim João da Silva, Sold - 12-10-1970

- Em 20-11-1970, o Fur Mil Henrique Martins de Brito, do Pel Caç Nat 58, foi evacuado para a Metrópole.

Feridos do Pel Caç Nat 58 evacuados de Mansoa, para o HM241 de Bissau, no dia seguinte ao da emboscada:

- Augusto Ali Jaló – 2.º Sarg Mil
- Jamba Seidi – 1.º Cabo
- Malam Dabó – Sold
- Serifo Djaló – Sold – (Viria a falecer 4 dias depois – 17-10-1970)
- Jorge Cantibar – Sold
- Samba Canté – Sold

Agradecimentos

A todos os que, de alguma forma, contribuíram com as suas informações ou testemunhos, para que se pudesse encontrar a clarificação possível sobre esta trágica ocorrência.

Entre esses, permito-me destacar:

- César Dias (1)
- António Silva Gomes (2)
- “Kimbas do Olossato” (3)
- Benjamim Durães (4)
- Manuel João Mimoso Belo (5)
- Dinis Pinto Silva (6)
- Manuel Simões (7)
- Carlos Fortunato (8)
- “Os Leões Negros” (9)
- Luís Graça (10)
- Paulo Raposo (11)
- Joaquim Mexia Alves (12)
- Jorge Cabral
- Augusto Ali Jaló
- Eduardo Ribeiro (13)
- Artur Conceição
- Paulo Reis (Inglaterra) (14)
- Aniceto Henrique Afonso (15)
- António Oliveira (16)
- Lucília da Cruz Mamede (17)

Nenhuma pesquisa deste género poderá dar-se por finalizada enquanto subsistirem dúvidas, omissões, imprecisões ou desencontro de informações.

Pese embora toda a boa vontade, interesse e persuasão, como esforço investigativo, a exactidão, pela exaustão e cruzamento dos relatos, o fundamento dos conceitos ou a isenção, são factores determinantes que conduzem à autêntica realidade. Enquanto não se atingir esse patamar, teremos sempre e apenas relatos próximos ou tendentes a essa certeza, por onde, eventualmente, perpassam ainda algumas interrogações.

Vem a propósito referir que o Carlos Fortunato conta voltar a Infandre (provavelmente ainda este ano de 2007) e propõe-se encontrar alguém que tenha estado envolvido nesta sinistra emboscada, que vitimou, praticamente, um pelotão. Será agora um repórter, quase quarenta anos depois de haver calcado aquelas paragens, envergando a farda do exército português. Ele irá à procura de outros eventuais pormenores, testemunhos e justificações e trará mais algumas imagens da realidade presente destas terras de Mansoa.

(**) Testemunho que acabo de obter de um dos feridos na emboscada :

-"Augusto Ali Jaló, então 2.º Sargento, era o Comandante desta coluna de reabastecimento. Acabo de localizá-lo na zona de Lisboa. Tive com ele uma agradável conversação, no sentido de tentar obter a clarificação de algumas destas questões. Nesta coluna, o Augusto seguia na viatura da frente, a mesma onde também seguia o José Mamede. Ao eclodir da emboscada, saltou da viatura. Não foi atingido mas sofreu um severo trautamatismo craneano e uma grave contusão no joelho esquerdo. O helicóptero que se apresentou no local, 20 minutos depois da emboscada, levou o Jaló para Bissau, juntamente com outros 3 dos feridos mais graves. Esteve 3 meses, com gesso, no Hospital de Bissau.

Quanto à sua condecoração, confirma-se. Na cerimónia do 10 de Junho de 1970, em Bissau, foi condecorado com a medalha de cobre de Serviços Distintos com Palma. Em Agosto, seguinte, foi promovido a 2.º Sargento.

Outras clarificações:

- O Furriel Henrique Martins de Brito, evacuado para a Metrópole 8 dias depois da emboscada, não participou nesta coluna de reabastecimento. A sua evacuação terá derivado de doença.
- O molho de palha (molho de "fundo", segundo o Jaló) que estava na estrada, após a curva, foi deixado por algum elemento da população, logo após ouvir a 1.ª detonação da emboscada. Não se tratou, por isso, de qualquer estratagema do PAIGC. Quando a coluna passou não estava lá.

- Confirma o Augusto Jaló que não pararam para dar qualquer boleia o que, de todo, dissipa algumas dúvidas que ainda existiam sobre esta questão.

E revela ainda: na zona da emboscada, os guerrilheiros haviam colocado uma mina anti-carro mas, à vista da coluna e à sua aproximação ao sítio da mina, os guerrilheiros anteciparam-se com uma roquetada. O condutor da 1.ª viatura (onde ia o Jaló), desviou-se ligeiramente para a direita e, por felicidade, contornou a mina, não a accionando. De contrário a tragédia teria sido ainda maior. O José Mamede ia do lado direito dessa 1.ª viatura (lado da emboscada e lado do Morés). Foi atingido e ainda encetou um movimento de refúgio para o lado esquerdo. Morreu a cerca de 15 metros da estrada. Foi aí que o seu conterrâneo e amigo António Oliveira (1.º Cabo Enf do HM241 de Bissau) o encontrou, após a descida do helicóptero que veio proceder à evacuação dos feridos de maior gravidade, entre eles o Jaló.

- Confirma também o Augusto que uma secção do PEL CAÇ NAT 58 fez a picagem entre Infandre e Mansoa e que alguns dos elementos da coluna estiveram a comer na Casa do Simões (a) e na Tasca da Emília de Sá.
O Jaló, como responsável da coluna, não pôde deslocar-se a estes estabelecimentos, de visita costumada, por estar envolvido na orientação do reabastecimento.
(a) hoje, gerente e proprietário de “O Painel – Restaurante Simões, Lda”, próximo da Curia.
- Sobre os 5 militares que se protegeram atrás de um baga-baga, não sabe dizer quem eram, dado que estava muito ferido e foi, de seguida, evacuado para Bissau. O mesmo e pelas mesmas circunstâncias, quanto ao condutor que, à noite, apareceu em Mansoa, apenas acompanhado da sua G3.
- Os militares mortos foram levados para Mansoa, onde estiveram na igreja local, para as habituais formalidades.

Outros testemunhos poderão, ainda, vir a ser obtidos, no sentido de chegar a um registo factual, tão exaustivo quanto possível, sobre este trágico acontecimento.

Fotos cedidas por gentileza de:

António Silva Gomes (Lisboa – ex-Fur Mil Pel Caç Nat 58
Joaquim Carlos Fortunato (Lisboa) - ex-F Mil CCAÇ 13
César V. Dias (Santiago do Cacém) - ex-Fur Mil - BCAÇ 2885 (Mansoa)
Lucília Cruz Mamede – (Casal Comba – Mealhada)- Irmã do falecido José da Cruz Mamede
Com o meu especial agradecimento.


Fotos:© António S.Gomes, J.Carlos Fortunato, César Dias e Lucília Cruz Mamede (2007). Direitos reservados.

“Recordar é manter a memória colectiva ao transmitir os factos do passado às novas gerações”.
Afonso M. Ferreira Sousa

(1) – Fur Mil – CCS BCAÇ 2885 (Mansoa) – Procedeu a um armadilhamento na zona Braia-Infandre (por estas alturas).
(2) – Fur Mil – Pel Caç Nat 58 – Braia
(3) – Onde coloquei esta 1.ª mensagem, em Setembro de 2005, questionando se alguém poderia informar onde estaria sediado o Pel Caç Nat 58, em Outubro de 1970.
(4) – Fur Mil - CCS/BART 2917 - Foi crucial para o seguimento da pesquisa. Foi ele que, após ter visto a minha mensagem (de 2005) no sítio Kimbas do Olossato, se me dirigiu, em 18/3/2007, para me fornecer o guião do Pel Caç Nat 58.
(5) – 1.º Cabo – Pel Caç Nat 58 - Infandre
(6) – 1.º Cabo – Pel Caç Nat 58 – Infandre (depois da comissão: professor em Infandre).
(7) – Restaurante Simões dos Leitões – Tamengos (junto à Curia, Anadia) - telefone 231202031
(8 ) - Fur Mil – CCAÇ 13 - jcfortunato@yahoo.com
(9) - Site da CCAÇ 13 (http://leoesnegros.com.sapo.pt/)
Na página da CCAÇ 13 existe uma sub-página dedicada a este tema, com o título Pel Caç Nat 58.
(10) – Editor do maior Blog sobre a Guerra na Guiné: Luís Graça & Camaradas da Guiné
(11) – Alf Mil - CCAÇ 2405/BCAÇ 2852)
(12) - Alf Mil - CART 3492 – Pel Caç Nat 52 – CCAÇ 15
(13) - CCS/BCAÇ 4612 (mais conhecido por Pira de Mansoa)
(14) - pcv_reis@yahoo.co.uk – jornalista em missão de pesquisa nos arquivos do CTIG.
(15) - Ten Cor – Director do Arquivo Histórico Militar (Exército) – ahm@exercito.pt
(16) - 1.º Cabo Enfermeiro do HM241 de Bissau – Fez parte da equipa heli-transportada que procedeu à evacuação de alguns dos feridos, a partir do local da emboscada.
(17) –Irmã do falecido José da Cruz Mamede.
__________________

Nota de CV:

(1) Vd. posts sobre a emboscada do Infandre de 3 de Abril de 2007:

Guiné 63/74 - P1641: A morte do 1º Cabo José da Cruz Mamede, do Pel Caç Nat 58 (1): Onde e em que circunstâncias ? (Afonso M. F. Sousa)

Guiné 63/74 - P1642: A morte do 1º Cabo José da Cruz Mamede, Pel Caç Nat 58 (2) : Em Infandre, a 13 km de Mansoa (Afonso M. F. Sousa)

Guiné 63/74 - P1643: A morte do 1º cabo José da Cruz Mamede, do Pel Cacç Nat 58 (3): 10 mortos em emboscada com luta corpo a corpo (César Dias)

sábado, 6 de outubro de 2007

Guiné 63/74 - P2161: Pensamento do dia (12): Camarada, uma palavra que só quem esteve na guerra entende por inteiro (António Lobo Antunes)

António Lobo Antunes (n. 1942) foi alferes miliciano médico, no Leste de Angola, entre Janeiro de 1971 e Março de 1973. Pertenceu ao BCAÇ 3835. Tinha acabado de se casar e a mulher, Maria José, estava grávida. Os aerogramas que escreveu a sua mulher, foram publicadas posteriormente à sua morte (ainda recente, por cancro), por inciativa das duas filhas do casal. Título: D'este viver aqui neste papel descripto - Cartas da guerra (Lisboa: Publicações D. Quixote. 2005).


A experiência da guerra colonial marcou muito o início da sua escrita e a feitura dos primeiros livros: Memória de Elefante (1979), Cu de Judas (1981), Conhecimento do Inferno (1981)... A publicação das cartas de guerra (por iniciativa das suas filhas, não sua) reaproximou-o desta temática e dos seus camaradas, muitos dos quais estiveram, 34 anos depois, no cais de Alcântara no lançamento do livro...

Talvez depois disso, o escritor retomou o gosto e o sentido da palavra camarada. Dos tempos do Leste de Angola, ficara entretanto uma grande amizade, com o então Capitão Ernesto Melo Antunes (1933-1999).

Entretanto, Lobo Antunes conheceu, no Hospital de Santa Maria, aos 65 anos, a terrível e frágil condição do doente oncológico... Em Março de 2007 deixou-se operar por um amigo de longa data. Ele próprio revelou, em crónica publicada na Visão (12 de Abril de 2007) e ainda escrita no hospital, que estava a lutar (mal) com um cancro...

Na crónica da última semana, publicada na Visão (4 de Outubro de 2007), evoca com grande ternura e com o seu talento de escritor genial o seu camarada Zé, que terá falecido recentemene em brutal acidente de viação na auto-estrada de Cascais. Dele diz: "África ficou para sempre dentro de ti, a roer-te, e deu cabo da tua vida"...

A crónica começa assim, dando a melhor definição que eu alguma vez li sobre o que ser um camarada. Só o Lobo Antunes poderia escrever isto:

"Não morreste na cama mas morreste entre lençóis de metal horrivelmente amachucados na auto-estrada de Cascais para Lisboa e a gente ali, diante do teu caixão, tão tristes. Eras meu camarada, que é uma palavra da qual só quem esteve na guerra compreende inteiramente o sentido: não é bem irmão, não é bem amigo, não é bem companheiro, não é bem cúmplice, é uma mistura disto tudo com raiva e esperança e desespero e medo e alegria e revolta e coragem e indignação e espanto, é uma mistura disto tudo com lágrimas escondidas" (...).

Vou pôr esta definição de camarada na primeira página do nosso blogue (citando o ilustre autor, com a devida vénia...).

Guiné 63/74 - P2160: Militares mortos em campanha, no sul, entre Fevereiro de 1968 e Janeiro de 1969 (J. C. Abreu dos Santos)

1. Mensagem enviada ao Idálio Reis e ao editor do blogue, Luís Graça, em 24 de Setembro pelo J. C. Abreu dos Santos, e que se torna pública por se julgar ser do interesse de todos nós. Agradeço ao Abreu dos Santos a atenção com que tem acompanhado os depoimentos dos amigos e camaradas que fazem parte desta tertúlia, vasta e plural.

Assunto: Resumo de baixas mortais ocorridas em 24 Fev 68-27 Jan 69 no sul da Guiné (Mampatá, Mejo, Quebo, Guileje, Gandembel, Ponte Balana)

Idálio Reis e Luís Graça,

Em complemento do m/anterior e-mail [24 Set 07] (1), anexo ao presente uma listagem dos militares

Cordiais cumprimentos,
Abreu dos Santos

Resumo de baixas mortais ocorridas em 24Fev68-27Jan69 no sul da Guiné (Mampatá, Mejo, Quebo, Guileje, Gandembel, Ponte Balana)

– sábado 24Fev68
† MANUEL DE JESUS RODRIGUES SOBREIRO
nascido em 1942, na freguesia de Souto da Carpalhosa, concelho de Leiria
Alf ´Mil Art M/A, 2.º Cmdt da CART 1612/BART 1896-RAP2 (a 6 meses do final da comissão); morre em «acidente» com deflagração de granada defensiva, na região de Mampatá.

– 3.ª feira 26Mar68
† MANUEL FERREIRA DA SILVA
nat. Regadas, freg. Cabreira, conc. Barcelos
Sold Art da CART 1659-RAC (a 7 meses do final da comissão); morre em combate (durante a Op.Revistar?) na região de Gadamael.

– 5.ª feira 28Mar68
† DOMINGOS FERREIRA DA COSTA
nat. Seixo Alvo, freg. Olival, conc. Vila Nova de Gaia
Sold Inf Mun MG42 da CCAÇ 2317/BCAÇ 2835-RI15 (a 2 meses da chegada e há 8 dias no local)
e
† MANUEL JOAQUIM MEIRELES FERREIRA
nat. Vale de Cunho, freg. Pópulo, conc. Alijó
Sold Inf Mun LGF 8.9 da CCAÇ 2317/BCAÇ 2835-RI15 (a 2 meses de início c/8 dias no local)
´
morrem ao início da tarde durante contra-emboscada no entroncamento Guileje> Ganturé> Gadamael.

– 4.ª feira 10Abr68
† MANUEL ANTÓNIO DOS SANTOS VIEIRA
nat. Portimão
Sold Cav do Pel Fox 1165 -RC8 (a 7 meses do final da comissão)
e
† SAMBA TALA QUETÁ
nat. Guiné
Sold Inf do Pel Caç Nat 51-CTIG (desde Set66 instalado na tabanca do Guileje)

morrem durante emboscada IN c/mina a/c contra 1ª Coluna Logística no itinerário Guileje> Gandembel.

– 5.ª feira 11Abr68
† SEBASTIÃO DA COSTA DIONÍSIO
nat. São Vicente, freg. Penso, conc. Braga
Fur Mil Inf do Pel Caç Nat 51 (mobilização individual pelo RI8)
morre ao alvorecer durante emboscada IN c/minas no itinerário Gandembel> Guileje.

– 4.ª feira 24Abr68
† JOSÉ AUGUSTO DA SILVA LEAL
nat. Reiros, freg. Vandoma, conc. Paredes
1º Cabo Art da CART 1613/BART 1896-RAP2 (a 4 meses do final da comissão)
e
† MANUEL DE OLIVEIRA MOREIRA
nat freg.Burgães, conc. Santo Tirso
Sold Inf da CCAÇ 2316/BCAÇ 2835-RI15 (a 3 meses de início c/1 mês no local)
morrem durante emboscada IN c/fornilhos comandados à distância, contra 3ª Col Reab no itinerário Guileje > Aldeia do Mejo.

– domingo 12Mai68
† ANTÓNIO PEREIRA NUNES
nat freg. Pinheiro de Coja, conc. Tábua
1º Cabo Art da CART 1612/BART 1896-RAP2 (a 3 meses do final da comissão)
morre em combate na região do Quebo (Aldeia Formosa)

– 4.ª feira 15Mai68
† EDUARDO GUILHERME TEIXEIRA MONTEIRO
nat. Longonjo, conc.Caála (distrito do Huambo, Angola)
Alf Mil Inf da CART 1612/BART 1896-RAP2 (a 3 meses do final da comissão)
† IAIA BALDÉ
nat. Guiné
Sld Inf do Pel Caç Nat 68-CTIG (recém-instalado na Aldeia do Mejo)
† RACHID BALDÉ
nat. Guiné
Sold Inf do Pel Caç Nat 68-CTIG (recém-instalado na Aldeia do Mejo)
† USSEMANE SEIDI
nat. Guiné
Sold Inf do Pel Caç Nat 68-CTIG (recém-instalado na Aldeia do Mejo)
morrem durante emboscada IN c/fornilhos comandados à distância, contra 3ª Col Reab no itinerário Aldeia Formosa >Ponte Balana.

– 2.ª feira 20Mai68 (manhã)
† APARÍCIO DE SOUSA MIRANDA
nat. Monte Penas, freg. Maximinos, conc.Braga
† JOÃO ANTÓNIO MACEDO DA ROCHA
nat. Flores, freg. São Pedro, conc. Vila Real
† MÁRIO GONÇALVES MACHADO
nat. Macieira, freg. Limões, conc. Ribeira de Pena
todos Sold Art da CART 1612/BART 1896-RAP2 (a 3 meses do final da comissão)

morrem durante emboscada IN c/mina A/C, contra 1 secção da CART 1612 a cerca de 4 km norte da Ponte Balana, durante a Op. Pôr Termo no itinerário Mampatá>Uane.

– 2.ª feira 20Mai68 (noite)
† UMARU JULDÉ DJALÓ *
nat. Bedanda, circunscrição de Catió
Sold Art da CART 1612/BART 1896-RAP2
morre durante emboscada nocturna IN c/granada LGF no itinerário Inhala > Aldeia Formosa; *(corpo carbonizado, não recuperado).

– 6.ª feira 24Mai68
† DOMINGOS C. DA SILVA MAGALHÃES
nat freg. Cavês, conc. Cabeceiras de Basto
Sold Cmd da 5ª CCmds-RAL1 (a 5 meses do final da comissão)
morre em combate durante a Op. Pôr Termo na região da Aldeia Formosa

– 4.ª feira 05Jun68
† ÁLVARO FERREIRA DO VALE LEITÃO
nat freg. Ribeira de Frades, conc. Coimbra
Alf Mil Inf da CCAÇ 2317/BCAÇ 2835-RI15 (a 5 meses do início)
† ADELINO DAS DORES RODRIGUES PEREIRA
nat freg. Campia, conc. Vouzela
Sold Inf da CCAÇ 2316/BCAÇ 2835-RI15 (a 5 meses do início)
morrem durante emboscada IN c/fornilhos comandados à distância, contra Col Reab no itinerário Guileje > Gandembel.

– 5.ª feira 20Jun68
† FERNANDO BOTELHO
nat Anquião, freg. Gestaçô, conc. Baião
Sold Art da CART 1613/BART 1896-RAP2 (a 2 meses do final da comissão)
morre em acidente no itinerário Guileje > Buba

– 6.ª feira 05Jul68
† FERNANDO FRANCO
nat freg. Reguendo do Fetal, conc. Batalha
Sold Cav do Pel Rec 2022-RC8 (a 6 meses do início)
† AMADU BALDÉ
nat. Guiné
Sold Inf do Pel Caç Nat 68/COP1-CTIG
morrem em combate na região da Aldeia Formosa

– domingo 14Jul68
† CARLOS ALBERTO DE SAMPAIO E MELO DA VEIGA VALENTE
nat freg. Izeda, conc. Bragança
Fur Mil Inf da CCAÇ 1792/BCAÇ 1933-RI15 (a 9 meses do início)
morre em combate na região da Aldeia Formosa

– 2.ª feira 15Jul68
† JOSÉ JUVENAL ÁVILA FIGUEIRA ARAÚJO
nat freg. Monte, conc. Funchal
Alf Mil Inf cmdt do Pel Çaç Nat 69 -CTIG (mobilização individual pela BAC2 e há 12 dias no local) morre durante flagelação IN 02:00-02:30 ao aqtl de Gandembel (8km NE de Guileje).

– 4.ª feira 17Jul68
† ALBERTO MILHEIRO MOURA
nat freg. São Miguel de Acha, conc. Idanha-a-Nova
1º Cabo Cmd da 5ª CCmds-RAL1 (a 3 meses do final da comissão)
morre em acidente na região da Aldeia Formosa.

– 3.ª feira 23Jul68
† MANUEL JOSÉ MACHADO DA SILVA
nat freg. Parada de Monteiros, conc. Vila Pouca de Aguiar
Sold Art da CART 1612/BART 1896-RAP2 (últimos dias de comissão)
morre por doença no aqtl de Aldeia Formosa.

– 4.ª feira 24Jul68
† JOAQUIM BARREIRA
nat freg. Socorro (hosp S.José), conc. Lisboa
Sld Cav do Pel Rec 2022-RC8 (a 6 meses do início)
morre em combate na região da Aldeia Formosa

– domingo 04Ago68
† ABEL GOMES SIMÕES *
nat freg. Carapetos, conc. Montemor-o-Velho
Fur Mil Inf da CCAÇ 2317/BCAÇ 2835-RI15
† ANTÓNIO BARBOSA MOREIRA
nat São Domingos, freg. Seroa, conc. Paços de Ferreira
Sold Inf da CCAÇ 2317/BCAÇ 2835-RI15
† EDUARDO DA COSTA PACHECO *
nat freg. Frazão, conc. Paços de Ferreira
Sold Inf da CCAÇ 2317/BCAÇ 2835-RI15
† MANUEL ROXO CORREIA
nat freg. Lousa, conc. Castelo Branco
morrem durante emboscada IN c/minas e fornilhos comandados à distância, junto ao riacho Changue-Iaia no itinerário Gandembel >Quebo; *(corpo não recuperado).

– sábado 17Ago68
† JOÃO ISIDRO COELHO BRAGA
nat freg. São Sebastião da Pedreira (matern. Alfredo da Costa), conc. Lisboa
Sold Inf da CCAÇ 1622-RI2 (final da comissão)
morre em acidente na área da Aldeia do Mejo

– 4.ª feira 28Ago68
† ANTÓNIO AUGUSTO DOS SANTOS SIMÃO
nat. Évora
† LUÍS GALVÃO DOS SANTOS
nat. (???)
ambos Sold PQ do BCP 12-RCP (2 Gr Comb desde há 8 dias no local)
morrem na retirada de golpe-de-mão s/bigrupo IN junto à fronteira a sul de Gandembel, durante nomadização no âmbito da Op.Júpiter.

– 6.ª feira 15Nov68
† ACÁCIO CORREIA PEREIRA
nat freg. Ferreirim, conc. Lamego
Sold Inf da CCAÇ 2316/BCAÇ 2835-RI15 (com 10 meses de comissão)
morre em acidente na área da Aldeia do Mejo.

– 4.ª feira 22Jan69
† JOSÉ PEREIRA DA COSTA
nat São Romão, freg. Neiva, conc. Viana do Castelo
† MANUEL DA SILVA CARROLA
nat freg. Cortes do Meio, conc. Covilhã
ambos Sold Inf da CCAÇ 1792/BCAÇ 1933-RI15 (a 7 meses do final da comissão),
morrem em acidente na área da Aldeia Formosa.

– 2.ª feira 27Jan69
† ANTÓNIO PEREIRA MOREIRA
nat Formiga, freg. São Pedro de Escudeiros, conc. Braga
Sold Inf da CCAÇ 2317/BCAÇ 2835-RI15 (em véspera de mudança da aquartelamento)
morre em acidente c/deflagração de granada ofensiva no aqtl de Gandembel.
___________

Nota do editor

(1) Vd. post 30 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2145: António Pereira Moreira, última baixa mortal da CCAÇ 2317 (J. C. Abreu dos Santos / Idálio Reis)

Guiné 63/74 - P2159: PAIGC - Quem foi quem (3): Nino Vieira (n. 1939)

Dos editores do blogue> Série em construção, PAIGC - Quem foi quem ... (1). Contributos de todos os amigos e camaradas serão bem vindos, tendo em vista actualizar, completar, aprofundar ou esclarecer estas notas biográficas. (Os editores LG/CV/VB)

Nino Vieira (n. 1939)

Um guerrilheiro e uma lenda viva.


João Bernardo Vieira, Nino Vieira, Nino ou Kabi Nafantchammma como também era chamado, foi uma personalidade que nos acompanhou ao longo dos anos que durou a guerra.

Uns só ouviram falar dele, outros, principalmente os que estiveram no sul do território, sentiram na pele as acções em que directa ou indirectamente esteve envolvido.

Nino nasceu em Bissau, em 27 de Abril de 1939.
Electricista de formação, filiou-se no PAIGC em 1960 e no mesmo ano partiu para a China, integrado no primeiro grupo de militantes do PAIGC que frequentou a Academia Militar de Pequim.

De volta à Guiné, foi encarregado de organizar a estrutura militar da guerrilha no Sul do território.

E teve logo que provar na prática o que tinha aprendido. Nos inícios de 1964, durante a Operação Tridente, forças do BCAV 490, fuzileiros, paraquedistas e comandos, comandadas pelo Tenente-Coronel Fernando Cavaleiro reocuparam (enquanto lá permaneceram...)a ilha de Como (ou Komo), numa acção que durou cerca de 70 dias e que custou às NT 9 mortos, 47 feridos e um T6 abatido.

Com 25 anos apenas, Nino já era o Comandante Militar da zona sul, que abrangia a região de Catió até à fronteira com a Guiné-Conacri. Aliás, foi quase sempre no Sul que actuou durante a luta, transformando esta zona, que abrangia o Cantanhez e o Quitafine, num dos mais duros, senão o mais duro, de todos os teatros de operações em que as forças portuguesas estiveram empenhadas e do qual ainda restam nomes míticos de Guileje, que ele veio a ocupar em 1973, Gadamael, Gandembel, Cacine, Catió, Cufar, Cadique, Bedanda e tantos outros.

Além da indesmentível coragem, Nino teve também pelo seu lado a sorte que faz os heróis sobreviverem, e foi essa sorte que lhe permitiu escapar por várias vezes a emboscadas montadas pelas forças portuguesas, sendo o caso mais conhecido o da Operação Jove, em que uma força de páras capturou o capitão cubano Pedro Peralta.

Embora se tenha dedicado principalmente à actividade operacional, como comandante de unidades de guerrilheiros, Nino Vieira ocupou os mais altos cargos na estrutura do PAIGC, sendo membro eleito do bureau político do seu Comité Central desde 1964, vice-presidente do Conselho de Guerra presidido por Amílcar Cabral em 1965, acumulando com o comando da Frente Sul, e ainda comandante militar de todo o território a partir de 1970.

Foi eleito deputado em 1973 e, posteriormente, Presidente da Assembleia Nacional Popular, que proclamou no Boé a República da Guiné-Bissau, em 24 de Setembro de 1973.
Luís Cabral nomeou-o 1º Ministro do Governo da Guiné-Bissau em 28 de Setembro de 1978.
Em 1980, com as condições económicas deterioradas e o crescente descontentamento da população, Nino Vieira liderou um golpe militar que levou à destituição do Presidente da República, Luís Cabral.

As consequências do golpe tiveram profundas repercussões na vida do PAIGC. O PAIGC de Cabo Verde resolveu separar-se e a união dos povos guineense e cabo-verdiano, tão acarinhada por Amílcar Cabral, foi interrompida.
Na sequência do pronunciamento militar, suspensa a Constituição da República da Guiné-Bissau, tomou posse o Conselho Militar da Revolução chefiado por Nino Vieira.

Em 1984 foi aprovada uma nova Constituição e só em 1991 terminou a proibição dos partidos políticos.
Com o novo regime, as primeiras eleições tiveram lugar em 1994. Nino Vieira, concorrendo contra Kumba Yalá, foi eleito Presidente da República à 2ª volta, tomando posse em 29 de Setembro de 1994.

Quatro anos depois, ainda conseguiu suster um golpe que visava a sua destituição. Mas não por muito tempo. A propósito de um nunca esclarecido fornecimento de armas para a guerrilha de Casemance, em Junho de 1998 travou-se uma violenta guerra civil entre partidários de Ansumane Mané e forças fieis a Nino. Mané destituiu-o em 7 de Maio de 1999, e Nino Vieira foi obrigado a refugiar-se na Embaixada Portuguesa em Bissau, de onde só saiu em Junho para Portugal.

Em 7 de Abril de 2005, regressou a Bissau anunciando a sua candidatura às presidenciais de Junho de 2005.
Depois de várias controvérsias, a sua candidatura foi aceite. Concorreu contra o seu antigo Partido, o PAIGC, que apresentou Malan Sanhá como candidato. Depois de ter ficado atrás de Malan na 1ª volta, Nino ganhou à 2ª, principalmente devido a apoios de outros candidatos, nomeadamente de Kumba Yalá.

Fonte: Universidade de Coimbra > Centro de Documentação 25 de Abril
_________

Nota dos editores:

(1) Vd. posts anteriores:

Guiné 63/74 - P2142: PAIGC - Quem foi quem (1): Amílcar Cabral (1924-1973)

Guiné 63/74 - P2143: PAIGC - Quem foi quem (2): Abílio Duarte (1931-1996)

Guiné 63/74 - P2158: Recordações do 1º Comandante do Pel Caç Nat 52 (3): O famigerado granadeiro do Enxalé, da CCAÇ 1439 (1965/67)




Guiné > Zona leste >Enxalé > O famoso granadero, uma GMC transformada, que pertencia à CCAÇ 1439... 

Segundo a Wikipedia espanhola, "un granadero es un soldado de elevada estatura perteneciente a una compañía que formaba a la cabeza del regimiento. El empleo de las granadas de mano hizo estimar necesaria la creación de los granaderos, cuyo objeto, según su nombre lo indica era arrojar y manejar esta clase de proyectiles"... Por analogia, alguém deve ter dado o mesmo nome a esta viatura, modificadas, que nas picadas da Guiné funcionava como rebenta-minas e testa das colunas logísticas... Não me recordo de, no meu tempo (CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71), ter ouvido falar em granaderos... Tínhamos também velhas GMC, do tempo da guerra da Coreia, que carregadas de sacos de areia funciona´vam como rebenta-minas. (LG).


Fotos: © Henrique Matos (2007). Direitos reservados.


1. Mensagem do Henrique Matos, que nos chegou a 30 de Julho de 2007 (1)


Caros tertulianos:

Para a história do famigerado granadero que se vê no Post 2001 (2). Aqui vão duas fotografias do mesmo que tirei no Enxalé. É uma GMC que foi transformada por pessoal da CCAÇ 1439, uma unidade de Madeirenses, que ali esteve até Abril de 1967 (3) e foi substituida pela CART 1661 que passou a sede para Porto Gole em Dezembro de 1967, ficando o Enxalé apenas como destacamento.

A transformação constou do reforço dos taipais com chapas de bidon, separadas de ± 20 cm com areia no meio. Ficou à prova de bala de Mauser. Tinha também uma camada de areia no fundo da caixa e na frente também vários sacos de areia. Tinha instalada como se pode ver uma Breda. Não sei porque é que lhe chamavam granadero.

Com ela fiz vários reabastecimentos a Missirá e Porto Gole (4). Segundo a descrição do Abel Rei no seu depoimento Entre o Paraíso e o Inferno: de Fá a Bissá-Memórias da Guiné e que na altura estava em Bissá, no dia 5 de Outubro de 1967 esta viatura quando regressava a Porto Gole accionou uma mina incendiária a que se seguiu uma emboscada de que só se safaram com apoio aéreo. Fazia parte duma coluna que saiu de Porto Gole ao encontro doutra coluna saída de Bissá a pé para entregar uns militares destinados àquele destacamento.

Desde a abertura de Bissá (que eu conheci bem e considero um erro catastrófico) em Abril de 1967 e até esta última data tiveram três viaturas inutilizadas, mais de vinte mortos e uns cinquenta feridos evacuados. Penso por isso que não andariam propriamente a jogar uns com os outros.

Um abraço para todos
Henrique Matos

____________

Notas de L.G.:


(1) Vd. post de 22 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1871: Tabanca Grande (15): Henrique Matos, ex-Comandante do Pel Caç Nat 52 (Enxalé, 1966/68)

(2) Vd. post de 26 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P2001: Todos ouviram falar do Morés, o mítico Morés, o Morés de todos nós (António Rodrigues / Luís Nabais/ Virgínio Briote)


(3) Sobre a CCAÇ 1439 (madeirense) - mas igualmente sobre e a CCAÇ 1550, ver o relato autobiográfico de Abel de Jesus Carreira Rei, nascido em 1945, filho de operário vidreiro, ex-combatente da Guiné (1967/68), natural da Maceira, Leiria, e actualmente residente em Embra, Marinha Grande:

post de 1 Maio de 2005 > Guiné 69/71 - X: Memórias de Fá, Xime, Enxalé, Porto Gole, Bissá, Mansoa (Abel Rei)

Trata-se de um diário, com passagens seleccionadas pelo editor do blogue. Não consegui descobrir a unidade a que pertenceu (só sei que é uma CART, com quatro grupos de combate., possivlemente a CART 1661, a que se refere o Henrique Matos, a que substituiu a CCAÇ 1439, e que mudou a sua sede do Enxalé para Porto Gole) .

Aqui vai o endereço da página: Entre o Paraíso e o Inferno: de Fá a Bissá. Memórias da Guiné - 1967/1968). Trata-se de um diário que vai do dia 1 de Fevereiro de 1967 a 19 de Novembro de 1968.

(4) Vd. posts de:

14 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2105: Recordações do 1º Comandante do Pel Caç Nat 52 (Henrique Matos) (1): Ataque a Missirá em 22 de Dezembro de 1966 (Parte I)

14 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2107: Recordações do 1º Comandante do Pel Caç Nat 52 (Henrique Matos) (2): Ataque a Missirá em 22 de Dezembro de 1966 (Parte II)

Guiné 63/74 - P2157: Álbum das Glórias (29): O misterioso avião IN que eu fotografei na Base Aérea nº 12, Bissalanca, em 1969 (A. Marques Lopes)

Guiné > Bissau > Bissalanca > Base Aérea nº 12 > 1969 > Um bimotor da Guiné-Conacri, capturado pela nossa força aérea.

Fotos: © A. Marques Lopes (2006)

1. Mensagem do A. Marques Lopes, coronel DFA, na reforma, ex-alferes miliciano na Guiné (1967/68) (CART 1690, Geba, 1967/68; e CCAÇ 3, Barro, 1968):

Já que se falou de um helicóptero (1), vai aqui um avião capturado (2)...

Nos princípios de 1969, quando estava por Bissau, vi este bimotor na BA12 e perguntei ao polícia da Força Aérea o que era: que era um avião capturado, mas que não sabia dizer exactamente onde, parece que a Norte...

Quis tirar uma fotografia, mas ele disse-me que era proibido. Disse-lhe que se virasse para o lado então, e assim já não me via tirar... Ele virou-se e eu tirei.

Talvez o Diamantino Pereira Monteiro (1) saiba de alguém que possa contar.


A. Marques Lopes

2. Comentário de L.G.:

António, já tinhas mandado essa foto, com legenda, há dois anos!... Como o tempo passa e como a memória nos vai atraiçoando... Na altura dissestes que o avião tinha sido capturado aos nossos vizinhos da Guiné-Conacri, em 27 de Março de 1968... De qualquer modo, esta questão do heli e do bimotor capturados nos norte do território da Guiné, é interessante:

O que nos teria acontecido se o PAIGC tivesse chegado a ter uma verdadeira força aérea ? Até onde nos teria levado a escalada da guerra ? Quem travou (ou tramou) os MIG russos, estacionados na Guiné-Conacri ? Amílcar Cabral (1924-1973) ? Sékou Touré (1922-1984) ? Spínola e Alpoím Galvão ? A guerra fria ? A NATO ? Os americanos ?

____________

Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 30 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2144: PAIGC: O misterioso helicóptero interceptado pela FAP em meados dos anos 60 (J. C. Abreu Santos / Domingos Perereira Monteiro )

(2) Vd. post de 7 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXLV: Bissalanca, Bambadinca, Anura... ou três fotos com legenda (1) (A. Marques Lopes)

(...) "Este avião foi capturado à Guiné-Conacri em 27 de Março de 1968. Estava eu, nos princípios de Maio desse ano, à espera da DO [Dormier] que me havia de levar a Barro quando o vi" (...).

Guiné 63/74 - P2156: Cusa di nos terra (10): Susana, Chão Felupe - Parte V: Casamento (Luís Fonseca)

Foto 1 > Guiné-Bissau > Chão Felupe > 2 de Novembro de 2006 > A magia do pôr do sol na África Ocidental...

Foto: © Jorge Rosmaninho (20906). Africanidades > 2.11.06 > Por aí... (com a devida vénia e o nosso Alfa Bravo para o Jorge...).



Foto 2> Pôr-do-sol no Chão Felupe


Foto: © Luís Fonseca (2007) (Direitos reservados)


1. Mensagem do dia 1 de Outubro de 2007, do nosso camarada Luís Fonseca, ex-Fur Mil Trms (CCAV 3366/BCAV 3846, Susana e Varela, 1971/73)

Caros editores:

Enviadas que estão algumas notas(1) chegou, talvez, a altura de questionar sobre o real interesse das mesmas, no presente contexto, para a maioria dos camaradas. Para isso conto com a vossa habitual frontalidade.

É evidente que todas elas, com todas as imprecisões que possam conter, resultam da possibilidade de, durante a minha comissão de serviço, procurar conhecer, em curtas e espaçadas incursões, com alguma (bastante) diplomacia à mistura, um pouco do mundo de uma etnia que, para os próprios guinéus, é praticamente desconhecida e, como consequência, motivo de medos e desconfianças.

Terminada a minha permanência naquele chão, o bichinho da curiosidade e, porque não dizê-lo desde já, admiração, já exponenciado, aumentou pelo que, de uma forma ou outra, tentei manter-me ao corrente, com grandes dificuldades na obtenção de informação fidedigna, do que ali se passava.

Africanidades, do Jorge Neto [opu melhor, Jorge Rosmaninho], foi o meu blog de sustentação e através dele tomando conhecimento do esquecimento a que, voluntária ou involuntariamente, votaram aquela gente e aquela região. Ela só surgia nas notícias dos media quando existiam problemas, na sua grande maioria envolvendo os vizinhos do norte, já antigos, e a que voltarei quando se afigurar oportuno.

No espaço que mantenho, 5ª Rep, já fiz sentir algumas opiniões sobre tal facto.

Mas voltemos ao que me propus.
Desta feita para falar em: Casamento.
Luis Fonseca
(ex-Fur Mil Trms CCAV 3366)

2. Comentário dos editores

Caro Luís Fonseca:

Os editores não têm qualquer dúvida em afirmar que os teus apontamentos sobre a etnia Felupe, com que nos tens presenteado regularmente, são do interesse da esmagadora maioria das pessoas que acedem à nossa página, combatentes ou não, porque dão a conhecer uma etnia com costumes muito próprios e desconhecidos de quase todos nós.

A África toca todos os portugueses e a Guiné, particularmente, a nós tertulianos do Blogue do Luís Graça & Camaradas da Guiné.

O Casamento (Felupe), que nos mandas agora, é um exemplo do que se acaba de escrever.
A tua narrativa é tão sugestiva que dispensa imagens.

Se cada um de nós tivesse recolhido elementos sobre o uso e costumes do Chão que pisou e o transmitisse nestas páginas, teríamos um fabuloso compêndio de antropologia sobre a Guiné dos nossos tempos.

Já agora fica a sugestão para que se houver entre nós mais alguém, a exemplo do Luís Fonseca, que tenha escritos sobre os usos e costumes dos povos da Guiné, apresente os seus trabalhos e contribua assim para aumentar o nosso conhecimento.
CV


Foto 3> Guiné-Bissau > Região do Cacheu > Varela > Iale > 2004 > Festa da saída da Cerimónia de Circuncisão (fanado, em crioulo) da etnia Felupe em Iale.

Foto: © Guiné-Bissau, portal da AD - Acção para o Desenvolvimento (2007) (Com a devida vénia)


3. Casamento (Felupe)
por Luís Fonseca

O casamento na etnia Felupe tem regras muito especiais que demoram anos a cumprir. Os preliminares podem começar quando um rapaz tem entre 10 e 14 anos. Ele pode escolher uma rapariga para sua namorada ou ser aconselhado nessa escolha pelos pais, mantendo, no entanto, a possibilidade de não aceitar as sugestões. Tal sucede com pouca frequência, embora a partir dos 15 anos os rapazes não necessitassem de autorização paternal para andar por qualquer lado do território.

Uma vez feita a escolha, o rapaz, pede ao seu pai para falar ao pai da rapariga escolhida que, por sua vez, perguntará à mesma se quer ficar "amiga" do rapaz em questão. Normalmente e por uma questão de pudor, simulado, a rapariga dirá que não conhece o rapaz pelo que numa próxima festa a sua mãe lhe dirá, indicando-o às escondidas, quem é o pretendente. Em qualquer altura posterior a rapariga tem a liberdade de recusar.

Depois da festa, o pai do rapaz leva ao pai da rapariga uma cabaça de vinho de palma e retira-se. Se a cabaça for devolvida vazia significará que o namoro foi aceite. Se a rapariga não aceitar o namorado devolverá o vinho.

A cerimónia do Edjurorai

Quando o rapaz tiver entre 15 e 16 anos tem lugar a cerimónia do Edjurorai. O rapaz tem que arranjar um galo (castrado) e uma galinha e irá, com alguns amigos da tabanca, antes do sol nascer, acordar a rapariga.

Esta deve matar o galo, batendo com a cabeça do animal no chão ou num tronco de árvore, enquanto o rapaz fará o mesmo com a galinha. Após esta cerimónia o rapaz trará os animais para a sua morança e vai comê-los com os amigos.

O Edjurorai é uma cerimónia colectiva feita na mesma madrugada por rapazes (cerca de 15) com namorada já escolhida. Depois desta cerimónia o pai do rapaz começa a criar um ou vários porcos, conforme o seu poder económico, para, passado cerca de um ano, ter lugar a cerimónia do Ebandai.

O porco ou porcos são mortos e divididos rigorosamente, exceptuando as cabeças. Uma das metades da carne é levada, no dia seguinte, muito cedo, pelas mulheres da tabanca do rapaz, à casa da rapariga, onde é distribuída pelos moradores. A família da rapariga retribui a oferta com mandioca e bananas, géneros que são consumidos pelas mulheres carregadoras, uma vez regressadas a casa do rapaz. A outra metade da carne de porco é distribuída pelos moradores da tabanca do rapaz. Nesse mesmo dia, começa a cozinhar-se, para serem comidas no dia seguinte, a cabeça ou cabeças dos porcos, com arroz fornecido por todos os elementos da tabanca do rapaz. A essa refeição assistem, como convidados, os elementos da tabanca da rapariga.


A cerimónia do Bubapassabu


Quando atingir os 21/22 anos, o rapaz começa a construir a sua casa nova, com o precioso auxílio dos amigos e outros rapazes da tabanca e o pai a juntar vinho de palma e galinhas para a cerimónia do Bubapassabu. O vinho e as galinhas são levados para casa do pai da rapariga, procedendo-se a várias cerimónias num santuário anteriormente combinado. Quando se acabam as galinhas o pai da rapariga avisa o pai do rapaz que pode ser realizado o casamento (Buiabu).

Quando existe já suficiente vinho de palma, o pai do rapaz avisa os moradores da sua tabanca enquanto os pais da rapariga fazem igual aviso aos seus, relativamente à data certa do casamento, realizado normalmente num Domingo Felupe (salvo erro Quinta-Feira no nosso calendário).

A cerimónai do Buiabu

Na manhã do dia do casamento há um toque especial do Bombolom, na tabanca do rapaz, após o que os jovens, rapazes e raparigas, vão ao mato buscar o vinho de palma que o noivo juntou, transportando-o para a casa nova. Ao princípio da tarde desse dia, a família da noiva leva para a casa nova um balaio com arroz, um pilão e o respectivo pau de pilar. Nessa noite os homens que são pais, levam o noivo para a mata. Igualmente na tabanca da noiva, as mulheres casadas, que já são mães, levam a noiva para a mata.

Os dois grupos ministram, separadamente, conhecimentos sobre o casamento. Passadas algumas horas, a noiva, chega à casa nova onde espera, acompanhada pela família, a chegada do noivo. A noiva tem, obrigatoriamente, de entrar na casa nova pela porta da frente. A chegada do noivo, que entra pelo quintal, carece do ritual de atravessar a casa seis vezes. Depois disso, o ritualista do Fanado conduz o noivo, para junto da noiva, ficando ambos sentados.

Segue-se a festa em que todos cantam, dançam e... bebem o vinho do noivo. Quando este terminar todos abandonam a casa ficando apenas o Arrontchenau, escolha do pai do noivo. Esta figura é uma espécie de encarregado do casamento e ao mesmo tempo padrinho. A mulher do padrinho leva a noiva ao quarto e ambas colocam uma esteira no chão, a mulher deve ficar sempre do lado da parede. Depois os padrinhos retiram-se, sendo consumado o casamento.

Na manhã seguinte, antes do nascer do sol, a noiva vai novamente para a casa paterna.

A cerimónia do Etuiai.


Nos dias seguintes, à noite, e durante cerca de três semanas, a noiva vai a casa dos padrinhos, pedir-lhes para a acompanharem à casa nova, onde dorme, voltando a sair na madrugada seguinte. Passadas as cerca de três semanas a noiva avisa a mãe que vai começar a fazer comida para o marido.

Esta avisa a sua tabanca e o pai do noivo, que por sua vez avisa a sua tabanca, que vai ter lugar a cerimónia do Etuiai.

O noivo deve arranjar arroz, peixe e vinho de palma. As mulheres da tabanca da noiva é que cozinham, só elas, não a noiva, e só se alimentam os jovens da tabanca do noivo, mas não este. No final da refeição toda a gente lava as mãos numa grande panela de barro com água que entretanto se tinha aquecido.

Após ter sido posta mais lenha no lume, de modo a fazer uma grande fogueira, o rapaz mais velho da tabanca do noivo, sem a presença de testemunhas, levanta a panela no ar e larga-a de modo a que ele se parta e apague o lume.

Depois disso todos saiem, com excepção dos padrinhos que transmitem à noiva que já pode cozinhar. Todavia, embora cozinhando, durante a primeira semana não come na sua casa, indo fazê-lo a casa dos padrinhos.

No final da semana, entra finalmente na rotina diária.

Tanto quanto consegui entender a lei Felupe não admite poligamia. Os casamentos são monogâmicos, permitindo-se no entanto a separação dos casais. O mais comum, contudo, é ver casais que permanecem unidos até morrer um dos conjuges.

Depois desta longa dissertação, o melhor é dizer
Kassumai

Luis Fonseca
(ex-Fur Mil Trms CCAV 3366)
___________________

Nota do co-editor CV

(1) Vd. posts anteriores:

16 de Setembro de 2007 >Guiné 63/74 - P2110: Cusa di nos terra (9): Susana, Chão Felupe - Parte IV: Mulher e Comunitarismo (Luís Fonseca

5 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2081: Cusa di nos terra (7): Susana, Chão Felupe - Parte III: Trabalho, lazer, alimentação, guerra, poder (Luís Fonseca)


31 de Agosto de 2007 > Guiné 63/74 - P2074: Cusa di nos terra (6): Susana, Chão Felupe - Parte II: Religião (Luís Fonseca)


15 de Agosto de 2007 > Guiné 63/74 - P2052: Cusa di nos terra (5): Susana, Chão Felupe - Parte I (Luís Fonseca)

Guiné 63/74 - P2155: Estórias de Cufar (1): Se querem uma injecção sem dor, perguntem ao Salvador (ex-1º Cabo Enf Salvador, CCAÇ 4740, 1972/74)


António Manuel Salvador, ex-1.º Cabo Enfermeiro, CCAÇ 4740, Os Leões de Cufar, Cufar , 1972/74


1. Mensagem de António Salvador, em 27 de Setembro de 2007

Amigo Luís:

Foi deveras surpreendente ver e ler tudo aquilo que te escrevi (1). Sem dúvida vocês merecem o máximo de consideração.

Como me pediste, passo a contar mais sobre mim na Guiné (Cufar) e sobre a minha Companhia, a CCAÇ 4740 (Os Leões de Cufar).

Embarcámos em Junho de 1972 num avião dos TAM e no mesmo dia chegámos ao aeroporto de Bissalanca. Estivemos cerca de um mês no Cumeré para fazermos a adaptação ao terreno ou seja, se não me engano, o IAO.

Acabado o IAO, fomos de Bissau em LDG ou LDM até Cufar, sem qualquer problema. Esperava-nos a Companhia velha da qual não me recordo do número. Recordo sim alguns enfermeiros, tais como o Cosme e o Filipe que nos ensinaram tudo aquilo que sabiam. O que se tinha aprendido no HMP [Hospital Militar Principal] era totalmente diferente da realidade do mato.

Quanto a ataques, de vez enquando lá estávamos a embrulhar, mas felizmente nunca caiu nada dentro do aquartelamento. Aliás, caiu um míssil, um dos tais foguetões, mas não rebentou, ainda bem.

Como já havia dito, eu era 1º Cabo Enfermeiro.

Todos temos não histórias, mas realidades para contar e eu também tenho uma.


Se querem uma injecção sem dor perguntem ao Salvador

Havia um major com 23 anos, os graduados eram sempre mais velhos, que não era da nossa Companhia, talvez fosse dos Páras-quedistas ou de outra companhia que estivesse por ali na zona. Ele estava por ali um tempo, depois ia a Bissau e voltava de novo, até que uma vez chegou com uma doença venérea.

Como é óbvio, tinha que levar umas injecções de penicilina de um milhão de unidades.

O nosso médico, o alferes Moita, e o Furriel Enfermeiro Aguiar nunca lhe deram nenhuma, mas sim nós os enfermeiros. Escusado será dizer como doem as injecções de penicilina. Era vulgar as agulhas entupirem e termos que as tirar e voltar a espetar outra vez. O major não queria isso, concerteza.

Calhou-me a mim dar-lhe a última injecção e eu ia com receio de que algo não corresse bem. Ele pôs-se a jeito na cama, as nádegas muito branquinhas, decerto nunca tinham visto sol nem lua, eu tirei a seringa, bati muito bem o líquido e lá vai disto.

Conclusão, a agulha entupiu. Pensei eu no momento que só havia uma solução. Finjir que estava a injectar, levando o tempo necessário e de vez enquando perguntar se doía. Ele que estava por baixo, dizia que não. Finalmente guardei a seringa na caixinha, tirei a agulha e esfreguei de novo com álcool. Tudo bem guardado no estojo, lá me fui embora.

Isto aconteceu de manhã e à tarde, veio o médico agradecer-me da parte do major, dizendo que na vida dele nunca tinha levado uma injecção sem dor.

O título desta minha aventura podia ser Se querem uma injecção sem dor perguntem ao Salvador.

Amigo Luís:

Aqui vão as fotos da praxe, a primeira tirada em Cufar no dia 1 de Dezembro de 1974 e a outra o ano passado em A-dos-Cunhados.
[...]

Está também no blogue o António Graça de Abreu a contar que gravou em audio um ataque a Cufar no dia 20 de Janeiro de 1974. Isso é verdade e foi às dez horas. Tenho aqui escrito na minha agenda o seguinte: Eram cerca de 10 horas quando Cufar foi atacada por RPG7. Foram manga deles, mas não houve feridos, só susto.

Estas dez horas devem ser da noite, porque era a hora deles nos chatearem, embora de vez enquando também aparecessem de dia.

Tinha mais que contar, mas fica para a próxima.

Daqui envio um forte abraço ao Mário Fitas. Já li os seus dois livros que, sem dúvida, estão bem estruturados. Quem ao ler, entrar na personagem, consegue viver a realidade dos acontecimentos.

Sem mais, um forte abraço para todos os tertulianos do Blogue, do qual passarei a ser mais um.

P.S. - Se houver algum elemento da CCAÇ 4740 - Os Leões de Cufar, por exemplo o Alferes Lopes ou o Parracho, que dêem sinal de vida para um futuro encontro. Não posso também esquecer o ex-Furriel Faria, de Pedroso, Vila Nova de Gaia.

A próxima aventura será A Marmelada também cura

António Salvador

2. Comentário de CV:

Caro Salvador dou-te as boas-vindas formais ao nosso Blogue. Na realidade já foste apresentado pelo nosso Editor Luís Graça, aquando do teu primeiro contacto connosco.
Esperamos de ti muitas estórias, que bem podem ser humorísticas como esta.
____________________________

Nota de CV:

(1) Vd. post de 16 de Setembro de 2007 >Guiné 63/74 - P2109: Tabanca Grande (34): António Manuel Salvador, ex-1º Cabo Enf, CCAÇ 4740, Cufar, 1972/74, hoje funcionário da KLM, Amesterdão

sexta-feira, 5 de outubro de 2007

Guiné 63/74 - P2154: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (4): Cartas de Missirá, Setembro de 1969

Texto enviado, em 8 de Agosto último, pelo Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70).


Foto (à esquerda) > O Beja Santos, em Bissau, em Janeiro de 1970.

Luís:

Aqui vai o episódio nº 4. Já seguiram os livros correspondentes, amanhã segue uma fotografia do Carlos Sampaio. Não posso escrever mais esta semana, depois faço férias, na semana de 20 escrevo-te.

Vai haver mais uma flagelação a Missirá, depois vou ficar sem o Casanova, exactamente no momento em que mais precisava da sua ajuda. É sempre assim na vida. Recebe um abraço do Mário.


Cartas de um militar de além-mar em África para aquém em Portugal (1)
por Beja Santos

Carta para Luís Zagalo Matos

Estimado Luís Zagalo,

Aqui vão notícias que seguramente lhe darão alegria. Voltámos ao Enxalé, conciliei um patrulhamento a Mato de Cão, levei duas viaturas e picadores, ainda há vestígios da época das chuvas, na estrada andámos com água até aos joelhos junto da bolanha, os nossos soldados iam contando histórias vividas em 1966 e 1967, o seu nome era permanentemente invocado, junto da antiga picada para Madina encontrámos um sinal de trânsito de sentido proibido(!) e sinais recentes de presença humana.

Continuam a impressionar-me muito as casas dos ponteiros em ruínas, a maquinaria abandonada, a beleza do Geba é inexcedível, na estrada para Porto Gole virámos á direita e picou-se com muita prudência já que a picada para o Enxalé é muito arenosa, propícia a minas.

O alferes recebeu-nos com simpatia, ao princípio estava desconfiado, julgava tratar-se de uma operação para Madina. A estrada de Porto Gole está interdita, o Enxalé é reabastecido através de um pequeno porto a 3 Km, e o correio é atirado da avioneta (seria assim já no seu tempo?). Alguns dos abrigos foram ainda construídos pelos meu soldados, há dois anos e meio atrás.

Em Missirá, todas as cubatas estão protegidas por abrigos, nenhuma cubata aparece como protecção do abrigo. No Enxalé há um aterro entre as instalações e os abrigos do pelotão, é uma enorme tabanca povoada por balantas e mandingas, escandalizou-me que a tabanca aparecesse com um escudo do quartel.

Dei a notícia ao nosso camarada que passaríamos ambos a pertencer ao sector de Bambadinca e que eu contava que iríamos colaborar regularmente face ao mesmo inimigo. Almoçamos à pressa, tínhamos que regressar rapidamente pois começou a cair uma chuva torrencial, isto quando a manhã fora resplandecente... Coisas do fim da época das chuvas.

Sei que não acredita, mas o seu nome foi várias vezes referido no Enxalé. De Missirá, tenho pouco a contar. No início do mês, fomos fogueados ao anoitecer sem consequências. Com as viaturas muitas vezes empanadas, usamos o Sintex para transportar os combustíveis e munições para Missirá. A burocracia está pior do que no seu tempo. Imagine que caiu um Unimog na bolanha de Finete, foi o cabo dos trabalhos removê-lo, perderam-se acessórios e ferramentas, foi um dia inteiro que passei num auto de averiguações, em Bambadinca. E foi só a abertura do auto...

Tenho um grande favor a pedir-lhe, é se V. podia visitar no Hospital Militar Principal dois militares gravemente feridos que o conhecem. Se estiver disponível, por favor, escreva-me. Junto uma fotografia junto da fonte de Cancumba, tal como me pediu. Receba a muita estima daquele que ouve todos os dias elogios ao seu nome e ás suas façanhas.

Carta para Ruy Cinatti

Ruy, dear Father,

Obrigado pela sua linda carta. Gostei sobretudo dos seus pequenos poemas que me lembram os haiku, não sei porquê. Por exemplo:

Vamos chorar tanto
que a terra se inunda
Como inundar
o mar?
-
Atracção do nada
é o mar em frente.

Vejo aproximar-se
quem do mar me chama.


Que maravilha! Acabo de saber pela a Amélia Lança que V. lhe comprou a Enciclopédia Britânica... Que luxo! As notícias que tenho para si são triviais: cheio de limitações, espero o inimigo e, regra geral, ele não vem; fala-se que iremos abandonar Missirá, o que não me parece razoável quando tenho obras em curso, mas suspeito que os meus soldados anseiam partir, devem ter a ilusão quanto ao fim das nossas dificuldades.

Como eu suspeitava, Finete sofreu uma pequena flagelação, houve um ferido ligeiro e uma cubata atingida, foi um foguetório pesado mas mal dirigido, já que o quartel está num baixio, é fundamental a precisão de tiro, o inimigo não tem a visão a não ser a dos abrigos posicionados no alcantilado da rampa que protege toda a estrada para Canturé e Malandim.

O seu afilhado e meu padrinho, Felipe Fernandes, continua a enviar-me livros da Portugália. Estive a ler cheio de interesse A Revolução de 1383, de António Borges Coelho. É uma visão marxista da caracterização feita por Fernão Lopes da revolução burguesa. O historiador começa por registar o Portugal da segunda metade do Séc. XIV, observando muito bem o que distingue a agricultura feudal dos centros urbanos e os núcleos burgueses rurais do centro e do sul do país, que elegeram o Mestre de Avis.

Depois, descreve o Portugal marítimo, os interesses dos mercadores e a sua hostilidade aos senhores feudais. Temos depois a revolução, a conjura chefiada por Álvaro Pais e Antão Vasques e o confronto a nobreza feudal. Nuno Álvares Pereira é para Borges Coelho um herói dúbio. Segue-se a apresentação de um rei que é eleito pelas Cortes, submetido a essas mesmas Cortes, e a um conselho régio.

Com D. João I entrámos no mundo contemporâneo, no renascimento urbano e, aproveitando-se de um continente em convulsão, os portugueses avançam para África. É uma tese curiosa, guardo aqui o livro para si. Estou a cair de sono, ainda vou escrever à minha Mãe, pelas 5 da manhã parto para Mato de Cão. Como tenho saudades suas e gostava tanto de conversar consigo! Só falta um ano para que isso aconteça. Receba a profunda estima.


Capa do ensaio do historiador António Boregs Coelho, A Revolução de 1383. Lisboa: Portugália Editora. 1965. Capa de João da Câmara Leme

.Foto: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Direitos reservados

Carta para Ângela Carlota Gonçalves Beja

Querida Mãezinha,

Fico contente pela visita que o Teixeira lhe fez. Espero que tenha apreciado o anel em prata filigranada de um ourives de Bafatá, a pedra é insignificante, sugiro que ponha uma ametista ou um topázio.

Passando para assuntos mais sérios, volto a insistir de que gostaria que os meus familiares não se envolvessem nas minhas decisões e que me fosse evitado este massacre de acusações acerca da Cristina. Nada está decidido sobre a sua vinda, não sei se vou para Bissau, gostaria de deixar adiantado o que aqui comecei, independentemente da guerra, as pessoas devem ser respeitadas, verem obras acabadas, enfim, haver continuidade na criação de bem estar, instrução, apoio médico e até reagrupamento das populações. Tenho agora novos milícias em Finete, vai haver um período de adaptação, eles vão colaborar nos patrulhamentos à volta do Geba, são fulas que nunca viveram dentro de uma comunidade mandinga.

Obrigado pelos livros que me enviou. O que é curioso é que eu não conhecia o Dennis McShade, não sei quem é, logo que possa vou ler este Requiem para Dom Quixote. Estive a folheá-lo, lembra-me o romance negro norte-americano tipo Raymond Chandler ou Ed McBain.

Diverti-me imenso com Dois crimes no Inverno, por S.S. Van Dine. Desta vez Philo Vance acompanha o procurador Markham a casa de Carrington Rexon, proprietário da uma importante colecção de esmeraldas. Tudo se passa num sítio campestre, dentro de uma propriedade onde se concentram convidados, jovens do jet set da época, gente que vem acompanhar uma possível noiva do filho do proprietário. É assassinado um guarda e depois um escroque. Desaparecem esmeraldas e Philo Vance, num ápice, desvenda tudo. Como é próprio dos romances de S.S. Van Dine, o criminoso suicida-se. A obra tem subtileza mas não tem chispa.

Falando da guerra, tenho muitos soldados doentes, Missirá e Finete sofreram só pequenas flagelações, não se assuste com os comunicados que aí aparecem, este fogo aqui é uma ninharia. Muito obrigado pela visita que fez ao Paulo Semedo e ao Fodé. Prometo escrever ainda esta semana. Beijinhos do filho que nunca a esquece e reza pelas suas melhoras.



Capa do romance policial de S.S. Van Dine, Dois crimes no inverno. Lisboa: Livro so Brasil. s/d. (Colecção Vampiro, 57). Capa de Cândido Costa Pinto.

Foto: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Direitos reservados.

Para a Cristina Allen


Meu adorado amor,

A ver se consigo dar ordem a tudo quanto gostaria de te dizer. Não fiques atormentada com os comunicados de guerra que por aí aparecem. As flagelações a Missirá e Finete foram insignificâncias, mais adiante vou falar de Finete onde chegaram novos soldados milícias oriundos de Amedelai e Quirafo, não conhecem esta região.

O gerador eléctrico continua sem poder atravessar o rio. O correio que aqui me chega da minha família, magoa que se farta. O Ruy Cinatti escreveu furioso por causa do casamento por procuração, acha-nos loucos e imprevidentes, desaconselha o casamento por procuração, diz não entender quem está a fazer este casamento uma exigência. Eu penso que deve haver aí uma orquestração de vozes, conjugam-se contra ti más vontades. Já não sei lidar com a situação, no caso do Ruy tinha-lhe dado conhecimento das diligências em Bafatá para o casamento por procuração. Acho estranho este tipo de reacção, paciência.

Gostava que fizesses uma lista dos meus convidados, lembra-te da minha prima Teresa, da Amélia Lança, das minha amigas Cândida Lopes e Maria Júlia Apóstolo, dos serviços mecanográficos. O Paulo Semedo escreveu, mandou a fotografia do seu rosto mais composto, deu-nos a boa notícia que o braço que se julgava perdido já faz movimento. Comprei em Bafatá O Trigo e o Joio, do Fernando Namora, fala dos trabalhos e canseiras do teu Alentejo, vou mandar-te esta leitura para as tuas férias.

Escreveu o Jolá Indjai, está tuberculoso, vai para o Caramulo. Recebi hoje carta do Carlos Sampaio, está num teatro de operações muito duro. Amanhã vou a Bambadinca, o comandante quer falar-me, parece que vamos mesmo sair de Missirá. Nada tenho a opor, os soldados insistem que chegou a hora de mudar, não sei se é bom para as populações estas mudanças e interrupções nos trabalhos. Amanhã escrevo de lá, logo que saiba coisas. Não me esquecerei de ir até Bafatá por causa dos documentos. O Teixeira ainda não chegou. Beijinhos e ternura e até muito breve.

Carta para Carlos Sampaio

Meu inesquecível amigo,

A tua carta deixou-me muito preocupado, não sabia que o norte de Moçambique estava a ferro e fogo. Por favor, não te excedas. Os nossos teatros de guerra são diferentes. Dou-te um exemplo. Chegávamos ontem aqui a Missirá ao fim da tarde, quando foi desencadeada uma flagelação a Finete, de que há tanto suspeitava. Eu vim do tal patrulhamento a Mato de Cão, ainda estive em Finete a falar com os novos milícias, conversei depois sobre o abastecimento de arroz que é sempre deficítário e deixei lá elementos de uma esquadra de morteiro. Logo desencadeado o fogo, pedi pelo rádio para a sede do batalhão que usassem o morteiro 120 na retaguarda da força atacante.

E lá regressámos a Finete, onde cheguei pela meia noite, felizmente fora uma flagelação sem consequências, um fogo desalmado mas desorientado. Apurei que houve um comportamento destemido de um jovem de 16 anos, chamado Mafoge Djau, que combateu de peito feito, quando se acabaram os dilagramas veio para o arame farpado lançar granadas de mão. De manhã fiz um patrulhamento, o inimigo retirou sem baixas, foi um quase empate. Esta é a nossa dura guerra, mas como vez diferente da vossa. Não temos sossego, o inimigo está muito perto, benefiicia do efeito surpresa.

Nos poucos tempos livres, oiço música (estou a descobrir as cantatas de Bach, que prazer), leio e escrevo. Já te disse que deixei de ter ilusões sobre a qualidade da minha poesia e gostava sinceramente de desistir. Mando-te o que escrevi ontem. Podes mandar para o lixo depois de leres:

Patrulhamento de rotina

Tu és o agrimensor do meu passado, a minha primeira litania e primeira testemunha.
Tu és o campanário feito catavento que em mim é o feto libertado.
Redigimos, tu e eu, ao longo destes anos a nossa lei interna,
com o giz traçámos o próximo e o distante,
conformámos todas as sílabas onde se lêem o dia e a noite, a paz e a guerra.
Tu és o proscénio deste teatro da linguagem, em teus dedos ponho anéis,
aos teus lábios levo diademas.

Tun és o exemplo de cadastro terrestre, graças ao drama plaino de tanto sofrimento,
minha Mãe evanescente.
Para ti, nesta lonjura feita de lianas que se prendem nas a´rvores gigantes no mais fundo da floresta tropical,
aqui vai o meu trapézio que se eleva acima do mar azul
e grita a abastança do teu sangue no meu.
Neste trapézio onde te encimo o meu amor, tu és uma nave balouçante.
Porque com a nossa lei interna, eu tenho o poder de te transformar em areia escaldante,
vibração atómica ao olfacto e ao tacto.
E de te dizer que me suavizas com a tua veste opalina
o tormento deste meu tempo com armas na mão.

Sê o mar uterino que me aplaca a solidão,
meu mar encantador que chegará porta do meu abrigo-casamata, minha Mãe!

Carlos, continua, dentro das tuas possibilidades, a dar-me companhia. Não podes imaginar o bom que é receber as tuas notícias. Recebe um abraço que atravessa todo o interior de África.

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Nota de L.G.:

(1) Vd. último post > 28 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2138: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (3): Op Pato Rufia (Xime, Setembro de 1969)