quinta-feira, 17 de abril de 2008

Guiné 63/74 - P2768: Pensar em voz alta (Torcato Mendonça) (10): A nossa por vezes difícil mas sempre boa con(v)ivência

Vendas Novas > Escola Prática de Artilharia > Meados dos anos 60 > "Cadetes em Vendas Novas limpam armas em tempo de paz", diz laconicamente o Mendonça, ou melhor, o José, ou talvez o Silva, ou muito simplesmente o Torcato, o nosso Torcato... Citando um velho provérbio popular, ele sabe, melhor do que ninguém, que O dente morde na língua mas mesmo assim vivem juntos... (LG)

Vendas Novas ? Do tempo de tropa do pai do Torcato, imagino... "Anos 40? Ford Canada? Ainda as havia no meu tempo. Tinham a embraiagem ou acelerador fora do sítio habitual" (TM)... Julgo que na Guiné se chamavam Matadores e serviam, para além do transporte de carne para canhão (fui num do Xime a Contuboel, carregado de periquitos, no 2 de Junho de 1969, se bem me lembro), para rebocar os nossos velhos obuses da II Guerra Mundial... Terão desaparecido com a vinda das Berliet do Tramagal (LG)

Fotos: © Torcato Mendonça (2008). Direitos reservados


1. Mensagem do Torcato Mendonça, com data de 26 de Março último:

Caros Editores:

Anexo texto Pensa em Voz Alta - C; a merecer mais título de Mentes Perturbadas… Mexer na água com a mão faz ondas… Para quê ? Com pedrinha faz círculos concêntricos, todos iguais... Não quer dizer que mereça leitura atenta e menos ainda publicação. Sai pela bolha e toque de tecla.

Envio 8 fotos, divididas por três ou quatro mensagens [Artilharia 2, 3, 4 e 5]. Uma é de Vendas Novas e as outras dos anos quarenta.

Gostava de saber que raio de Peças e Obuses são estes. O Coronel Nuno Rubim sabe. Dizem-me algo as fotos. Questões afectivas. Vai breve legenda.

Agradeço, isso sim, que um de vós me diga – recebido.

Bem hajam

Um abraço,
Torcato Mendonça
Fundão


2. Pensar em Voz Alta - C
(O título do poste é da responsabilidade do editor, L.G.)

Pensa, pensa em voz baixa, deves concordar, aplaudir, louvar, enaltecer. Pensa, pensa mas guarda para ti. Se o não fizeres, ao menos bate palmas, ri, mostra a alegria própria dos teus verdes anos. Felizardo, sim tu que neste País vives. Felizardo. Tens o Benfica, uma canção que é nacional, uma Santa que olha por nós, por todos nós.

Quantos anos tens? Nem vinte... dezoito… não dizes? Olhas para onde? … Pareces olhar o vazio. Porquê? A tua geração não pode pensar em voz alta… para quê? Outros por ela o fazem, deixa-te disso. Cala-te e deixa o resto para os outros. O quê? A tua geração quê? Queriam castrá-la? Como assim, meu parvo… não podias falar, pensar em voz alta… para quê, macaquinho, não tens a mente perturbada…pois é isso…felizardos e ingratos…hein!...

Passa uma, duas, três décadas e hoje, pensar em voz alta é como respirar. Aceitar a opinião diversa é (ou tem que ser? – ou começa a ser e a não ser?) a normalidade. Na pluralidade e diversidade de opiniões será encontrada a razão, o rumo certo, a liberdade da vivência colectiva, depois de salutarmente debatida e aceite...

Não aqui, neste espaço plural, ou por isso mesmo aqui, neste espaço de Camaradas de outrora, porque não de agora, em busca do Rumo, do Caminho consensual de uma vivência comum, por todos vivida fortemente, mesmo em tempos ligeiramente diferentes.

Essa vivência comum que os une é a Guiné, a guerra colonial ou do ultramar em consonância ainda não completa e unanimemente aceite. Ou, para outros, guerra de libertação, será que foi? Será que já terminou? Será que falhou esse desígnio?

Talvez a Paz não seja sinónimo de Libertação, aqui ou lá, em maior justiça social, maior desenvolvimento, menores assimetrias ou a não existência de um fosso tão grande entre o Povo (de lá e de cá? ou só de lá? porque não de cá?) e as ditas elites dirigentes. Conjugado de dirigir: Há ainda a conjugação com digerir …outra estória…

Curiosamente há muitos anos atrás um homem compreendeu, brilhantemente, porque sendo de lá, foi educado cá, conheceu estas gentes, como no futuro, logo a seguir, melhor conheceu as gentes de lá, a sua gente. Anos depois diria: não faço guerra ao povo de lá, (ao de cá), faço aos políticos, à sua politica colonial. Esperto o homem de lá, conhecedor do povo de cá, pois alguns, os mais jovens, estavam em passagem curta e sofrida pela sua terra. Aplicava um sofisma mas, mesmo assim, a deixar marcas. Politíco a saber aplicar os seus conhecimentos. Discordamos dele lá e, mesmo depois de melhor conhecer o seu pensamento, cá. Não discordamos totalmente, é certo e respeitamos a sua memória.

Morreu precocemente, o homem. Não viu, o seu povo, o de lá e mesmo o de cá a gritar liberdade. Seria diferente, certamente muito diferente, a vida em liberdade do seu povo se ele tivesse sobrevivido. Porque não o de cá… e há liberdade, cá ou lá, hoje, como ele a sonhou, ontem, cá e lá? … Dúvidas e incertezas, muitas…

Hoje penso em voz alta, respeitando a pluralidade do pensamento e livre expressão de outros. Assim vou aceitando, reflectindo e buscando o caminho desejado… É pena certas marcas do meu passado, certa má formação, difícil ou impossível de modificar. Não esquecer, não saber esquecer e, menos ainda perdoar... Irrelevante para quase todos ou todos... Irrelevante…

Posso é pensar em voz alta e assim:

1 – Prefiro repetir-me. Já falei da nossa Memória como Povo. É difícil viver sem conhecer e debater o nosso passado. Não pretendo recuar oito séculos, nem cinco para falar dos descobrimentos ou da exploração de terras de chegada, desbravadas, conquistadas em nome da fé, da civilização e, porque não, de muita pouca-vergonha. Outros, de forma diferente, mais agressivos e aguerridos, mais preocupados com o cofre e menos ainda, do que nós, com as gentes, nem sabemos se terão tratado da memória. Talvez não. A soberba da grande potência inibe certamente essa preocupação. Coisas menores… foram-se dessas terras mais cedo, compreendendo o processo evolutivo da história mas sempre foram ficando ou regressaram, aos poucos, de forma diferente para um neocolonialismo aceite ou consentido...

Nós nem por isso… temos regressos de afectos e parcerias. Sem querer desviamo-nos.

Devemos debater, tentar compreender o fim do Império. Fundamentalmente é isso que aqui nos interessa. Talvez tenha um certo interesse. Talvez evite o avolumar de certas tensões, incompreensões, só fruto da falta da busca do consenso – debatido e aceite.

Não para justificar uma qualquer verdade histórica. Trabalho para Historiadores. Não. Procuremos somente gerar consensos e ao tratarmos dessa Memória(s), da nossa memória, sintamos orgulho de nós como Povo.

Não sintamos qualquer vergonha como antigos combatentes em guerra de uma dúzia de anos. Porquê? Por alguns excessos? Mas guerra é guerra e existem sempre excessos, de ambos os lados. Um ataque a uma povoação com morte de civis versus uma emboscada, tipo Quirafo, feita pelo outro contendor? Diferenças?! Quantas gentes de lá, fulas, mandingas, balantas…foram por nós salvas. Quantos os que, lutando ao nosso lado, sofreram mais tarde, após a independência, fortes represálias.

Ouvimos há dias o relato de um Militar que prefere salvar soldados e populações. Como classificar? Como compreender o desejo dos seus compatriotas, Libertadores, prontos a tudo arrasar… guerra é guerra e assim se justifica….

2 – Ainda é cedo para falar do recente Simpósio de Guileje pois aos poucos ainda se juntam elementos. Certo é que se abriu uma porta de futuro. Não acrescentamos mais nada… Esperamos.

3 – Continuemos a pensar em voz alta nuns pontos mais… Talvez um intervalo seja preferível… Isso, façamos um intervalo, um voto e um desejo:

- Que os Guineenses encontrem a Paz e o Desenvolvimento que ambicionam e merecem;

- Que nós, antigos combatentes, não nos sintamos – menos ainda admitamos – que alguns tenham a veleidade de nos querer colocar no lado errado da história. Combatemos envergando a farda do Nosso País.

Parece haver incongruência. Não!

Reflictamos lentamente, de quando em vez no intervalo das estórias... Talvez assim se encontrem muitas respostas a tanta questão levantada… E aceitemos a diversidade de opiniões, fazendo a crítica que julguemos estar correcta…

(continua... um dia, melhor, numa noite de insónia...)

_________

Nota dos editores:

(1) Vd. último poste desta série:

14 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2758: Blogoterapia (47): Pensar em voz alta... O tédio que às vezes nos invade (Torcato Mendonça / Carlos Vinhal / Virgínio Briote)

O Torcato deixou lá o seguinte comentário:

Abri e oh...o Narciso, o grego da mitologia, como aqui se lastimava não sei quem. Sou de facto eu, não um jovem turco, menos narciso mas sim um parolo em Fá, no início de comissão, roncos, peles e artefactos junto a abrigo de adorno. O que tenho ao pescoço acompanha-me há 40 anos(agora no saco). Os abrigos de Mansambo era á prova de canhão. Caí da cama mas tudo bem (ver o Mosquiteiro-salvo erro). O Torcato anda triste com a morte do José. Mas o SILVA deve chegar amanhã a Fá...já saiu de Bissau. Tudo para dizer:Isto eram conversas demasiado intimistas e não esperava a publicação. Saiu. Os Editores são soberanos e eu, como facilmente se constata, continuo apanhado. AB doTM

Guiné 63/74 - P2767: A guerra estava militarmente perdida ? (1): Sobre este tema o António Graça de Abreu pode falar de cátedra (Vitor Junqueira)



Pombal > 28 de Abril de 2007 > 2º encontro da tertúlia Luís Graça & Camaradas da Guiné > Restaurante O Manjar do Marquês. Antes do almoço, o Vitor Junqueiro, na sua qualidade de nosso anfitrião e organizador do encontro, fez o discurso de boas vindas.

Num gesto de grande simbolismo e beleza, que nos tocou a todos, fez-se rodear e acompanhar pela sua família: três lindas filhas, duas encantadoras netas, um genro e o namorado de uma das filhas, qualquer deles simpatiquíssimos e amáveis...

A seguir, o Vitor - verdadeira caixinha de surpresas - fez questão de ser condecorado por dois dos seus camaradas de Guiné: o A. Marques Lopes, o mais graduado de todos nós, coronel DFA na reforma, e que foi gravemente ferido em combate na zona leste; e eu, próprio, Luís Graça, na qualidade de fundador e editor do blogue...

A condecoração, sobre a qual ele foi lacónico, teria a ver com a sua brilhante folha de serviços como militar, ou seja, como oficial miliciano. Foi-lhe atribuído, segundo percebi, pelo Chefe do Estado Maior do Exército e era para lhe ser entregue no 10 de Junho de 1974, não fora o conflito com outra data, o 25 de Abril de 1974, que veio mudar o curso dos acontecimentos.

A cerimónia acabou por ser adiada trinta e três anos... Simbolicamente, a medalha por bons serviços foi-lhe entregue no dia 28 de Abril de 2007, por dois camaradas seus, na sua terra, na terra que ele muito ama... Um gesto bonito num dia bonito, em que realizámos, mais uma vez, o sentido da palavra camarada... Estes fotos, mandou-mas o Xico Allen. Estavam à espera de uma boa oportunidade para aparecerem no blogue (que nem sempre é do nosso contentamento)... Vitor, sei que as vai pôr no teu álbum, com muito orgulho. Obrigado, Xico, pelo teu gesto.

Fotos: © Xico Allen (2007). Direitos reservados.



1. Do nosso querido amigo e camarada, ressuscitado, Vitor Junqueira (1), que na triagem de Manchester (não é censura, não senhor!) que os editores fazem (ou têm que fazer, coitados) tem direito a pulseira de cor vermelha (ou carmesim, para quem não gosta do vermelho) (1):

Assunto - Peço a palavra!

Um amigo, até há pouco residente na cidade de Campinas, situada uma centena de quilómetros de S. Paulo - Brasil, estava a ser assaltado pela enésima vez pelo mesmo bandido. Enquanto o larápio lhe esvaziava a caixa registadora da pequena padaria familiar que geria encostando-lhe um .38 à têmpora, arriscou como quem quer fazer conversa ou, sabe-se lá, amizade:
- Oi cara, você não acha este seu ofício um pouco perigoso, não? Um dia destes, outro cara que nem você ou a polícia, podem lhe arrefecer o céu de sua boca, né ...?
- Ah, mas eu não tenho medo, não. Isso é p'ra você, que tem casa, dinheiro, uma família ... Eu não tenho nada a perder, vou ter medo de quê?

Liga-me, a este gatuno, um inexplicável sentimento de fraternidade. Também eu, de um certo ponto de vista, já nada tenho a perder. A não ser a honra e dignidade que, nos dias de hoje, se estão afundando mais rapidamente do que o dólar. E, se por um lado, a Pátria nada me deve como tenho afirmado repetidamente, também é certo que nunca mamei nas tetas da república, desta ou da velha porca. Cargos, honrarias, poleiro, visibilidade, pilim da nossa saca, foram coisas que rejeitei, como sempre o fizeram e disso estou convicto, a maioria dos camaradas que participam neste Blogue. Sinto-me por isso perfeitamente à vontade para discordar de certos pontos de vista aqui espelhados e manifestar essa minha discordância, sem receio de sofrer consequências pela eventual ofensa ao politicamento correcto e/ou oportuno, veiculado pela corrente situacionista (desculpem-me pelos chavões).

Hoje, parafraseando Lobo Antunes - as boas ideias não fazem os bons escritores - coisa a que não aspiro mas que não deixa de ser uma bela carapuça, e para não me estender ao comprido, vou com vossa licença abrir o post nº 2760 de A. G. Abreu (3).

Leio:

"Meu caro Luís,
Enviei-te o mail abaixo, em Dezembro. Podias ter aproveitado qualquer coisa para o Blogue".

E a seguir, aflora três temas que no meu entender deveriam ter sido aproveitados para o Blogue.

1 - A sua perspectiva de que a guerra não estava militarmente perdida;
2 - O seu conhecimentode que a Força Aérea continuou a desempenhar as suas missões após o abate de cinco aviões pelos mísseis do PAIGC;
3 - A sua constatação de que de facto as FA de Portugal controlavam a maioria das cidades , vilas e aldeias.

Nas palavras do camarada Abreu, vislumbro alguma mágoa. Mas, se ele não quis realmente expressá-la, exprimo-a eu. Mágoa, tristeza, revolta, impotência ... Porque a guerra do Graça Abreu, foi a minha guerra. Revejo-me em cada linha, em cada palavra do seu livro Diário da Guiné. Seria exactamente aquele livro que eu gostaria de ter escrito, se tivesse arte para tal. Li-o numa noite e reli-o. Fiz sublinhados e anotações pessoais, comparei-o com outras prosas que fizeram o seu caminho e se enraizaram nos diversos corpos sociais da república, intocáveis, quantas vezes complexadas e revanchistas.

Quero acreditar que no Blogue não existe censura, mas a desconfiança começa minar-me a memória, a riscar-me o orgulho de ex-combatente. Já não sei se hei-de acreditar em mim próprio ou no que aparece escarrapachado na abundante produção literária (e televisiva) e naqueles que recentemente se atiraram a este filão como gato a bofe (vd. Tempo de Cicatrizes, in Ípsilon de O Público de 4/4/2008).

Citando de novo Lobo Antunes, o António, in Alentejo Ilustrado de 14/12/2007: "Publica-se o lixo, porque o lixo dá dinheiro. E as pessoas compram e dizem: é para me distrair ... A literatura para mim, enquanto leitor, é um acto de conhecimento e aprendizagem ..." Para mim , também! Por isso, não alinho com os Grossistas de Palavras a que se refere Alice Vieira no seu artigo publicado no JN do passado domingo 13/4.

Ora, o Graça Abreu não é nenhum Grossista de Palavras e as teses (factos) que descreve no seu Diário da Guiné, porque, ao arrepio das correntes dominantes, são no mínimo incomodativas, quiçá (!) irritantes para muito boa gente.

Merecem contudo ser escrutinadas por todos quantos se interessam por este assunto e, acima de tudo, pela verdade. E existem duas fortes razões para isso:

1ª - Os dados biográficos deste Autor, revelam-nos que política e filosoficamente ele se encontrava nos antípodas do pragmatismo ou realpolitik do Estado Novo, relativamente ao envolvimento do nosso país numa guerra em África.

2ª - Pelas funções que desempenhou, nenhum outro Blogger que eu conheça, esteve tão perto dos centros de informação, planeamento e decisão, naquilo que à actividade operacional concerne, em tão vasta área do território da Guiné.

Entendo assim, que lhe deve ser atribuído todo o tempo de antena de que necessite para esclarecer aqueles que querem ser esclarecidos. Para que a história que os nossos netos hão-de ler, não seja escrita sempre pelos mesmos.

Tenho dito, por hoje!

Com um abraço à Tertúlia, peço publicação urgente.

Vitor Junqueira
2. Comentário de L.G.:
Meu caro Vitor: Um pedido teu é uma ordem. Já fazes parte do conselho dos homens grandes, sábios, deste blogue (Se ainda não existe essa figura, vamos criá-la no nosso próximo encontro, em Monte Real...), com liberdade de circulação pelo nosso banco de urgência... Estás isento de passar pela triagem de Manchester, é um privilégio teu...
Eu próprio me apercebi de que, mais uma vez, houve aqui um défice de comunicação. O eterno problema humano da (in)comunicação e da atribuição de sentido a pequenas coisas que, de per si, não têm sentido... O António Graça de Abreu foi apenas vítima - desta vez foi ele - da nossa incapacidade (humana, física, mental, organizacional, real) de dar resposta, em tempo útil, ao enorme fluxo de correspondência que nos chega... À nossa escala, modesta, somos vítimas do nosso pequeno sucesso... Somos amadores, temos as nossas vidas, pessoais e profissionais, somos apenas três (LG, CV, VB...), cada um com dois braços e uma cabeça, com computadores que também bloqueiam às vezes, e ainda por cima, vivendo em sítios separados, um no norte, dois no sul...
Acredita que nunca me/nos passou pela cabeça discriminar ninguém, muito menos pelas suas ideias ou opiniões. Faço gala em proclamar e assegurar (ou tentar assegurar) o saudável pluralismo político-ideológico - à falta de melhor palavrão - no nosso blogue. Não tenho, nem quero ter, nenhuma visão do mundo, da história, da sociedade, a impôr aos outros, e muito menos aos amigos e camaradas da Guiné... É contra o meu feitio e a minha formação de sociólogo. Posso é ser acusado, mais por omissões do que por acções, de não saber manter o difícil equilíbrio entre tendências, grupos, sensibilidades... O mesmo se passa com os meus/nossos co-editores, que eu convidei pessoalmente, baseado apenas no conhecimento pessoal das suas competências e disponibilidade para o cargo... Repara que nem sequer são do meu tempo de Guiné... Não lhes pedi sequer para me responderem a nenhum teste de selecção... Nem muito menos andei a vasculhar o seu Curriculum Vitae...

Bom, vejo que temos que criar aqui, também, a figura do provedor do blogue... E faço uma sugestão à Tabanca Grande: que o primeiro provedor sejas tu ! Não como castigo, mas como prémio... Por mérito, pela maneira desassombrada com que defendes os teus pontos de vista e nos alertas contra o risco do politicamente correcto e do socialmente desejável...

Meu querido camarada e amigo Vitor: Tens direito a ter dúvidas e a expressá-las. Tens direito a discordar e expressar, no teu/nosso blogue, com maior ou menor elegância, as tuas divergências de pontos de vista. Mais: tens direito a expressar a tua mágoa, revolta, frustração, impotência, quando for caso disso... Nada mudou desde o teu black out informático. Crescemos, acho que estamos mais maduros como grupo, temos sabido co-existir e conviver com as nossas diferenças e semelhanças ...

Quanto a mim, que raramente me queixo, em público, nesta nossa caserna virtual, devo dizer-te que só não aprecio as insinuações, os juízos de intenção, as bocas, as generalizações abusivas, os juízos de valor, os preconceitos sumários... Nem sempre publico/publicamos tudo o que chega à minha/nossa caixa de correio... Não é o caso do António Graça de Abreu, que é de resto um especialista em literatura chinesa, um apaixonado sinófilo, um consagrado tradudor, um notável poeta e escritor, um intelectual e um camara que prestigia o nosso blogue, a nossa tertúlia... Mas acredita que não há (nem poderá haver) censura: limitamo-nos a respeitar e a fazer respeitar a nossa linha editorial, ou melhor a nossa ética bloguística....

Estas e outras questões têm sido cautelosa, discreta, sabiamente discutidas entre nós os três, via email (LG, CV, VB)... Ainda há dias escrevia eu aos meus queridos co-editores, o Carlos Vinhal e o Virgínio Briote, que têm dado provas de uma infinita paciência, generosidade, sabedoria, discernimento, dedicação e lealdade, para além de toda a amizade e camaradagem com que me distinguem:

"O blogue não é nosso, é de camaradas e amigos da Guiné que confiam em nós, por que somos pessoas honestas, consistentes, éticas... Isto é, temos valores, temos um código de ética, temos uma linha editorial... E mais: somos (ou queremos ser através da nossa prática) diferentes de muitos blogues que por aí há, na Net, de gente ressaibiada, fodida, azeda, que está mal com a vida e com o mundo... Não nos furtamos ao diálogo, à reflexão, ao debate de ideias, mas não procuramos o sangue, a polémica, o conflito"...

Acredita, Vitor, que nem sempre é fácil gerir alguns conflitos que nestes três anos de existência do blogue surgiram. Contam-se pelos dedos. Mas aconteceram. E num ou noutro caso eu não consegui resolvê-los da maneira que eu gosto (ou que pelo menos ensino aos meus alunos), que é quando nenhuma das partes, envolvidas numa negociação, se sentem no final perdedoras... Defendo que, na maior parte das situações, é possível ganharmos todos... Nas equipas, nos grupos, nas organizações...

Num ou noutro caso, eu não tive a inteligência emocional suficiente, o talento, a paciência, o conhecimento, a competência, para impedir que dois ou três camaradas se tenham ido embora da nossa Tabanca Grande... Devo dizer que não sou favor do unanimismo, mas sim do consenso. Consenso não é unanimismo. Consenso é discutirmos e estarmos de acordo sobre o essencial. É trabalharmos e cooperarmos com base no que nos une, sem descurar, escamotear, ignorar ou desprezar as nossas reais diferenças. Quanto ao resto, todos temos o direito de cultivar a diferença. Muitas vezes é apenas uma questão de estilo...

O António Graça de Abreu não é um exemplo de assiduidade, mas ele sabe que a nossa Tabanca Grande não tem portas nem janelas, que ele pode entrar e sair sempre que quiser. Aguardo, portanto, o texto que ele me/nos prometeu, e em que ele poderá desenvolver o seu pensamento sobre a nossa honra militar. É um debate em que, pessoalmente, não entrarei. Não me interessa (nem sou competente) em discutir um questão que - salvo o devido respeito a quem pensa doutro modo - eu considero bizantina: se a guerra estava ou não estava perdida militarmente, do nosso lado...
Só falo (ou só gosto de falar) do que vivi, vi, observei, experimentei, estudei, investigei... Em 1973/74 eu não estava na Guiné... Não quer dizer que eu não aprecie o ponto de vista dos que estavam lá. Como o António Graça de Abreu. Ele, sem dúvida, pode falar de cátedra sobre este tema.
Este comentário já vai demasiado longo. Espero poder abraçar-te em Monte Real. Beijinhos às tuas meninas. Teu camarada, Luís.
___________

Notas de L.G.:

(1) Vd. poste de 11 de Abril de 2008 >
Guiné 63/74 - P2750: Ói pessoal ou o regresso do filho pródigo (Vitor Junqueira/Carlos Vinhal)

(2) Escrevi há tempos um poema - um draft de poema, se quiserem! - sobre o sistema de triagem de Manchester, depois de uma noite no hospital, com a minha mãe, de 86 anos, que já tem sinais da doença de Parkinson... O Vitor, que é médico, conhece bem o que é o sistema... Outros amigos e camaradas que me estão a ler agora, poderão ter curiosidade em saber do que é que se fala...

Vd. poste de Domingo, Fevereiro 10, 2008 >
Blogantologia(s) II - (64): A triagem de Manchester ou o paciente português




(...) Há um português emergente
em cada dez.
Vermelho.
Doente. Paciente. Dormente.
Pouco ou nada eloquente.
Diz o sistema de triagem de Manchester.
Há um português urgente
que vem na ambulância da emergência pré-hospitalar.
De um triste lugar ao sul.
Há um português laranja,
que fica em segundo lugar.
O resto não conta,
são amarelos,
fura-greves,
racha-sindicalistas,
proletas,
marretas,
hipocondríacos,
queixinhas,
maus contribuintes,
cidadãos de segunda,
gente que não presta,
gente de baba e ranho,
pouca honesta,
que fuma e que bebe e que come,
e não ouve o Pádua
a dizer que no andar é que está o ganho (...)


(3) Vd. poste de 14 de Abril de 2008 >
Guiné 63/74 - P2760: Notas de leitura (8): Guerra, Paz e Fuzilamentos dos Guerreiros... ou a guerra que não estava perdida (A.Graça de Abreu)
tertúlia, pluralismo

quarta-feira, 16 de abril de 2008

Guiné 63/74 - P2766: Álbum das Glórias (42): As melhores ostras de Bissau, em O Arauto, de 27 de Julho de 1967 (Benito Neves, CCAV 1484)

























Guiné > Bissau > O Arauto, 27 de Julho de 1967 > Anúncios de duas casas especializadas em ostras: Casa Afonso, no Chão de Papel; e o Miramar, que vendia uma travessa gigante de ostras (da rocha!) por 20 pesos...

Guiné > Bissau > Cabeçalho de O Arauto, Diário da Guiné Portuguesa. Ano XXV - Nº 6242. Preço: 1$00. Director e editor: José Maria da Cruz. Quinta-feira, 27 de Julho de 1967
Guiné > Bissau > O Arauto, de 27 de Julho de 1967. Amostra da primeira página:
Crónica internacional – A sentença

No caso do Congo há em verdade dois casos: o do Congo propriamente dito: - isto é: da anarquia endémica, iniciada com a independência, naquele alvoraçdo 30 de Juno de 1960, em que faltaram ao respeito ao Rei dos belgas, que quisera assistir ao acto, para dar à independência toda a solenidade (...). (


U Thant e a África do Sul

Lusaka, 26 – Numa mensagem dirigida à conferência sobre a questão da separação racial e o colonialismo, que se está a realizar numa cidade da Zâmbia, o secretário-geral das Nações Unidas, U Thant, declarou que os esforços realizados para se conseguir a auto-determinação da população sul-africana, encontram uma grande resistência.

Declara igualmente, na mensagem, que a atitude da minoria branca endureceu consideravelmente – (E).

O problema racial dos Estados Unidos

Washington, 26 – O presidente norte-americano, Lydon Johnson, determiniou ontem a intervenção de cinco mil paraquedistas para combater os distúrbios raciais na cidade de Detroit (…).

África do Sul: 54 mineiros mortos

Joanesburgo, 26 – Um desmoronamento ocorrido na mais rica mina de ouro do Mundo, causou a morte de, pelo menos, 54 trabalhadores e ferimentos em mais de 49 (…).

Em luta contra o terrorismo: Boletim Inforfmativo das Forças Armadas da Guiné
Período de 17 a 23 de Julho de 1967


1- No período actual, o inimigo intensificiou as suas acções de intimidação e represália sobre as populações (…)



Guiné > Bissau > O Arauto, de 27 de Julho de 1967 > Notícia: "A Companhia de Cavalaria de Catió termina a sua missão de soberania nesta Província"... A notícia ta não refere o número da unidade (o que estava conforme as normas de segurança militar). Diz apenas que era comandada pelo sr. Capitão Rui Manuel Soares Pessoa de Amorim, que esteve mais de um ano em Catió e que cumpriu "com exemplar dignidade, heroísmo e espírito de sacrifício a sua sagrada missão, arrecadando resultados francamente positivos no campo militar"...

À despedida, houve jantar (melhorado ?), no refeitório do Batalhão local, que serviu para confraternização entre todos os militares do Quartel de Catió, e as autoridades civis e militares. "Aos brindes, falaram o comandante do Batalhão de Catió, o Administrador do Concelho, [o ou um ?] agente da Pide e ainda um representante da Milícia, que puseram em destaque as qualidades reveladas pela Companhia e a simpatia que goza em todos os sectores de actividade do concelho" (...).

Fotos: ©
Benito Neves (2008). Direitos reservados. (Legendas de L.G.)

1. Mensagem do Benito Neves (1), de 26 de Fevereiro último:


Uma saudação muito especial ao editor, aos co-editores e a toda a tabanca.

Alguém se lembra deste jornal? Certamente que não.

Era um diário que então se publicava na Guiné e que, por mero acaso, comprei momentos antes de entrar para o Uíge, no dia 27/07/67, dia em que embarquei de regresso à Metrópole.

Já no barco, ao folhear o jornal, fui surpreeendido com a notícia publicada na página 4, sobre o fim da comissão de serviço da CCAV 1484, a que eu próprio pertencia. E bem ao lado desta notícia, cá estão elas, as ostras, publicitadas :

"Ostras (da Rocha)/ Exclusivo/ Super qualidade, paladar oceânico, limpas, sem lodo./ Abertas à pressão /Travessa Gigante 20$00 /Todos os dias no Miramar" ....e também na Casa Afonso.

À distância de 40 e tal anos, naturalmente, ainda ninguém as esqueceu e o blogue, hoje, voltou a servi-las ao Hugo e a todos nós (2).

Pois bem, não sei se ainda existem a Casa Afonso e o Miramar mas se existirem, a quantos por lá passarem, provem as ostras que foram publicitadas há 40 anos.

Um abraço

B Neves

2. Comentário de L.G.: Obrigado, Benito, pela tua mensagem com a tua valiosa sugestão que eu ainda fui a tempo de ler, antes de partir para Bisssau, em 29 de Fevereiro. Apreciei também, e muito em especial, os recortes do jornal... De qualquer modo, de ostras, só comi uma colher de sopa de ostras (deliciosa, aliás), na casa do Pepito ou de um dos seus amigos e vizinhos (já não sei em qual...). Em Bissau, mal tive tempo de visitar a baixa, a Amura, o cais do Pijiguiti... O Carlos Silva disse-me que agora as ostras comem-se em Quinhamel. Acredito que as ostras da Guiné continuem a ser deliciosas como há quarenta anos. Não me parece é que tenham hoje o mesmo sabor para quem, como eu ou tu, vínhamos do mato, do Vietname, desenfiados, uns dias, até Bissau, oxigenar a mona... Não se pode regressar ao passado, em matéria de sabores, odores, sensações, emoções, cheiros, ruídos, sentimentos, estados de alma... Enfim, é apenas minha experiência pessoal, a minha percepção... LG

__________

Notas de L.G.:

(1) Ex-Furriel Mil Atirador de Cavalaria, Companhia de Cavalaria 1484, Guiné 1965/67 (Nhacra e intervenção ao Sector de Catió de 8/6/66 a finais de Julho/67). Mora em Abrantes.

Vd. postes de:

18 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1673: O blogue do nosso contentamento (Benito Neves, CCAV 1484, Nhacra e Catió, 1965/67)

19 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2365: O Cap Cav Rui Manuel Soares Pessoa de Amorim foi o único comandante da CCAV 1484 (Benito Neves)

(2) Vd. postes de:

25 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2583: Álbum das Glórias (41): As ostras das esplanadas de Bissau ... ou Quem não arrisca, não petisca ? (Albano Costa / Luís Graça)

6 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2509: Estórias de Bissau (15): Na esplanada do Pelicano, a ouvir embrulhar lá longe (Hélder Sousa)

Guiné 63/74 - P2765: Convite (4): Lançamento do livro Marechal Costa Gomes no Centro da Tempestade (Esfera dos Livros, Lisboa)



1. A Esfera dos Livros convida todos os membros da nossa Tertúlia ou Tabanca Grande, bem como os demais leitores e visitantes do nosso blogue, para a sessão de lançamento do livro de Luís Nuno Rodrigues, Marechal Costa Gomes no Centro da Tempestade. A apresentação estará a cargo dso antigo Presidente da República Dr. Jorge Sampaio. A sessão é na Sexta-Feira, às 18h30, no Fórum da Associação 25 de Abril, no Bairro Alto (Rua da Misericórdia, 95, Lisboa).

Luís Nuno Rodrigues é Doutor em História Americana pela Universidade do Wisconsin (EUA) e em História Moderna e Contemporânea pelo Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE). Actualmente é Professor Auxiliar com Agregação no Departamento de História do ISCTE.


2. Refência e sinopese da obra (da responsabilidade da editora):

Título: MARECHAL COSTA GOMES
Subtítulo: No Centro da Tempestade
Autor: LUÍS NUNO RODRIGUES
Colecção: História Biográfica
P.V.P: 27 €
Preço S / IVA: 25,71 €
Cod.Interno: 02009
ISBN: 978-989-626-103-0
Páginas: 408 + 24 extratextos
Formato: 16 X 23,5
Encadernação: Cartonado
Data de Distribuição: Março de 2008


O Marechal Costa Gomes geriu uma revolução sem nunca ser um revolucionário. Foi hábil na política sem ser um político. Foi um militar que nunca deixou de pensar como um civil. Exerceu altos cargos nos regimes de Oliveira Salazar e Marcelo Caetano, mas por duas vezes foi demitido pelos chefes do governo.

Foi dos primeiros militares a reconhecer a impossibilidade de uma solução exclusivamente militar em África mas, também, o general que maior número de tropas comandou em Moçambique e Angola. Estas e muitas outras aparentes contradições marcaram o percurso político e militar de Francisco Costa Gomes. Um homem que esteve sempre no centro das tempestades que atravessou ao longo da sua vida. Um jogador frio e calculista ou uma personalidade indecisa e flutuante?

Na biografia Marechal Costa Gomes - No Centro da Tempestade, ficamos a conhecer o jovem aluno do Colégio Militar, o militar preferido nas estruturas da NATO, aquele que Marcelo Caetano escolheu para chefiar as Forças Armadas e que os capitães de Abril escolheram para líder do novo regime. O homem que substituiu António de Spínola na cadeira da presidência e que nos meses seguintes serviu como verdadeiro centro de moderação e de mediação entre as diversas forças que disputaram o controlo político e militar do país.

O autor, Luís Nuno Rodrigues, traça o retrato desta personalidade controversa e enigmática da História Portuguesa Contemporânea. Costa Gomes desempenhou um papel fulcral nos anos finais da Ditadura e no chamado Processo Revolucionário em Curso, ou PREC, que se seguiu ao 25 de Abril.

O homem que, numa conjuntura altamente delicada, conseguiu evitar o perigo da guerra
civil e contribuiu para a instauração de um regime democrático em Portugal.

Costa Gomes substituiu António de Spínola na Presidência da República.

Da mesma colecção: 25 de Abril - Mitos de uma Revolução.


3. Contacto da Esfera dos Livros:

Agradecemos, desde já, o envio deste convite a todos os vossos associados.

Com os melhores cumprimentos,

Margarida Damião

A Esfera dos Livros
Rua Garrett, nº 19 - 2º A
1200-203 Lisboa
Tel. 21 340 40 64
Telm. 96 344 19 79
Fax. 21 340 40 69

Guiné 63/74 - P2764: Simpósio Internacional de Guileje: Comunicação de Pedro Lauret: O papel da Marinha em Guidaje e Gadamael, Maio-Junho de 1973

Guiné-Bissau > Região de Tombali > Cacine > 2 de Março de 2008 > Visita de um grupo de participantes do Simpósio Internacional de Guileje, depois de um almoço em Cananime, na margem direita do Rio Cacine. É hoje uma povoação com evidentes sinais de abandono e decadência.

Guiné-Bissau > Bissau > Hotel Azalai > 7 de Março de 2008 > Simpósio Internacional de Guileje > O último dia da nossa estadia > Três companheiros de uma jornada inesquecível: O Capitão de Mar e Guerra, na situação de reforma, Pedro Lauret, Iva Cabral, historiadora, primeira filha de Amílcar Cabral e da portuguesa Maria Helena Ataíde Vilhena, e o Cor Comando, na situação de reforma, Carlos Matos Gomes (também conhecido e celebrado autor de obras de ficção sobre a guerra colonial e as vivências de África, sob o pseudónimo de Carlos Vale Ferraz).

Fotos e legendas: © Luís Graça (2008). Direitos reservados.

Guiné > Região do Cacheu > Rio Cacheu > A LFG Orion a navegar no Cacheu em Janeiro de 1967.

Foto: © Lema Santos (2006). Direitos reservados.

"A revolta do navio Orion, da Marinha portuguesa, no dia 2 de Junho de 1973 foi decisiva para salvar a vida de centenas de soldados e população que fugiram dos bombardeamentos do PAIGC na batalha de Gadamael. Este episódio de desobediência a ordens de Spínola, desconhecido até hoje, é indissociável da resistência travada por meia dúzia de soldados no interior do aquartelamento de Gadamael. As suas histórias são aqui contadas por alguns dos seus protagonistas, como o comandante da Marinha Pedro Lauret, o coronel dos comandos Manuel Ferreira da Silva e o grumete Ulisses Faria Pereira. Eles são, com outros, os heróis desconhecidos de Gadamael". (In: "A nave dos feridos, mortos, desaparecidos e enlouquecidos. Uma investigação de Eduardo Dâmaso". Público, nº 5571, 26 de Junho de 2005).


1. Mensagem do Pedro Lauret (1), com data de 8 de Abril, respondendo ao meu pedido para publicar, no blogue, a sua comunicação ao Simpósio Internacionald e Guileje:


Caro Luís,

Tens toda a autorização para publicares a minha comunicação no Simpósio, que agradeço.

A gala da A25A [- Associação 25 de Abril ] foi espectacular muita emoção, muitas recordações… [Gala Vozes de Abril, no dia 4 de Abril de 2008, no Coliseu dos Recreios, em Lisboa]

Tenho acompanhado, [no nosso blogue,] as reportagens da Guiné, que estão excepcionais. É muito bom que um acontecimento histórico, como foi o Simpósio, esteja devidamente documentado e divulgado.(...)

Brevemente teremos que falar sobre o nosso site da Guerra Colonial, que penso que estará pronto no último trimestre deste ano.

Um abraço

Pedro Lauret


2. Comunicação do Capitão de Mar e Guerra, na situação de reforma, Pedro Lauret, no Simpósio Internacional de Guileje: Bissau, Hotel Palace, de 5 Março de 2008, Painel 2. Título da comunicação: A Marinha no Teatro de Operações da Guiné. Guileje Gadamael, Maio Junho de 1973, o papel da Marinha.



A Marinha no Teatro de Operações da Guiné. Guileje Gadamael, Maio-Junho de 1973, o papel da Marinha (2)

por Pedro Lauret (3) . Subtítulos de L.G.


(i) Imediato da LFG Orion, em fim de comissão: subordinando as suas convicções políticas à vida dos seus subordinados


Tentei até agora dar uma visão sintética da História da Marinha após a II Guerra Mundial, seu enquadramento político, e a realidade que emergiu do início da Guerra Colonial.

Sinteticamente também pretendi transmitir o que era a Marinha no teatro de operações da Guiné.

Para terminar vou abordar os acontecimentos ocorridos em Maio e Junho de 1973 em que participei. Será uma narrativa muito mais pessoal e opinativa, embora, obviamente baseado em factos reais por mim vividos.

Fui imediato do NRP Orion uma LFG, de Setembro de 1971 a Julho de 1973 (4), o meu navio esteve sempre operacional pelo que tive oportunidade de conhecer bem todos os rios com água suficiente para o meu navio passar.

Quando em 1971 cheguei a Bissau, jovem guarda-marinha de 22 anos, já tinha sobre a guerra uma visão clara da sua natureza, já tinha uma visão clara da natureza do regime ditatorial em que nascera e logicamente sabia que iria combater por uma causa que não considerava justa. Era uma situação difícil, que aceitei lucidamente com a noção das dificuldades que iria encontrar. Tinha também uma certeza: uma vez que optara por ir, a prontidão e operacionalidade do meu navio nunca poderia estar em causa. A vida dos meus subordinados e o meu compromisso com eles sobrepunham-se às minhas convicções.

Nas muitas milhas que naveguei tive oportunidade de desembarcar em muitos aquartelamentos do Exército, apreciei o modo de vida dos soldados, o seu dia-a-dia, as casernas, os abrigos. Vi jovens como eu, condenados a passar dois anos fora das suas terras, das suas famílias e amigos, vivendo dias de tensão e de perigo, mal comidos, mal fardados, mal armados. Vi muitas companhias comandadas por jovens capitães milicianos, com início de carreira interrompida, completamente desmotivados e incapazes de conduzir satisfatoriamente os 170 homens que comandavam. Aqueles homens, além do mais, estavam também mal comandados.

Quando à noite no meu navio, fundeado no Cumbijã, ou Cacine, atracado em Bigene ou em Binta ou em qualquer outro local, via e ouvia os rebentamentos, ora dos morteiros ou foguetões de 122, ora a resposta dos obuses do exército, era um espectáculo inesquecível de uma beleza cruel. Por detrás de cada um daqueles rebentamentos e clarões poderia naquele momento ter acabado de morrer ou ficar ferido algum ser humano.

Todas estas situações me levavam a pensar: que regime era aquele que durante tantos anos atirava gerações sucessivas de jovens para aquela situação, uma guerra votada ao insucesso e à derrota.

(ii) Gudaje, a ferro e fogo, e três aeronaves abatidas no dia 8 de Maio de 1973

Foi já em fim de comissão, no início de Maio de 1973, propriamente no dia 8, que estando atracado em Bigene logo pela manhã sinto em terra, onde estava aquartelado o Destacamento de Fuzileiros nº 8 (DFE 8), movimento fora do comum, indiciando que algo de grave se passava ou iria passar.

Guidaje fora atacada logo aos primeiros alvores com enorme intensidade tendo feito um elevado número de feridos. Um Dornier tinha levantado de Bissau e dirigia-se a Bigene para recolher o médico que aí se encontrava para, posteriormente, ir socorrer os feridos. Logo após ter levantado e a meio caminho de Guidaje foi abatido.

O DFE8 estava em preparativos para se deslocar para o local. O destacamento devia embarcar no meu navio e ser largado, por botes, junto à foz do pequeno Rio Jagali. Neste meio tempo começa um movimento de helicópteros como em 2 anos nunca vira. A princípio não me apercebi do que se passava, depois fui informado que uma companhia de Páras fora transportada de Bissau para Bigene para a partir daí seguir ao encontro do DFE 8 e ambos tentarem resgatar o que fosse possível.

Entretanto vindos de Bissau dois T6 foram bombardear a zona e um deles foi de imediato abatido.

Conseguimos desembarcar o DFE8 conforme previsto, que conseguiu chegar ao local onde os aviões se encontravam, sem incidentes. O mesmo não aconteceu à companhia de Páras que à saída de Bigene fora emboscada e tivera um morto.

Algumas horas depois reembarcámos os fuzileiros que só encontraram destroços carbonizados, e entre eles um pedaço do míssil que abatera o avião. Esse pedaço de míssil foi por nós trazido para Bissau, poucos dias depois. Serviu para confirmar, com certeza, que se tratava de um míssil Strella.

Viemos posteriormente a saber que, nesse mesmo dia, tinha levantado um outro Dornier rumo a Guidaje para socorrer os feridos da manhã, conseguira aterrar, mas ao levantar, após ter embarcado os feridos, desaparecera sendo dado por abatido.

Três aviões no mesmo dia foram abatidos, o que levou a Força Aérea a interromper as suas missões, só as retomando algum tempo depois com perfis de voo defensivo e uma eficácia global muito reduzida.

Esta situação de perda da superioridade total do ar, como sempre tivéramos, teve de imediato duas muito graves consequências:

- As evacuações de feridos por helicóptero não se faziam;
- Não havia apoio aéreo próximo que permitisse interromper ataques às nossas tropas.

Estas circunstâncias vão permitir ao PAIGC cortar a estrada de Binta a Guidaje e montar-lhe um cerco que, apesar de muitos esforços, só consegue ser totalmente levantado através da Operação Ametista Real que envolve a totalidade do Batalhão de Comandos Africanos.


(iii) 1 de Junho: no sul, no Rio Cumbijã, para embarcar uma companhia de páras em Cafine

Após alguns dias de estadia em Bissau para pequenas reparações e reabastecimento, sigo para o Rio Cumbijã, render a LFG que aí se encontrava em missão. Tínhamos como força, além da própria LFG, duas LDM e transportávamos 8 botes e respectivos motores com elementos da companhia de fuzileiros para o seu manuseamento e condução.

No dia 1 de Junho ao jantar sou alertado pela cabine de TSF que estava a chegar uma mensagem “O” – designativo para mensagem de muito elevado nível de precedência – dirigi-me à cabine e assisti ao final da decifração da mensagem.

O teor da mensagem era preocupante: Dirigir-se a Cafine na margem esquerda do Cumbijã e embarcar uma companhia de Páras que aí se encontrava estacionada e de imediato seguir para Cacine.

Só o facto de efectuar o embarque no navio àquela hora e naquelas circunstâncias denotava uma situação grave e urgente.

Demos ordem às 2 LDM para seguirem para Cacine pelo Canal do Melo o que abreviava em muito a viagem. Nós não podíamos seguir aquele itinerário devido ao nosso calado.

Conseguimos embarcar a companhia sem incidentes e dirigimo-nos para Cacine, onde chegámos aos primeiros alvores do dia seguinte. Aí, após termos desembarcado a companhia, entrou a bordo o Major pára-quedista Pessoa que nos informou:
- Que Guileje, após intensos bombardeamentos, fora evacuada e o contingente aí instalado seguiu para Gadamael;
- Que o Major Coutinho e Lima, comandante do COP, que tinha dado a ordem, seguira para Bissau sob prisão;
- Que Gadamael estava sob fogo intenso e a grande maioria dos militares tinha fugido para as margens do rio Cacine;
- Que o General Spínola tinha estado em Cacine e tinha dado ordem explícita para ninguém ir socorrer o pessoal que andava fugido nas margens do rio, apelidando-os de cobardes.

O Major Pessoa ainda nos informou que, se nós não fossemos recuperar o pessoal, ele próprio iria nem que fosse de canoa.

Pela minha cabeça, de imediato, passou a imagem dos generais que em Nuremberga justificaram as atrocidades que cometeram por terem recebido ordens para as executar. Sem obviamente querer comparar a gravidade relativa do caso, foi isto que pensei. Pensei que há ordens que não se cumprem, apesar de nós, militares, sermos formados para obedecer. A recusa ao cumprimento de tal ordem era uma exigência de honra, era uma exigência moral.

(iv) No Rio Cacine, recolhendo o pessoal fugido de Guileje e de Gamadael


O navio por sua inteira responsabilidade, e sem nada comunicar ao Comando da Defesa Marítima, decidiu de imediato ir recuperar o pessoal. Foram dadas indicações aos patrões das LDM para seguirem nas águas da Orion.

Passámos o rio Meldabon junto a uma marca radar (marca Lira), a qual já não era passada por uma LFG há muito, não se conhecendo a situação dos fundos.

Conseguimos seguir até ao rio Dideragabi, para montante era impossível navegar pois já não tínhamos fundo.

Foram colocados botes na água que passaram revista à margem esquerda do Cacine bem como as duas LDM. Foram recolhendo pessoal que traziam para bordo da Orion onde os feridos passaram a ser tratados, os mais ligeiros no convés, os mais graves foram para a coberta das praças. Foi fornecida alguma alimentação ao pessoal. Como já havia muito pessoal a bordo as LDM passaram a levar o pessoal para Cacine.

Já de noite a Orion dirigiu-se a Cacine, não podendo desembarcar os feridos mais graves pois estávamos em baixa-mar e a pista de lodo impedia-o.

Nesse dia a coberta das praças funcionou como navio hospital. O soro, compressas e outra material de primeiros socorros esgotaram. Foi pedido reabastecimento urgente a Bissau. Na manhã seguinte o material chegou num pequeno avião da Marinha.

O ambiente na coberta das praças estava de tal forma carregado de vapores de éter, que, tendo entrado uma praça a fumar, provocou uma explosão que fez disparar os disjuntores dos geradores, colocando o navio, por breves momentos às escuras.

Não sei descrever a situação moral e psicológica daqueles homens, as palavras não eram muitas, só os seus olhares denunciavam, sem margem para dúvidas, os sofrimentos porque passaram.

Esta operação continuou nos dias seguintes, não sei quantos homens evacuamos naquele dia 2 de Junho, mas certamente entre militares e população ultrapassou o milhar (confirmei na visita a Guileje que da população eram mais de 600 pessoas).

Continuámos nos dias seguintes a dar apoio aos pára-quedistas que entretanto tinham desembarcado em Gadamael.

Após alguns dias fomos rendidos e regressámos a Bissau. A bordo, deixadas de lado, algumas dezenas de G3 abandonadas pelos soldados. O princípio de nunca abandonar a própria arma já não tinha qualquer sentido.

(v) A controversa ordem de Spínola, ditada pelo desnorte militar, prenúncio do 25 de Abril
Quero concluir com duas notas.

A ordem do general Spínola não corresponde, em minha opinião a uma intenção sincera, revela antes um desnorte pela situação militar que então se vivia e pela incapacidade de a debelar.

Revela ainda que uma derrota militar na Guiné se podia aproximar rapidamente, com consequências, em termos de sacrifícios humanos, imprevisíveis, e que o Estado Novo se preparava, como fez na Índia para culpar os militares pela derrota, lavando com sangue a sua i ncapacidade para encontrar soluções políticas para os conflitos.

O 25 de Abril estava em marcha.

______________
Notas de L.G.:

(1) Vd. poste anterior: 13 de Março de 2008 >
Guiné 63/74 - P2629: Fórum Guileje (3): A Marinha esteve como peixe dentro de água no CTIG, e teve um papel logístico fundamental (Pedro Lauret)

(2) Também está disponível, em formato.pdf, no blogue da A25A,
Avenida da Liberdade.

(3) No nosso blogue, também já está disponível a comunicação do Cor Art Ref Coutinho e Lima:

23 de Março de 2008 >
Guiné 63/74 - P2677: Simpósio Internacional de Guileje: Comunicação de Coutinho e Lima (1): Comandante do COP 5, com 3 comissões no CTIG

23 de Março de 2008 >
Guiné 63/74 - P2678: Simpósio Internacional de Guileje: Comunicação de Coutinho e Lima (2): A dolorosa decisão da retirada de Guileje

(4) Sobre o Pedro Lauret, vd os postes:

1 de Outubro de 2006 >
Guiné 63/74 - P1137: Do NRP Orion ao MFA: uma curta autobiografia (Pedro Lauret, capitão-de-mar-e-guerra)

Sobre o desempenho da LFG Oiron e outros navios da nossa Marinha no TO da Guiné, vd.:


21 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXIII: Apresenta-se o Imediato da NRP Orion (1966/68) e 1º tenente da reserva naval Lema Santos

5 de Maio de 2006 >
Guiné 63/74 - DCCXC: Os marinheiros e os seus navios (Lema Santos)

15 de Junho de 2006 >
Guiné 63/74 - P878: Antologia (42): Os heróis desconhecidos de Gadamael (Parte I)

15 de Junho de 2006 >
Guiné 63/74 - P879: Antologia (43): Os heróis desconhecidos de Gadamael (II Parte)

5 de Outubro de 2006 >
Guiné 63/74 - P1151: Resposta ao Manuel Rebocho: O papel do Orion na batalha de Guileje/Gadamael (Pedro Lauret)

31 de Outubro de 2006 >
Guiné 63/74 - P1231: Estórias avulsas (5): Rio Cacheu: uma mina aquática muito especial (Pedro Lauret)

7 de Março de 2007 >
Guiné 63/74 - P1571: A Operação Larga Agora, o Tancroal / Porto Batu e as cartas náuticas do Instituto Hidrográfico (Lema Santos)

18 de Março de 2008 >
Guiné 63/74 - P2659: Histórias da Marinha (1): Um ataque à LFG Lira em 1967, em Cadique, no Rio Cumbijã (Manuel Lema Santos)

27 de Janeiro de 2008 >
Guiné 63/74 - P2483: Estórias de Guileje (3): Devo a vida a um milícia que me salvou no Rio Cacine, quando fugia de Gadamael (ex-Fur Mil Art Paiva)

(...) "Por obra do acaso, deparei hoje com alguns blogues sobre os acontecimentos ocorridos em Guileje e Gadamael no período de 1972 a 1974 (2). Porque na oportunidade desempenhava funções de furriel miliciano afecto à Unidade de Artilharia localizada inicialmente em Guileje, e posteriormente retirada para Gadamael (após o abandono do primeiro daqueles aquartelamentos), tomei parte nos referidos acontecimentos.

(...) "Este pelotão de artilharia retirou na totalidade para Gadamael quando foi dada ordem de abandono do aquartelamento de Guileje. Para além dos graduados e oficial acima referidos, retiraram ainda os cabos e praças (estes últimos naturais da Guiné).

"Em Gadamael, a artilharia passou efectivamente muito maus bocados mas não ficou totalmente inoperacional, tanto quanto me recordo. O seu alferes teve aliás um comportamento de bravura pois foi ferido e continuou a desempenhar as sua funções, embora numa situação bastante precária.

(...) "Já agora poderia acrescentar que uma parte dos militares que se deslocaram para Gadamael, acabaram por abandonar também este aquartelamento, acompanhados de parte da população. Porém uma parte dos militares conseguiu aguentar este aquartelamento até à chegada de reforços que entretanto para ali foram enviados.

"Alguns oficiais, sargentos e praças (acompanhados de parte da população) - nos quais me incluía eu -, iniciaram uma retirada para Cacine que foi efectuada debaixo de fogo e que se processou em botes dos fuzileiros. Já agora poderei acrescentar que a evacuação não foi totalmente conseguida nesse dia porque entretanto as operações de resgate foram suspensas por ter começado a anoitecer.

(...) "Eu próprio iniciei a travessia antes de se ter completado o vazamento da maré e, porque não era um nadador exímio, e por outro lado com o peso das botas e da G3 e a força da corrente, tive que a meio da travessia me desembaraçar da minha arma (foi para o fundo do rio) para não morrer afogado. E fiquei a dever a minha vida a um milícia guineense que na outra margem do rio - e a partir do lodo onde se encontrava e para onde eu pretendia arrastar-me - me estendeu a coronha da sua arma a que eu, num esforço titânico, consegui agarrar-me. Fiquei a dever-lhe a minha vida e, no meio da confusão e do caos, sem saber a quem concretamente (ainda hoje...)" (...)

terça-feira, 15 de abril de 2008

Guiné 63/74 - P2763: Bibliografia de uma guerra (27): A geração do fim e a CCAÇ 555, Cabedu, Cantanhez, 1963/65, do Cap António Ritto (Miguel Ritto)

Quando os nossos filhos falam


1. Mensagem do Miguel Ritto, filho do então Capitão António Ritto que esteve a comandar a CCaç 555 em Cabedú, Cantanhez, entre 1963 e 1965.

12 de Janeiro de 2008

Caro Luís Graça,

Já há bastantes dias que não visito o seu blogue (caso não se recorde, eu sou o filho do Capitão António Ritto que foi um dos oficiais que escreveu no livro Infantaria - A Geração do Fim um capítulo sobre a sua experiência a comandar a CCaç 555 de 1963 a 1965 na mata do Cantanhez).


Tenho muito pouco tempo livre, e por isso em tempos pedi-lhe para me retirar da sua lista de difusão de e-mails. Solicito que assim continue, pois tenho muita dificuldade em dar vazão a toda a sobrecarga de trabalho que me leva frequentemente a ter que passar umas 3 horas à noite a tratar de assuntos de trabalho... porque as 8 ou 9 horas na empresa não são suficientes.

No final de Dezembro o meu pai foi a Oeiras a uma apresentação do livro Milicianos-Os peões das nicas que espero vir a ler em breve.

Também vi no seu blogue que o Beja Santos vai lançar um livro, e informei o meu pai.

Voltei a olhar para o seu blogue porque o meu pai me pediu para rever um excelente texto que convenceu o Sargento Norberto Gomes da Costa a escrever,  contando a sua experiência na CCaç 555 na Guiné entre 1963 e 1965. O texto foi escrito para divulgação no encontro anual dos elementos desta Companhia.


Não sei se posteriormente será proposto para publicação em livro, juntamente com crónicas de outros autores, mas se não for esse o caso, não hesitarei em sugerir que lho apresentem para incluir no blogue, se assim o entender.

Em questões de história, sempre adorei conhecer os relatos de ambos os lados...

Recordo-me de uma vez ter dito a um espanhol que na História apresentada em programas televisivos se constatava que eles foram impiedosos ao chacinarem as populações índias... e ele perguntou-me o que é que os Portugueses foram quando adaptaram os porões dos barcos para transportarem escravos africanos em camadas, acorrentados em viagens de 1 mês ou mais... morrendo uma elevadíssima percentagem, que era deixada nos porões acorrentada aos que sobreviviam...

Realmente temos tendência para afirmar que os Ingleses é que eram racistas, e que nós Portugueses nos demos sempre bem com todos os povos, mas provavelmente estamos iludidos pela desinformação lançada pelo Estado Novo.

Provavelmente o que nós tínhamos era uma percentagem muito maior de analfabetos, e de situações de extrema pobreza, e esses integraram-se bem com as populações indígenas, fosse na Índia, em Macau, ou em África...

Não precisávamos de ter autocarros para brancos e para negros em separado como na África do Sul... Bastava termos comboios com carruagens de 1ª, de 2ª e de 3ª classe.

Vivi em Moçambique de 1967 a 1969 (quando tinha 5 a 7 anos) durante uma comissão do meu pai ainda como capitão (em Marrupa, para os lados de Moeda, e no Fingoé, entre Tete e Cabora Bassa).

Só fomos à civilização (Tete, Nampula, ou Beira) nas poucas férias do meu pai, e depois da longa viagem em coluna militar até Tete, penso que já se apanhava o comboio (ou então ainda tínhamos mais uma jornada de autocarro)... Ainda me lembro que para irmos ao bar no wagon-lit tínhamos que atravessar muitas carruagens de 3ª...


Antes de abrirmos a porta eu enchia os pulmões e tentava correr até à porta do outro lado, sem ter que inspirar, porque o cheiro era terrível entre as galinhas, as pessoas com falta de sabão, e a má ventilação... Tenho a ideia de que haveriam carruagens de 2ª em que se encontravam negros mais abastados, e também brancos. Mas não me recordo de ver negros em 1ª classe (embora a memória me possa atraiçoar, pois já lá vão 40 anos e eu só tinha 6 anos).

É verdade que a média dos africanos continua a viver em más condições (ou piores) e agora, em vez de o rendimento ser canalizado para os cofres do país colonizador, passou em muitos casos a ir para o bolso dos governantes locais...


Mas também é um exagero dizer-se que os portugueses tratavam muito bem os africanos, porque qualquer família de classe média branca tinha lá em casa 3 ou 5 africanos a tratarem da lida da casa... Também há muitos que acham que não éramos racistas porque até tinham um negro lá em casa a servir à mesa... mas esquecem-se de dizer que usava luvas brancas e uma farda branca...

Voltando à importância de ver a Guerra dos 2 lados, dei noutro dia com a seguinte publicação que também faz referência a várias outras publicações:

http://links.jstor.org/sici?sici=0899-3718(199807)62%3A3%3C571%3ATLWIGR%3E2.0.CO%3B2-G

Um abraço

Miguel
__________

Nota de vb: fixação e adaptação do texto da responsabilidade do editor.


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23 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1624: Bibliografia de uma guerra (17): A geração do fim ou a palavra a 21 oficiais de infantaria, de 1954/57 (Miguel Ritto)

Guiné 63/74 - P2762: PAIGC: Instrução, táctica e logística (11): Supintrep nº 32, Junho de 1971 (XI Parte): A máquina logística (A. Marques Lopes)

Guiné > Região, possivelmente do sul, controlada pelo PAIGC > Visita de uma delegação escandinava às regiões libertadas > Novembro de 1970 > Foto nº 14 > TRasnporte de sacos de arroz ... As autoridades militares portugueses subestimaram, inicialmente, o génio organizativo de Amílcar Cabral e dos demais dirigentes e militantes do PAIGC. Em 1971, num documento produzido pela inteligência militar do Estado-Maior de Spínola, reconhecia-se a real importância da logística do PAIGC, mesmo não tendo os meios (navais, aéreos e terrestres) das NT...

Guiné > Região do interior (possivelmente, no sul) controlada pelo PAIGC > Visita de uma delegação escandinva às regiões libertadas > Novembro de 1970 > Foto nº 19 > Uma pequena enfermaria ou hospital de campanha, com camas e lençóis brancos. Na foto, vê-se uma enfermeira.

Guiné > Região (no interior, possivelmente no sul) controlada pelo PAIGC > Visita de uma delegação escandinva às regiões libertadas > Novembro de 1970 > Foto nº 31 > A piroga era uma dos meios de transporte mais adequados à guerrilha, nomeadamente no apoio às colunas logísticas. Contrariamente à ideia que se fazia, na época, as colunas de reabastecimento do PAIGC eram compostas por cerca de 30 elementos civis. Julgo que por razões de segurança e dificuldades de recrutamento de carregadores. A estes elementos deveria acrescentar-se a escolta, presume-se.


Guiné > Região controlada pelo PAIGC > Novembro de 1970 > Foto nº23 > Uma consulta médica, ao ar livre. Em primeiro plano, um enfermeiro (presume-se) e a "farmácia ambulante".

Guiné -Conacri (?) > Base do PAIGC em Kandiafara ? > Visita de uma delegação escandinava às regiões libertadas > Novembro de 1970 > Foto nº 30 > Uma sala de esterilização de um hospital do PAIGC

Guiné > Região controlada pelo PAIGC, possivelmente no sul > Visita de uma delegação escandinava às regiões libertadas > Novembro de 1970 > Foto nº 25 > Progressão, na savana arbustiva, por meio do capim alto, de um grupo de guerrilheiros. Presume-se que as colunas logísticas do PAIGC tivessem segurança por parte da milícia ou do exército populares...


Guiné > Região controlada pelo PAIGC , possivelmente no sul > Visita de uma delegação escandinava às regiões libertadas > Novembro de 1970 > Foto nº 7 > Uma aldeia, possivelmente no Cantanhez (onde a tropa portuguesa não entrava desde 1966)


Guiné > Região controlada pelo PAIGC > Visita de uma delegação escandinava às regiões libertadas > Novembro de 1970 > Foto nº 29 > Aproximação de guerrilheiros a uma aldeia

Guiné > Possivelmente numa base do PAIGC, no sul, na região fronteiriça > Visita de uma delegação escandinava às regiões libertadas > Novembro de 1970 > Foto nº 28 > Transporte de sacos de arroz em viaturas soviéticas. Segundo a inteligência militar portuguesa, o PAIGC dispunha, na Guiné Conacri, de cerca de 4 dezenas de camiões russos (havia dois modelos, o Gaz e o Gil) , que faziam o transporte dos abastecimentos de Conacri até a Kandiafara e, depois de queda de Guileje, em 22 de Maio de 1973, até mesmo para lá das fronteira... Recorde-se que o corredor de Guiledje (também chamado Caminho do Povo e Caminho da Liberdade) estendia-se de Kandiafra, Simbel e Tarsaiá (Guiné-Conacry) a Gandembel, Balana, Salancaur e Unal (na Guiné-Bissau).

Este corredor foi, para o PAIGC, o maior e mais importante corredor de infiltração e de abastecimento ao longo de toda a guerra. A sua função estratégica potenciou-se consideravelmente após o assalto ao quartel de Guiledje em Maio de 1973 até sensivelmente depois do 25 de Abril, quando se instituíram as tréguas entre os contendores. Depois do 25 de Avril e das tréguas estes camiões passaram mais vezes a transpor a fronteira desde Kandiafara, passando por Gandembel e parte importante do Carreiro de Guiledje no sentido Gandembel-Salancaur e Porto de Santa Clara.

Guiné > Região controlada pelo PAIGC, possivelmente no sector de Bedanda ou Cacine > Visita de uma delegação escandinava às regiões libertadas > Novembro de 1970 > Foto nº35 > Magnífica imagem de uma bolanha, com produção de arroz. Parte da população controlada pelo PAIGC tinha que ser reabastecida, em arroz, alimentação-base, por não ser autosuficiente. Como se pode ler no Supintrep, "este reabastecimento não se processa, no entanto, de igual modo para as duas Inter-Regiões, pois que (...), enquanto a Inter-Região Sul (à excepção da Frente Bafatá/Gabú Sul) é auto-suficiente na produção do alimento base, o arroz, a Inter-Região Norte não produz hoje o necessário para se abastecer, pelo que, além das colectas efectuadas às populações controladas, se torna necessário enviar para as bases da fronteira e interior quantidades muito apreciáveis deste produto".

Guiné-Bissau > PAIGC > Novembro de 1970 > Imagens obtidas algures, nas bases sediadas na Guiné-Conacri, e nos regiões libertadas do sul (possivelmente, Cantanhez), pelo fotógrafo norueguês Knut Andreasson. Recorde-se que o fotógrafo norueguês acompanhou uma delegação sueca (tendo à frente a antiga líder do parlamento sueco, Birgitta Dahl) na visita às regiões libertadas da Guiné-Bissau, em Novembro de 1970.

Segundo o sítio da
Nordic Africa Institute (uma agência dos países nórdicos, com sede na Suécia, em Upsala ), esta visita deu-lhe oportunidade de falar com Amílcar Cabral, em pleno palco da luta pela independência, e ficar a conhecer melhor o PAIGC, a guerrilha e a sua implantação no terreno.

Andreasson e Dahl publicaram mais tarde um livro em sueco sobre essa viagem. Andreasson, por sua vez, realizou uma exposição fotográfica e publicou um álbum fotográfica sobre esta visita. A maior parte das fotos deste período foram doadas ao Nordic Africa Institute pela viúva de Andreasson. A exposição foi , por sua vez, doada à
Fundação Amílcar Cabral pelo Nordic Africa Institute, sendo apresentada por Birgitta Dahl, a antiga líder do Parlamento Sueco, por ocasião das celebrações do 80º aniversário de Amílcar Cabral, em Setembro de 2004.

A Suécia foi o país ocidental que mais apoio deu ao PAIGC, no plano político, diplomático, humanitário e financeiro. Os manuais escolares eram impressos na Suécia. Este país escandinavo, nomeadamente sob a liderança do social-democrata Olof Palme (1927-1986), também fornecia gratuitamente ao PAIGC material médico e sanitário, como se reconhece no Supintrep, nº 32, de Junho de 1971, que temos vindo a publicar.

As fotos acima ilustram alguns aspectos da máquina logística do PAIGC de cuja grandeza e complexidade muitos de nós, combatentes portugueses, no terreno, não tínhamos uma ideia exacta... Ao ler este documento, insuspeito, ficamos a saber que a população e a guerrilha do PAIGC, no interior do TO da Guiné, era abastecida regularmente (em alimentos, medicamentos, armamento, equipamento, etc.). Ficamos a saber que havia evacuações (incluindo por meios aéreos) de feridos graves para os hospitais de rectaguarda (Ziguinchor, no Senegal; Conacri, Koundara e Boké, na Guiné-Conacri). Devo, no entanto, acrescentar que foi recentemente desmentida, por uma histórica e mítica dirigente do PAIGC, Carminda Pereira - no Simpósio Internacional de Guileje (Bissau, 1 a 7 de Março de 2008) - que houvesse helicópteros ("O PAIGC nunca teve helicópteros ou outras aeronaves"). Agora também é verdade que foi fundamental para o PAIGC o apoio, sem reservas, dado pelo regime de Sékou Touré. Já no Senegal, o PAIGC não se movimentava tão à vontade.


Ficamos também a saber que havia evacuações de feridos graves, em tratamento, para outros países estrangeiros (nomeadamente, da Europa de Leste). Que nesses hospitais, na rectaguarda, havia médicos, estrangeiros, tanto ocidentais (por exemplo, holandeses) como do bloco soviético (cubanos, jugoslavos e russos). Curiosamente não se faz menção do português, natural de Angola, o Dr. Mário Pádua, médico, que desertou das fileiras do nosso exército, Angola, e dedicou parte da sua vida, como médico e como militante, ao PAIGC, no Hospital de Ziguinchor, Senegal)(Vd. o seu depoimento no filme-documentário de Diana Andringa e Flora Gomes, As Duas Faces da Guerra, 2007).

Este excerto do Supintrep sobre a logística do PAIGC deve ser lido em complemento do que já aqui escrevemos sobre a importância estratégica que tinha o corredor de Guileje e o significado da queda de Guileje (1).

Fonte:
Nordic Africa Institute (NAI) / Fotos: Knut Andreasson (com a devida vénia... e a competente autorização do NAI) (2) (As fotografias tem numeração, mas não trazem legenda. Legendagem de LG).


Continuação da publicação do Supintrep, nº 32, de Junho de 1971, documento classificado na época como reservado, de que nos foi enviada uma cópia, em 18 de Setembro de 2007 pelo nosso amigo e camarada A. Marques Lopes, Cor DFA, na situação de reforma, e a quem mais uma vez agradecemos publicamente (3):

PAIGC - Instrução, táctica e logística (11): Supintrep nº 32, Junho de 1971 (Parte XI) > Logística


LOGÍSTICA

a. Generalidades


Para satisfação das necessidades resultantes da actividade desenvolvida, o PAIGC organizou nos países limítrofes (República do Senegal e República da Guiné) um “complexo logístico” com a finalidade de introduzir no nosso território os meios indispensáveis à manutenção do seu esforço de guerra. Os órgãos centrais dessa “máquina” – armazéns de víveres, depósitos de armamento e munições, de combustíveis, medicamentos, oficinas e fardamento – encontram-se em Conakry, om órgãos de menor capacidade em Boké, Kandiafara, Kambera, Foulamory e .

É pois a partir de Conakry que cerca de quatro dezenas de viaturas de fabrico soviético (marcas Gas e Gil) estabelecem a ligação entre os pontos atrás referidos, transportando pessoal, material e víveres.

Para Boké e Kandiafara e também Bissamala, onde o PAIGC dispõe de um complexo logístico de apoio ao Quitafine, é aproveitada ainda a navegabilidade dos rios Nunez e Kandiafara, os quais são percorridos por um conjunto de barcos de carga de que se destacam:

AROUCA (BI 72 L) – ex-SAGRES, é uma lancha a motor, casco de aço, casa de motor, porão e escotilhas, um mastro. O motor é Diesel Kelvin K3, n.º 26927, de 3 cilindros de 66HP e 750 RPM; tem 15,40 m de comprimento, 4,10 m de boca e capacidade para 19,700 tons. de carga.

MIRANDELA (BI 112 L) – ex-SADO, é um batelão a reboque, casco de ferro, alojamento para a tripulação com seis beliches, duas escotilhas, um porão de carga com duas coberturas de ferro corrediças que lhe servem de tampa, um mastro de ferro com dois paus de carga, motor com potência de 95/105 HP, 24,40 m de comprimento, 4,82 m de boca e capacidade para 65,054 tons. de carga.

2 BARCAÇAS – tal como são denominadas, que se julga tratar de duas embarcações tipo lancha de desembarque, talvez semelhantes às LDM da nossa marinha.

Os abastecimentos são enviados mensalmente de Conakry para as bases logísticas de apoio, sendo destinados ao mês seguinte, com níveis que se julgam bastante baixos, pois que, quando o reabastecimento se atrasa, que é frequente, logo as bases do interior insistem na sua falha. São polivalentes, incluindo géneros alimentícios, gasolina e óleos, material e munições.

Estas remessas são feitas nos últimos dias do mês, dando origem a concentrações de viaturas em Conakry.

Efectuados que são os reabastecimentos, algumas viaturas e embarcações regressam a Conakry, fazendo no retorno o escoamento dos produtos agrícolas cultivados nas “regiões libertadas” (arroz, milho, coconote...) e ainda evacuações, quer de feridos ou doentes, quer de material inoperacional.


b. Apoio exetrior à actividade logística


Em 21 de Março de 1966 foi celebrado um “protocolo” entre o Governo Senegalês e o PAIGC que estabelecia as modalidades de cooperação entre as autoridades senegalesas e os responsáveis do PAIGC, o qual, fundamentalmente, assenta nos seguintes pontos:

- Serão fixados pontos de reagrupamento obrigatórios pelas autoridades senegalesas para o estacionamento prolongado dos militantes combatentes. Os militantes combatentes detentores de armas e de munições deverão entregá-las obrigatoriamente nestes centros nas mãos das autoridades senegalesas. Toda a entrada de armas ou material destinado ao PAIGC em território senegalês deverá fazer-se com o acordo das autoridades encarregadas da segurança, que tomarão posse e assegurarão a entrega nas condições a definir.
- Para permitir aos militantes e combatentes do PAIGC abastecerem-se em território senegalês, os responsáveis designados pelo PAIGC devem dirigir-se às Autoridades Administrativas que se esforçarão para satisfazer os pedidos em toda a medida do possível. Este fornecimento de mercadoria e artigos diversos não são gratuitos.
- Os militantes e os combatentes do PAIGC doentes ou feridos beneficiam, como no passado, dos cuidados dispensados pelas formações sanitárias senegalesas.
- Para permitir a identificação dos militantes, os únicos beneficiários destas medidas, os responsáveis do PAIGC comprometem-se a entregar-lhes os documentos de identidade com fotografia e a remeter às Autoridades Senegalesas encarregadas da segurança a lista completa destas pessoas com os talões.
- Estas facilidades concedidas aos militantes e combatentes do PAIGC são susceptíveis de serem anuladas unilateralmente pelas Autoridades Senegalesas devido a factos imputáveis ao PAIGC ou devido a circunstâncias particulares.

Como se verifica analisando o teor do acordo, este, a ser cumprido, implicaria uma série de restrições que, em boa verdade, e com excepção de algumas alíneas, nunca foram totalmente impostas, continuando o PAIGC a proceder quase como se o referido acordo não existisse e com liberdade de acção em todo o Casamansa, muito provavelmente até pela força do Partido naquela região.

Muito mais amplo, no entanto, é o apoio incondicional dado pelo Governo de Sékou Touré ao PAIGC, que tem na Rep Guiné, como já se referiu, além dos órgãos de direcção central e de apoio logístico de base, uma total liberdade de circulação nos itinerários, as mais amplas facilidades de instrução militar das FARP e de educação dos futuros quadros, assistência sanitária e hospitalar, instalações e até empréstimos de material de guerra, quando o PAIGC dele carece.

Salienta-se, no entanto, que, dada a excentricidade de determinados “departamentos” fronteiriços, o que os liberta de certo modo do controle eficaz dos Governos Centrais, o apoio concedido ao PAIGC depende muitas vezes das Autoridades Civis e Militares que superintendem esses Departamentos, embora não o afectando e sendo este aspecto mais palpável na Rep Senegal.

O apoio concedido por outros países africanos não fronteiriços não tem significado, traduzindo-se apenas em manifestações de “solidariedade política”, o que, aliás, sucede com a maioria dos países e organizações internacionais, à excepção dos referidos em 3.a [do Supintrep].

c. Fabrico, confecção e manutenção


Muito pouco tem sido assinalado sobre o “fabrico, confecção e manutenção” presumindo-se, por isso, que, neste capítulo, o PAIGC está ainda numa fase muito incipiente. Admite-se que, nas oficinas referenciadas em Conakry, Boké, Kandiafara, Koudara e Ziguinchor, execute diversos escalões de manutenção do seu material auto, a qual se julga eficaz, dado que as dificuldades neste campo decorrem normalmente da quantidade e não do aspecto funcional. Igualmente se admite que as oficinas instaladas em Conakry para o efeito procedem a determinadas beneficiações no seu material de guerra, dadas as “evacuações” detectadas.

Em Boké está referenciado um estaleiro naval onde se procede a reparações nos barcos que o PAIGC possui.

Quanto ao “fabrico”, além da execução e arranjo de alfaias agrícolas e utensílios domésticos por processos rudimentares, há a referir, ligada aos Serviços de Economia e Produção e dentro do âmbito das actividades do Comité da Inter-Região Norte, a existência, algures na região do Morés, de uma pequena fábrica de sabão (marca Lolo), aproveitando a abundância da matéria prima utilizada, o óleo de palma. Muito embora não detectadas, admite-se a existência de outras fábricas deste tipo.

d. Alimentação


Mensalmente, tal como acontece com a generalidade dos reabastecimentos, são enviados de Conakry para as bases de apoio às Inter-Regiões géneros alimentícios, nomeadamente arroz, açúcar, sal e conservas, os quais são depois distribuídos pelos efectivos estacionados ao longo da fronteira e interior.

Este reabastecimento não se processa, no entanto, de igual modo para as duas Inter-Regiões, pois que, como veremos, enquanto a Inter-Região Sul (à excepção da Frente Bafatá/Gabú Sul) é auto-suficiente na produção do alimento base, o arroz, a Inter-Região Norte não produz hoje o necessário para se abastecer, pelo que, além das colectas efectuadas às populações controladas, se torna necessário enviar para as bases da fronteira e interior quantidades muito apreciáveis deste produto.

Em quase toda a Província o IN procede a colectas de arroz nas tabancas sob o seu controle. Estas colectas são feitas por tabancas ou por áreas e delas se encarrega o chefe da tabanca que faz a cobrança junto de cada morança, ou um delegado da área que tem por missão reunir o arroz colectado pelos cobradores distribuídos pelas tabancas da referida área.

Depois de reunido o arroz colectado é aguardada a chegada dos grupos que o vão buscar a cada uma das áreas ou tabancas. Estes grupos têm um efectivo de cerca de 10 elementos armados de maneira a poderem reagir a possíveis encontros com as NT. Por vezes vão efectivos maiores, cerca de 30 a 40 elementos, que se admite seja devido ao conhecimento que o IN possa ter da presença das NT na região.

A colecta exigida varia com a época do ano, razão por que na época seca as colectas são maiores que na das chuvas.

Do estudo feito a documentos bem como de declarações prestadas por elementos IN capturados pelas NT, é possível concluir da maneira como se processa o reabastecimento de géneros alimentícios às unidades IN sediadas ao longo da fronteira, bem como aos efectivos no interior. Assim:

Para as Unidades da Fronteira

Ao longo da Fronteira, as populações refugiadas encontram-se organizadas político-administrativamente, pelo que encontramos entre elas os comités de tabanca e de secção, órgãos primários da estrutura político-administrativa do PAIGC. As bases e acampamentos IN que se situam nesses locais apoiam-se nessa organização, do que resulta serem os referidos órgãos os encarregados de proverem aos reabastecimentos, efectuando colectas e, de seguida, a entrega dos géneros obtidos. Por outro lado, as unidades em deslocamentos ao longo da fronteira e em contacto com as referidas populações vão também efectuando, por sua vez, colectas.

Para as Unidades do Interior (só Inter-Região Norte)

Só a partir do corrente ano passaram a ser detectadas colunas de reabastecimento de arroz que, idas das bases logísticas do Casamansa, se destinem a prover as necessidades do interior.

Assim, a partir de Koundara o arroz é canalizado especialmente para a base de Cumbamore em colunas de viaturas, sendo depois transportado para o interior por colunas de carregadores através dos corredores de infiltração, como oportunamente se referirá.

e. Saúde

(1) O Desenvolvimento do Serviço de Saúde no PAIGC

Vencendo inúmeras dificuldades, resultantes muito especialmente da falta de quadros logo após a eclosão da luta armada, o PAIGC começou a instalar pouco a pouco em diversos pontos das Regiões Libertadas alguns postos de saúde, onde colocou os poucos enfermeiros que o Partido à data dispunha.

Sendo este número, porém, insuficiente, e segundo directivas da Direcção do Partido, estes enfermeiros procuravam dar a outros elementos recrutados nas escolas na Milícia Popular uma preparação mínima que lhes permitisse auxiliá-los no seu trabalho. Foram assim iniciados no serviço de enfermagem muitos elementos que, muito embora carecendo de preparação teórica, foram solucionando o problema até à formação e Escolas de Enfermagem no interior, entre as quais se destaca a Escola de Ajudantes de Enfermagem do Morés.

Entretanto, e dada a insuficiência a que estas escolas ainda conduzem, o Partido, no sentido da formação o pessoal qualificado necessário a um funcionamento mais eficaz dos centros de saúde, tem enviado para o estrangeiro muitos jovens que aí seguem estudos práticos de enfermagem e medicina, de modo a poder dispor, a curto prazo, de um número sempre crescente de pessoal capaz, o que irá permitir uma progressiva melhoria da actividade do Partido no domínio da saúde.

(2) O auxílio estrangeiro

Como já se referiu, o auxílio estrangeiro ao PAIGC no domínio da saúde reveste-se de uma importância muito grande, dado que é através do fornecimento de bolsas de estudo para a frequência de cursos médicos e de enfermagem que o PAIGC obtém elementos qualificados de cuja carência tanto se ressente. Assim, numerosos bolseiros do PAIGC cursam Medicina na Rússia e na Bulgária, enfermagem na Bulgária e Cuba e Profilaxia e Higiene Social na Checoslováquia.

Não termina, porém, aqui o auxílio estrangeiro ao Partido, pelo que se caracteriza também na cedência de pessoal médico, pelo que vamos encontrar médicos cubanos, jugoslavos, russos e holandeses nos principais estabelecimentos hospitalares. Este auxílio é completado com o fornecimento gratuito de medicamentos e material sanitário por parte de Cuba e dos países do Leste da Europa, revestindo-se também de particular importância a contribuição dada por particulares da Europa Ocidental, nomeadamente a Fundação Mondlane, com sede em Haia, e a Suécia.

(3) Como é prestada a assistência sanitária

A assistência sanitária aos combatentes e populações sob o controle IN é realizada através de enfermarias e hospitais existentes no interior do TO, formações sanitárias muito rudimentares, quase nunca dispondo de médico.

Os indisponíveis que denunciam casos graves são transportados em macas improvisadas desde essas enfermarias ou hospitais para as bases fronteiriças, onde normalmente o PAIGC dispõe de instalações mais apetrechadas, e daqui, em automacas ou viaturas de transporte, senão mesmo em meios aéreos, para os hospitais de Conakry, Ziguinchor, Koundara ou Boké.

No capítulo da assistência sanitária, mormente nos hospitais e enfermarias do interior, além da falta de pessoal qualificado surge ainda toda uma série de condicionamentos, nomeadamente o reabastecimento irrregular dos medicamentos, a conservação do sangue para transfusões e o transporte e feridos graves para o exterior, que muito afectam o funcionamento normal do serviço.

(4) Orgnização dos serviços de saúde (civil e militar) do PAIGC


Tanto quanto os elementos disponíveis o permitem, julga-se que estes centros sanitários (hospitais e enfermarias) se dividem em dois ramos, o civil e o militar, dependentes de entidades distintas.

No meio civil, ainda em estado incipiente de organização, compreenderá enfermarias ou mesmo hospitais existentes nas áreas libertadas, os quais se destinam a prestar assistência às populações controladas pelo IN. Estas enfermarias são accionadas nos escalões administrativos a que correspondem pelos responsáveis da Saúde dos respectivos Comités, e destacam, com o fim de efectuarem uma cobertura eficaz das respectivas zonas, brigadas sanitárias que percorrem as tabancas que não dispõem de serviço de saúde próprio. Julga-se que a saúde civil esteja dependente, a nível superior, da Direcção para os Assuntos Sociais do Departamento para os Assuntos Sociais e Cultura.

No ramo militar, o serviço de saúde encontra-se já num grau de desenvolvimento diferente, dispondo de estabelecimentos hospitalares (no exterior) de apreciáveis recursos. Julga-se que no topo de toda a organização sanitária militar se encontra o Serviço de Saúde do Departamento da Defesa, o qual acciona três Secções Sanitárias (Ziguinchor, Koundara e Boké) que abrangem todo o TO e zonas fronteiriças dos países limítrofes. Estas Secções Sanitárias corresponderam às três Frentes (Norte, Leste e Sul) em que o IN dividia o TO até à reorganização levada a efeito durante o ano de 1970, mas mantendo actualidade mesmo depois desta reorganização.

Cada Secção dispõe de um Hospital Central, dela dependendo os hospitais e enfermarias correspondentes aos Sectores e Frentes. As unidades, por sua vez, dispõem também de enfermeiros responsáveis pela assistência sanitária imediata aos guerrilheiros.

Continua

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Notas de L.G.:

(1) Vd. postes de:

2 de Fevereiro de 2008
Guiné 63/74 - P2499: Guiledje: Simpósio Internacional (1 a 7 de Março de 2008) (13): Enquadramento histórico (I): a importância estratégica de Guileje

3 de Fevereiro de 2008 >
Guiné 63/4 - P2502: Guiledje: Simpósio Internacional (1 a 7 de Março de 2008) (14): Enquadramento histórico (II): o significado da queda de Guileje

16 de Março de 2008 >
Guiné 63/74 - P2650: Uma semana involvidável na pátria de Cabral: 29/2 a 7/3/2008 (Luís Graça) (6): No coração do mítico corredor de Guiledje

17 de Março de 2008 > Guine 63/74 - P2655: Uma semana inolvidável na pátria de Cabral: 29/2 a 7/3/2008 (Luís Graça) (7): No corredor de Guiledje, com o Dauda Cassamá (I)

17 de Março de 2008 >Guiné 63/74 - P2656: Uma semana inolvidável na pátria de Cabral: 29/2 a 7/3/2008 (Luís Graça) (8): No corredor de Guiledje, com Dauda Cassamá (II)


(2) Mensagem anterior da
Webmaster do NAI:

Dear Luís Graça, I am glad to hear that you like the photos and that you use them. Best regards,

Agneta Rodling
Information/Webb
Nordiska Afrikainstitutet
The Nordic Africa Institute
Box 1703,
SE-751 47 UPPSALA
Tel +46-18 56 22 21

Mensagem enviada hoje pelo editor do blogue:

Dear Agneta:

I have written to you recently. My name is Luis Graca. I am the founder and main editor of the Portuguese blog Luis Graca & Camaradas da Guine, centred on the individual and collective experience of Guinea Bissau colonial war / liberation struggle, during the period of 1963/74.

Please notice that I have used again some photos from your album on Guinea-Bissau (see the text posted today, on my blog; subject: PAIGC logistics during the liberation struggle)… Blog members are war veterans, ancient fighters of both sides, or their relatives and friends of Portugal and Guinea-Bissau.

I have used, with your kind permission, the following photos, taken in November 1979, by Knut Andreasson: 07, 023, 025, 029, 030, 031, 032, 035 and 038.

Our blog has no commercial purpose, it intends to be a bridge of peace, reconciliation, co-operation and friendship and but also an information and knowledge database (research and dissemination, photo and paper documentation, poetry, life stories, fiction, scientific meetings, social events…). And my self, I appreciate very much your institutional support to the people of Guinea-Bissau.

Please feel free to use also our web materials.
Many thanks.
Luís Graça



(3) Vd. postes anteriores, desta série:

22 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2124: PAIGC - Instrução, táctica e logística (1): Supintrep nº 32, Junho de 1971 (I Parte) (A. Marques Lopes)

24 de Setembro de 2007 >
Guiné 63/74 - P2126: PAIGC - Instrução, táctica e logística (2): Supintrep nº 32, Junho de 1971 (II Parte) (A. Marques Lopes)

1 de Outubro de 2007 >
Guiné 63/74 - P2146: PAIGC - Instrução, táctica e logística (3): Supintrep nº 32, Junho de 1971 (III Parte) (A. Marques Lopes)

8 de Outubro de 2007 >
Guiné 63/74 - P2164: PAIGC - Instrução, táctica e logística (4): Supintrep nº 32, Junho de 1971 (IV Parte): Emboscadas (A. Marques Lopes)

29 de Outubro de 2007 >
Guiné 63/74 - P2228: PAIGC - Instrução, táctica e logística (5): Supintrep nº 32, Junho de 1971 (V Parte): Flagelações (A. Marques Lopes)

4 de Dezembro de 2007 >
Guiné 63/74 - P2327: PAIGC - Instrução, táctica e logística (6): Supintrep nº 32, Junho de 1971 (VI Parte): Minas I (A. Marques Lopes)

17 de Janeiro de 2008 >
Guine 63/74 - P2446: PAIGC - Instrução, táctica e logística (7): Supintrep nº 32, Junho de 1971 (VII Parte): Minas II (A. Marques Lopes)

19 de Janeiro de 2008 >
Guiné 63/74 - P2454: PAIGC - Instrução, táctica e logística (8): Supintrep nº 32, Junho de 1971 (VIII Parte): Minas III (A. Marques Lopes)

13 de Fevereiro de 2008
Guiné 63/74 - P2535: PAIGC - Instrução, táctica e logística (9): Supintrep nº 32, Junho de 1971 (IX Parte): Defesa anti-aérea (A. Marques Lopes)

7 de Abril de 2008 >
Guiné 63/74 - P2730: PAIGC - Instrução, táctica e logística (10): Supintrep nº 32, Junho de 1971 (X Parte): Organização defensiva (A. Marques Lopes)