quinta-feira, 4 de junho de 2009

Guiné 63/74 - P4461: O segredo de... (5): Luís Cabral, os comandos africanos, o blogue Tantas Vidas... (Virgínio Briote)

Guiné > Brá > 1965 > O Alf Mil Briote, à esquerda, ladeado de dois dos primeiros comandos africanos, o Jamanca e o Joaquim. Esta era a 1ª equipa do seu grupo de comandos, os Diabólicos. Em vésperas da Op Atraca.

O Jamanca será mais tarde ofical da 1ª Companhia de Comandos Africanos, participará na Op Mar Verde (invasão da Guiné-Conacri, em 22 de Novembro de 1970) e comandará, em 1973, a CCAÇ 21, da qual farão parte antigos graduados africanos da minha CCAÇ 12.

Enquanto a CCAÇ 12, provavelmente refrescada, foi colocada no Xime, de meados de 1973 até ao final da guerra, a CCAÇ 21, comandada pelo Cap Cmd Graduado Jamanca [lê-se Djamanca], ficará em Bambadinca como unidade de intervenção. O Comandante da CCAÇ 21, Jamanca, será fuzilado, juntamente alguns dos seus homens (o antigo soldado da CCAÇ 12, Abibo Jau, por exemplo) em Madina Colhido, perto do Xime, depois da saída dos portugueses. (LG)
Foto: © Virgínio Briote (2007). Direitos reservados.

1. Das nossas lides bloguísticas eu sabia, talvez há mais de dois anos, que o meu amigo e camarada Virgínio Briote acalentava a secreta esperança de um dia poder entrevistar (ou ter uma conversa franca com) o Luís Cabral... Fez várias tentativas. Em vão. Até que a morte do histórico dirigente do PAIGC, ocorrida há dias em Lisboa, veio fechar-lhe a última porta...

Por outro lado, ele acaba de me confidenciar que vai encerrar a sua actividade bloguística, o seu Tantas Vidas (cujo acesso ele já 'blindou', com password):

Caro Luís,

Estou a proceder a correcções e acertos no meu blogue. Depois de terminar o trabalho vou imprimi-lo em edição de autor e oferecê-lo aos Camaradas que me têm acompanhado nesta aventura internauta. Depois apago o Tantas Vidas. Entretanto, para o caso de te interessar a pw é (...).

Um abraço,vb


2. Um primeiro comentário, de resposta:

VB: Fazer uma edição de autor, tudo bem... É um grande generosidade da tua parte ...mas apagar o registo da Net ? Não te precipites...Além disso, temos que fazer uma FESTA!... Tu mereces, nós merecemos!!!... Obrigado pela pw (...)


3. Mensagem do vb, de anteontem:

Para ti, Caro Luís,

Espero que não leves a mal a ousadia: alterei o teu poste (*), incluí um comentário que, penso, ajuda a clarificar o que realmente me levou a apresentar os meus respeitos ao Luís Cabral.

É certo que o contactei. Depois de várias tentativas consegui falar com ele ao telefone. Talvez me tenha faltado a capacidade de um jornalista. À pergunta de LC, quem é o senhor, respondi que era um antigo comando europeu e que... Ao que ele, pronta e educadamente respondeu que sobre os comandos africanos não tinha nada de importante a acrescentar. Que me deveria dirigir-me a outras entidades, que certamente teriam informações mais precisas. Ponto final, não consegui recuperar a iniciativa da conversa. E fiquei com pena, com a ideia que teria sido capaz de o ter frente a frente, não fora o deslize de me ter identificado logo no início.

Um abraço,
vb


Guiné > Brá > Outubro de 1965 > 1ª equipa de comandos Vampiros > Ao centro, o alf mil Vilaça e â sua rsquerda, o Jamanca e o Justo, futuros comandos africanos.
Foto: © Virgínio Briote (2007). Direitos reservados.








4. Nova mensagem do vb, de ontem:


Caro Luís,

Enquanto espero o Amadu, depois de uma estadia de quase duas semanas em Londres, onde aproveitou para visitar os filhos e a neta e consultar um cardiologista, vou responder-te:

(i) Luís Cabral:

Na breve conversa telefónica com ele, como te disse, fiquei com a impressão que cometi um erro grave. É obrigatório preparar a entrada. Mas eu já não estava à espera de falar com ele, já tinha feito quase mais dúzia de tentativas.

Subitamente reconheci-lhe a voz (vim a saber por ele que estava sozinho em casa) e, talvez, por não contar, esqueci a apresentação que tinha preparado. E foi aqui que falhei, quando me apresentei como um ex-combatente, comando.


A partir desse momento a conversa perdeu interesse para ele. Pela voz apercebi-me que o assunto lhe trazia incómodo e cansaço. Que o assunto era complicado, que não queria eximir-se nem incriminar ninguém, que já tinha dito tudo o que podia dizer, que lamentava o que tinha acontecido, que talvez houvesse pessoas mais indicadas para falar do assunto, que a saúde dele não estava famosa.

Não consegui dar a volta, não insisti.


(ii) Tantas Vidas:

É mesmo para apagar. Depois de arrumar os assuntos e eliminar os que não dizem respeito à minha comissão, vou aproveitar a oferta e o engenho do meu filho, que se prontificou para editar os textos. Vou mandar fazer uma ou duas centenas de exemplares e distribuí-los por alguns Camaradas.


(iii) Blogue:

O blogue da Guiné é o do Luís Graça & Camaradas da Guiné. É único. Pela vastidão e interesse de testemunhos presenciais, de soldados a coronéis e generais, por alguns trabalhos de investigação, pelo período todo da guerra. Está lá a alma da gente lusitana, ou melhor, da gente portuguesa. O sofrimento até ao limite, o desenrascanço, a capacidade de se adaptar, o viver tu cá tu lá com fulas, manjacos, mandingas, felupes, balantas, com outras culturas. É um documento inestimável, como se comprova diariamente pelas citações em livros e blogues. Não pode morrer.
Se vires interesse em alguns textos do Tantas Vidas podes publicá-los. Para mim, como compreendes, é uma honra (**).

Um abraço, vb

5. Comentário (final) de L.G.:

Sáo muitas emoções para um dia só... É uma prova extraordinária de amizade e camaradagem por parte do meu/nosso co-editor Virgínio Briote que eu sinto, cada vez mais, com vontade e necessidade de encerrar, na sua vida, ou na sua base de dados neuronal, o "capítulo da Guiné". Ou da guerra, como quiserem. Se calhar isso vai acontecer com todos nós, mais cedo ou mais tarde.

Vou respeitar a sua decisão final, qualquer que ela seja... mas reservo-me o direito de manter afixado, e bem alto, o seu "brazão de armas" à porta da nossa caserna... No entanto, ainda é muito cedo para despedidas... Venha de lá esse livro (aliás, dois, com o do Amadu Djaló) e o ronco que a gente vai fazer!... LG

__________

Notas de L.G.:


(*) Vd. postes de :

1 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4447: PAIGC - Quem foi quem (7): Luís Cabral (1931/2009) (Virgínio Briote)

1 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4449: In Memoriam (23): Luís Cabral ou o respeito por um homem que lutou por um ideal (Virgínio Briote)

(**) O último poste, de 1 de Junho de 2009, reza assim:

Guiné, Ir e voltar, 1965 a 1967.

Histórias de factos que aconteceram, vistas por um certo olhar. Outras vistas por esse olhar e que mais ninguém viu.

Os factos aqui descritos, uns foram vistos pelos olhos do editor, outros por quem os viveu, outros ainda foram recolhidos em fontes diversas: relatos de combatentes de ambas as partes, Arquivos Históricos e na literatura disponível sobre a Guerra travada pelas tropas portuguesas na Guiné. Apesar de continuamente actualizados, confrontados e corrigidos, não pode o editor garantir que os factos aqui relatados tenham ocorrido exactamente da forma como estão escritos.

Escrito por Gil [alter ego do VB]

Guiné 63/74 - P4460: PAIGC - Quem foi quem (8): O Luís Cabral que eu conheci (Pepito)

Guiné-Bisssau > Região de Tombali > Sector de Bedanda > Cananima, margem direita do Rio Cacine > 2 de Março de 2008 > Em primeiro plano, o Pepito observa a partida de um grupo de participantes estrangeiros do Simpósio Internacional de Guiledje (1-7 de Março de 2008), em canoa, rumo a Cacine, na margem esquerda. (Catorze meses depois, sei que o Pepito está hoje muito mais elegante, graças ao programa de regime a que se submeteu).

À sua direita o nosso camarada Zé Teixeira, da Tabanca de Matosinhos, e, à esquerda, o Domingos Fonseca, téncico da AD, do Programa Integrado de Cubucaré (onde se ocupa preferencialmente das acções ambientais em Cantanhez, nos domínios de ecoturismo, formação de professores de verificação ambiental, colecta de plantas medicinais e identificação de percursos naturais).

O
Domingos foi um dos elementos-chave da organização (excepcional, impecável) que permitiu levar uma enorme caravana de jipes, de Bissau até ao Bissau, cerca de 600 quilómetros ida e volta, e largas dezenas de pessoas... Fomos a um sábado, dia 1 de Março, com várias paragens (Saltinho, Ponte Balana, Gandembel, Guileje), pernoita em Iemberém (sábado); no dia 2, domingo, visita a Iemberém, Madina do Cantanhez - Acampamento Osvaldo Vieira, almoço em Canima e visita, à tarde, a Cacine, e de novo pernoita em Iemberém... Segunda feira livre, com regresso a Bissau, antes das 17 horas, início marcado do Simpósio, no Hotel Palace de Bissau...

Foi um grande acontecimento, importantíssimo para a preservação da memória da guerra colonial / luta de libertação, na Guiné-Bissau, e cuja lembrança ficou no coração de muitos de nós, portugueses, guineenses e outros, que tiveram o privilégio de lá ter estado... Foi também um grande desafio para a AD - Acção para o Desenvolvimento e o seu principal mentor, o Pepito, uma grande figura guineense, hoje respeitada nacional e internacionalmente.

O Simpósio foi um tremendo desafio, ganho pelos nossos amigos da Guiné-Bissau. Um acontecimento de que ainda hoje se fala em Bissau e no sul do país... E de que se continuará a falar com a inauguração, em breve, do
Museu Memória de Guiledje...


Foto (e legenda): ©
Luís Graça (2008). Direitos reservados.


1. Perguntei ao meu/nosso amigo Pepito, membro da nossa Tabanca Grande:

Como foi vista aí a morte do Luís Cabral ? Mais um histórico que desaparece (e que histórico!) e a memória que se vai (*)... Andámos (o Virgírnio Briote) atrás dele, em vão... Sempre se recusou a receber-nos e a falar connosco (com o VB, ex-comando...). Vou publicar esta (in)confidência do VB... Um abraço. Até Julho. Luís


2. Resposta do Pepito (aliás, Eng Agr Carlos Silva Schwarz), director executivo da AD - Acção para o Desenvolvimento, com sede em Bissau:

Luís,

Tenho uma excelente opinião do Luís Cabral.

Foi o meu primeiro Presidente e sempre o tratei como tal em todas as vezes que ia visitá-lo a Miraflores.

Habituei-me a vê-lo diariamente em todas as actividades e departamentos do Estado. Visitava para se entusiasmar ele próprio com os progressos que o país ia fazendo, logo após a independência. Visitava sempre que possivel o Centro de Pesquisa Agrícola de Contuboel, criado pelo DEPA em 1977 e onde pela primeira vez se fez orizicultura na época seca, a partir da irrigação do rio Geba.

Eu, novato, com 27 anos, tremia por todo o lado. Não com medo da pessoa (aliás ele era duma afabilidade impressionante), mas com medo de estar a cometer algum erro. O interesse genuíno e nunca de circunstância, era contagiante e aprendi com ele a sonhar um belo país para a Guiné-Bissau.

Já no exílio, em Lisboa, nas conversas que tinhamos, pouco lhe interessavam as notícias sobre a descida aos infernos que estávamos a viver. Entusiasmava-se sim com boas notícias e com sucessos que aqui e ali o país ia registando.

Tinha todas as razões para lançar diatribes contra o Nino Vieira, que o traiu miseravelmente, mas nunca o fez. Para ele o que contava era o futuro da Guiné-Bissau, única justificação da sua dedicação e engajamento na Luta.

Passeava nas ruas e tabancas do país sem guarda-costas, às vezes em calções e a andar de bicicleta, como uma vez em Bubaque em que me viu a mim e à Isabel e disse "passem lá em casa para conversarmos". Nós os dois, ainda miúdos, criámos a ideia de que um Presidente era uma pessoa simples, acessível a todos e que acreditava na malta nova. O que se passou a seguir mostrou-nos Presidentes ao contrário.

Em Portugal continuou a conviver com pessoas de relevo intelectual e lideres internacionais. Contava-me estórias das conversas dele com o Mandela, cheias de humor e significado, pela simplicidade que ele apreciava num líder tão marcante da nossa época.

Ofereceu-me um desenho, que é praticamente desconhecido, de Amilcar Cabral, feito por um angolano, e que tenho no meu gabinete de trabalho em Bissau, cobiçado por muitos amigos meus.

Sempre me magoaram muito as afirmações que vi, recorrente e injustamente, fazer-se sobre a responsabilidade de Luís Cabral na morte dos comandos africanos.

Nos primeiros anos de independência fiz parte da direcção da Juventude do Partido (a JAAC) e emiti muitas críticas em relação a certas opções e à permissividade de certos comportamentos a que chamei na altura como "o descanso do guerreiro".

Da mesma forma que me exaltei de satisfação com o programa mais inovador e eficaz que algum dia tivemos no país (o programa de saúde comunitária, liderado por João da Costa e Boal).

Imediatamente a seguir ao golpe de estado do 14 de Novembro de 1980, demiti-me da direcção da JAAC por não me rever neste tipo de "debates" das divergências internas.

Tenho orgulho de ter pertencido ao Governo de Unidade Nacional que, em 2000, organizou a única e última visita de regresso de Luís Cabral a Bissau.


abraço
pepito

[Bold, a cor, da responsabilidade de L.G.]
__________

Nota de L.G.

(*) Vd. poste de 1 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4447: PAIGC - Quem foi quem (7): Luís Cabral (1931/2009) (Virgínio Briote)

Guiné 63/74 - P4459: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (8): Mussá Ieró, tabanca fula em autodefesa, destruída em 24/11/68







Guiné > Mansambo > CART 2339 (1968 / 69) > Fotos Falantes III (de cima para baixo, 6, 27, 24, 31, 30) > Por não ter aqui à mão a lista com as legendas das fotos, não posso dar mais pormenores. De qualquer modo, as fotos falam por si: o Torcato junto ao obus 10.5 em Mansambo; aspectos da vida de uma ou mais tabancas fulas em autodefesa, do regulado do Corubal ou de Bengacia (Duas Fontes), vida essa que se tornou, de meados de 1968 para meados de 1969, cada vez mais complicada, com o cerco do PAIGC ao chão fula.


Alguma destas tabancas podia ser Candamã ou Afiá ou Camará (vd, carta de Bengacia), sítios por onde andei em Agosto de 1969... Também podia ser a da pacata Mussá Ieró, pacata até ao dia em que foi destruída e abandonada, em 24 de Novembro de 1968... A Mussá Ieró não chegava os velhos obuses de Mansambo, sede do subsector e da CART 2339... (LG)


Fotos: © Torcato Mendonça (2009). Todos os direitos reservados.




1. Mensagem do Torcato Mendonça, ex-Alf Mil, CART 2339 (Fá e Mansambo, 1968/69)... Meio alentejano, meio algarvio, português dos quatro costados, beirão, camarada, amigo, mebro do nosso blogue desde Maio de 2006 e, agora, avô babado de um neto, creio que o primeiro, de nome Martim, um nome arcaico mas bem lusitano...


(No dia 29 de Maio, tinha-me escrito o seguinte: Um abraço do Fundão até ao Porto para ti ,meu caro Luis, e para todos do [BCAÇ] 2852 e da [CCAÇ] 12. Lembro-me de alguns. Igualmente para a malta do Norte, um abração. O Carlos Marques dos Santos da [CART] 2339 virou polaco e deve Varsoviar e não só os dias.... Não fui a 23 ao convívio,e devia ter ido, da 2339... Nasceu nessa madrugada o meu Martim, Vidas!)...


Estimados Editores deste Sítio:


Já há tempos que nada envio. Hoje, através do nosso camarada Tertuliano Ten-Coronel José Borrego, consegui falar com o meu terceiro Comandante de Companhia, Cor Moura Soares e ter noticias do quarto Comandante. Fiquei contente. Passados quarenta anos voltamos a falar e a reviver o passado.


Tem razão o Jorge Cabral, este sitio faz com que aconteçam coisas destas...e gostamos até do que não gostamos. É um síítio de afectos...não é? Giro. Devido á idade das peças não convém agitar muito.Pois!


No meu tempo (BART 1904 e BCAÇ 2852) haveria Abades em Bambadinca? Creio que só em Bafatá. Rezaram missa na inauguração de Mansambo, em Janeiro de 1969 e aniversário da Companhia. Não vi, pois estava em Portugal. Pela altura da Páscoa de 1969, como os militares eram crentes (gente do Norte) pediram e eu falei, creio que em Bafatá, a uns Sacerdotes, da possibilidade de irem dizer uma missa. Concordaram. Quando disse que era em Mansambo...oh...eu ainda disse que seriam protegidos lá do alto...


Ainda não havia o Padre Puim e não houve missa. Como depois de o Payne ter saído, também nunca mais apareceu médico por lá. Até se vivia bem em Mansambo. Feitios. Bons ares e Turismo Rural...


Mas anexo Mussa Iéro em versão light. Logo envio outros escritos.


Abraços do Torcato


2. Estórias de Mansambo II > MUSSA IÉRO


por Torcato Mendonça




Era uma vez… Sim, era uma vez uma Tabanca, não muito grande, que, num passado não muito distante, tinha sido bem maior.


Teria agora uma população reduzida a uma dúzia de famílias. Nem tantas.


Muitos já tinham partido para Candamã, a noroeste, ou para nordeste onde estava Dulo Gengelê e Galomaro. Alguns migraram mesmo até Bafatá.


Ficaram poucos, não por teimosia, talvez por amor ao chão, apego à memória dos antepassados, talvez por algo mais ou, por tudo isso, resistiam e adiavam a partida. O perigo aumentava, os avisos dos militares eram mais insistentes. Adiavam. Talvez assim se sentissem mais felizes.


Naquela noite, ainda menina, ainda de olhos não fechados à claridade, sentiram a bestialidade da guerra, a violência gratuita, o ódio fratricida a abater-se sobre eles. Homens, ou simplesmente seres a destilarem ódio, bestas de uma guerra num país que diziam querer libertar, comandados por outros de outras terras ou, se comandados por guineenses, treinados em países longínquos. Só assim se compreende o modo como espalharam o terror, o ódio, a morte e a destruição sobre gente indefesa.


O ataque durou pouco, as granadas foram poupadas e o saque, a bestialidade, os gritos, os gemidos, os risos de feras certamente encheram a noite.


Depois o silêncio que só na morte ou no deserto se pode encontrar. De repente foi quebrado, talvez pelo choro de uma criança a que outros lamentos, outros choros se seguiram.


Não muito longe, em Candamã, uns quantos militares, cerca de vinte, picadores e população, ouviram o ataque e sentiram a impotência do auxílio. Só no dia seguinte e por isso, além de redobrarem os cuidados defensivos, rápido prepararam a saída para a madrugada ainda a demorar. O relógio luminoso foi consultado com mais frequência, as armas ficaram mais perto, o sono foi de sobressalto e, ainda a noite não acabara, estavam preparados. Os guias, alguns elementos da população, picadores e cerca de metade dos militares saíram. Não pela picada mas por um trilho que os guias conheciam. O pouco ruído era abafado pela chuva fraca que teimava em cair.


Pouco depois uma paragem, uma breve conversa a informarem que Mussa Iéro estava perto. Depois o sinal a indicar o ouvido mas, para os militares, demoraria um pouco mais a captação de sons.


De repente a Tabanca estava ali à frente. Ouvem-se vozes; param e esperam um pouco. Avançam com cuidado e logo à entrada uma visão macabra: um corpo, talvez devido a uma roquetada, espalhado em destroços. Um dos picadores aproxima-se e informa ser um milícia da Moricanhe. De facto haviam bocados do corpo coberto pelo camuflado e outras, não cobertas, a chuva tornara-as brancas.


As armas foram mais apertadas, os olhares endureceram, o ódio ia surgindo e os músculos estavam mais tensos. A transformação já se dera naqueles rapazes soldados. Acontecimentos como aquele só os endureciam mais e geravam maior ódio pela violência. Quem eram eles agora?

No centro da Tabanca estavam os feridos e os mortos. O enfermeiro tentou tratá-los o melhor possível. A população esperava ajuda de Dulo Gengelê. Combinou-se então o que fazer. Reunião difícil, longa, demasiado longo para alguns feridos graves.


Finalmente o consenso: os mortos, salvo erro dois ou três, seriam enterrados em Mussa Iéro e o choro ficava para depois, os feridos e a maior parte da população iam para Dulo onde já os esperavam. Outros, a maioria mulheres e crianças, vinham connosco para Candamã.


O regresso foi pela picada e mais rápido. Picadores à frente, militares a seguir e população atrás.


Mussa Iéro tinha ficado para trás. Acabara no dia 24 de Novembro de 1968. Em breve seria invadida pela mata e os homens dela se afastariam.


Meses depois, em Julho e Agosto do ano seguinte, na zona, não longe da antiga Tabanca, o inimigo construiu uma base. Dali saíram fortes ataques às Tabancas em autodefesa de Afiá, Candamã e Camará.


Estávamos em Galomaro (COP 7), mais propriamente em Nova Cansamba, e mandaram-nos regressar. A missão era descobrir a base inimiga. Com o caçador e guia Lhavo localizamos o santuário. Foi bonito vê-los e nada fazer.


Dois dias depois, a 18 de Agosto [de 1969], tropas pára-quedistas assaltaram, destruíram, causaram baixas e fizeram pelo menos um prisioneiro [ Malan Mané]. Acabara a base inimiga e os sobreviventes puseram-se em fuga. Passaram certamente perto de nós sem serem detectados. Caíriam e sofreriam mais baixas, mortos e feridos, numa emboscada montada pelo 3º Grupo de Combate da CART 2339, talvez quinze quilómetros depois na estrada Bambadinca/Xitole, próximo de Mansambo.


Um dos feridos graves foi Mamadu Injai, o Comandante da Zona. À noite a rádio IN pedia auxilio. Os Irãs, apesar de Mussa Iéro ser Tabanca Fula, tinham-se vingado.


O desgaste daqueles dias passou, assim, mais rápido e, pelo menos em mim, apareceu um sorriso e talvez tenha saudado os Irãs.


____________


Nota de L.G.:


(*) Vd. último poste da série > 29 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4435: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (7): Bissau, a caminho de Fá

quarta-feira, 3 de junho de 2009

Guiné 63/74 - P4458: Bem-vindo, Comandante Marcelino! Obrigado por ter tomado conta de mim na Guiné (José Eduardo Alves)

1. Mensagem de José Eduardo Alves, (Leça) (*), ex-Condutor da Cart 6250/72, Mampatá, 1972/74, com data de 29 de Maio de 2009:

Camaradas editores
Venho pela presente, dar as boas-vindas, ao blogue do meu ex-Comandante de Companhia, CART 6250, Os Unidos de Mampatá. (**)

Não é demais, saudá-lo, pois é uma pessoa que eu sempre admirei, e já lhe agradeci pessoalmente por ter tomado conta de mim na Guiné, pois eu era tão revoltado com a tropa que às vezes me portava mal, mas graças a ele, tenho a Caderneta Militar limpa. É um homem com um grande coração, pois conduziu muito bem os homens que lhe foram confiados, não é por acaso que vem dar a cara em todos os convívios que se realizam anualmente, e é de realçar o carinho que toda gente tem por ele.

Não posso deixar de dizer que há três anos lhe falei desta família, embora só agora tenha aparecido. Seja bem-vindo a esta casa. Devo dizer que por este amarelo sempre tive apreço, só gostava que ele me explicasse porque é que na minha caderneta militar está que eu fui transferido para a 1.ª Rep do QG, em Bissau, e eu nunca saí de Mampatá. Eu era para ser transferido, para ser condutor do Carlos Fabião, que era o Comandante das Milícias da Guiné, ou coisa parecida, porque o condutor dele tinha acabado a comissão. Numa passagem por Bissau orientei-me, mas o meu Comandante deixou que todos os papéis fossem feitos, acabando eu por ficar em Mampatá. Muito obrigado.

Como estou à vontade, aqui vai uma pequena estória.

Estava eu de serviço à agua, porque inicialmente nós íamos buscar a agua a Aldeia Formosa, eram oito da noite, já estava a dormir, chega o sargento de ronda e chama:
- Oh Leça, você está de reforço.
- Mas eu não estive de serviço de dia, logo não posso estar à noite. Façam entrar a reserva.
- Já entrou, portanto você tem que ir para o posto 8.

Lá me convenceu. Cheguei ao posto, e pensei:
- Está bem.

Afinei o ouvido e da messe dos sargentos e oficiais vinha o toque da viola.
- Então é aquele que para os senhores não podia estar onde estou.

Que faço? Pego na G3 e dou duas rajadas. De imediato veio o sargento de ronda:
- Eh pá, que foi?
- Fique aqui, que eu venho já.

Fui à tabanca levar a arma e dizer ao Comandante Marcelino para mandar o da viola para o posto 8. Não vale a pena explicar a confusão que aquilo deu, mas eu é que não fui para o posto.

O Comandante Marcelino demorou dois dias a chamar-me e a convencer-me a aceitar um castigo, que foi sete dias a supervisionar a abertura de uma vala para nos abrigar em caso de ataque. Deu-me dois africanos para o trabalho, só que eu era tão querido na população que apareceram aí uns para me ajudar. Tive que explicar que o meu castigo eram os sete dias e não abrir a vala até ao fim, mas o sétimo dia foi perdoado.

Falta aqui dizer que convidei o Comandante Marcelino a ir comigo e com a minha esposa à Guiné, mas como o convite foi feito muito em cima da hora, não deu para aceitar. Acho que cumpri o meu dever, porque eu gostava que ele fosse. Talvez para o ano.

Eu sei que o trabalho no blogue tem sido intenso, por isso deixo ao vosso critério. Já mandei as fotografias para a adesão e perguntei se a minha esposa também pode fazer parte do blogue, porque ela diz que também foi militar, já que éramos casados quando fui para tropa.

Confirmo a nossa presença no Encontro em Ortigosa, s/dormida, José Eduardo Alves e Maria da Conceição M. Alves, afinal havia amarelos bons.

Sem mais por hoje, um grande abraço deste camarada de armas
J. Eduardo Alves
__________

Notas de CV:

(*) Vd. último poste da série de 30 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4442: Blogoterapia (105): Falando de camaradagem, de brancos e pretos (José Eduardo Alves)

(**) Vd. poste de 29 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4437: O Nosso Livro de Visitas (65): L.J.F. Marcelino, ex-Cap Mil da CART 6250, Mampatá, 1972/74

Guiné 63/74 - P4457: Memória dos lugares (27): Álbum fotográfico do Xime, CCAÇ 526, 1963/65 (Libério Lopes)





1. Em mensagem de 2 de Junho de 2009, Libério Lopes, ex-2.º Sarg Mil Inf da CCAÇ 526, Bambadinca e Xime, 1963/65 (*), enviava-nos 9 fotos para o álbum fotográfico do Xime.





Em mensagem de 2 de Junho de 2009, Libério Lopes (*), ex-2.º Sarg Mil Inf da CCAÇ 526, Bambadinca e Xime, 1963/65, enviava-nos 9 fotos para o álbum fotográfico do Xime.

Caro Luis Graça,

Junto envio algumas fotos tiradas no Xime em 1963 ou 1964. Servirão para enriquecer o álbum sobre o Xime.

A maioria da população do Xime era simpática connosco, e de vez em quando juntávamo-nos para umas danças africanas, nas quais eu gostava de participar.

Além disso os putos conheciam-me porque ainda os juntei para lhe dar umas aulas. Foi uma tentativa que não resultou, devido a não me ter sido concedido o tempo necessário para isso.

No Xime estava só um pelotão e éramos poucos para a missão militar que tínhamos em mãos. Foi pena porque a minha profissão era professor e, certamente, teria feito um trabalho mais útil. ´

Desses momentos de lazer anexo, abaixo, nove fotos. Um abraço do Libério Lopes,
(ex-2ºSarg Mil)

2. Comentário do nosso amigo, guineense da diáspora, Eng José Carlos Mussá Biai, natural do Xime, nascido no início da década de 1960:

Caro Luís

Fico sempre com muita emoção quando vejo fotos, sejam elas de paisagens ou gentes da minha terra-natal. Por isso deste vez não foi excepção.

Quanto as pessoas que estão nas fotografias, apenas a foto 9 é que tem duas caras que me são familiares. Trata-se de um primo e um tio.

Mas de qualquer maneira por alguns bons minutos voltei a Xime.

Um abraço e muita saúde,

José C. Mussá Biai


Foto 1 - Grupo de mulheres do Xime, comigo ao lado.

Foto 2 – Batuque, comigo no meio.




Foto 3 – Batuque, sempre comigo no meio.


Foto 4 - Eu e a minha lavadeira, e salvo erro o seu filho.

Foto 5 – Elementos da população.



Foto 6 - Eu com um bebé que simpatizava muito comigo.




Foto 7 - Nesta estou com um chapéu colonial.

Foto 8 – Nesta estou com um chapéu colonial.



Foto 9 - O homem do chapéu colonial era nosso guia e morava junto ao quartel. O mais alto, acho que era o chefe da tabanca. Ia connosco para o mato e, devido á sua altura salvou-me de morrer afogado numa bolanha perto do Xime, num dia para esquecer.


Fotos: © Libério Lopes (2009). Direitos reservados
______________
Nota de M.R.:

Vd. último poste da série:



Guiné 63/74 - P4456: Blogpoesia (48): História de Portugal em sextilhas (Manuel Maia) (V Parte): III Dinastia (Filipina)



Guiné-Bissau > Região de Tombali > Cantanhez > Cafal Balanta > Destacamento da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4610 (1972/74) > Mais imagens do "apartamento de Cafal Balanta, na zona turística do Cantanhez"...

Recorde-se que o ainda periquito, nestas andanças bloguísticas, Manuel Maia foi Furriel Miliciano da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4610 (1972/74). Depois de sete a meses em
Bissum Naga (região de Bula, a norte de Bissau), participou na reconquista do Cantanhez, na Região de Tombali, no sul, o que implicou a ida de dois Grupos de Combate, (entre os quais o seu) para Cafal - Balanta, ficando adstritos à Companhia residente (que ali se encontrava apenas há dias).

Em Cafal Balanta, Manuel Maia e os seus camaradas vivem em condições duríssimas, em buracos escavados no solo, cobertos apenas por panos de tenda e folhas de palmeira. Esta co-habitação durou uns três a quatro meses até à chegada do resto da Companhia que foi destacada para Cafine (a cerca de 2 km de Cafal Balanta).

O resto da comissão foi dedicada à construção de reordenamentos para alojar a população local, até então sob controlo do PAIGC... "Foram nove ou dez meses ali passados, naquela zona minguada de tudo menos de mosquitos e balas" (MM)...

Fotos: © Manuel Maia (2009). Direitos reservados.


V parte da História de Portugal em Sextilhas, escritas pelo Manuel Maia, licenciado em História (ex-Fur Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4610, Bissum Naga, Cafal Balanta e Cafine, 1972/74) (*).




TERCEIRA DINASTIA (FILIPINA) (**)


152-Querendo obter a estima portuguesa,
Filipe, em Tomar, dá por certeza
respeito pela língua e cultura.
Garante ainda p´ro luso tesouro,
pertença da riqueza em prata e ouro,
dos, cheios, reais cofres dessa altura...


153-Sujeitos a forçada união
são alvo, os portugueses, da acção
das hordas de piratas holandeses,
que vendo a nossa armada destruída
vão ocupar colónias de seguida
e em Vera Cruz se juntam a franceses...


154-Já farto de opressão e humilhado
milagre busca o povo, angustiado,
quando ao Prior do Crato adere em massa.
Esforço patriota derradeiro,
magado pela acção do rei primeiro,
dos três, que a Espanha impôs à lusa raça.


155-Face à derrota fica inconformado,
pedindo apoio à França é ajudado,
com barcos, homens, mesmo cabedais...
Em S. Miguel, o esmaga, o opressor
que faz de si, de novo, perdedor,
mau grado auxílio inglês, ora em Cascais...



Defeat of the Spanish Armada, 8 August 1588 /
A derrota da Armada Invencível,
em 8 de Agosto de 1588.

Óleo (1796) de Philippe-Jacques de Loutherbourg (1740-1812)
National Maritime Museum, Greenwich Hospital






Fonte: Wikipedia Commons. Domínio público.







156-Prepara Espanha a Armada Invencível
julgando que a vitória era possível
sobre Inglaterra a quem vai invadir.
À força lusa é imposto envolvimento
de apoio ao espanhol atrevimento,
e o mito filipino vai ruir...


157-Rondando como abutres, rês ferida,
sabendo a nossa armada destruída,
saqueiam Portugal, os vis ingleses.
Interesses lusos, alvos atacados,
sem forças para verem rechaçados,
piratas e corsários holandeses...


158-Depois do rei Prudente, o filho assume
um tempo de rudeza e azedume
que faz germinar ódios na Nação.
Ao publicar tão vis Ordenações,
O Pio exponencia mil razões
p´ra já bem explosiva situação...


159-Um Pio muito pouco apiedado,
com mouros/descendentes agastado,
a quem vai expulsar de Portugal...
Chamando para seu governador
o tão famigerado vil traidor,
gerou um forte clima emocional...


160-A saga filipina avançará:
terceiro aqui é já o quarto lá,
mais opressor ainda que anteriores.
Impostos são garrote asfixiante
vexame cada vez mais ultrajante,
havia que expulsar os invasores...


161-Se na primeira fase houve acalmia,
pois nobres têm sempre a tença em dia...
segunda etapa é fogo de vulcão.
Agravo tributário é uma constante,
o povo abomina o ocupante,
no sul, Manuelinho entra em acção...


162-Prisões são arbitrárias, quais insultos,
gerando mil protestos e tumultos,
no ar pairava a sede de vingança...
Mil seis quarenta estava no final,
Dezembro em pleno dia inaugural,
foi marco, para a Casa de Bragança...


163-A vida alentejana de acalmia
que o duque para sempre pretendia,
forçada a corte abrupto, teve um fim.
P´ra trás ficou de vez Vila Viçosa,
que a Pátria está de si esperançosa,
fidalgos receberam o seu sim...


164-Sucesso da revolta determina
que seja um sucessor de Catarina,
duquesa de Bragança, a governar.
João Pinto Ribeiro e sublevados,
quarenta atacam paço esperançados
da honra, então poderem reganhar...

165- ‘stratégia tem João Pinto Ribeiro
a dirigir o acto aventureiro
que D. João iria sancionar.
O povo só mais tarde é informado
e logo adere assaz entusiasmado,
saindo à rua p´ro rei aclamar...


166-Tal como a foice corta a erva ruim,
também a Vasconcelos se deu fim
na lâmina afiada de uma espada,
que vai trazer, de volta, a dignidade
a um povo que vivia a adversidade,
sentindo ocupada a Pátria amada...


167-Sessenta anos tempo deste jugo,
que teve o castelhano por verdugo
e apoio vil, de, poucos, nobres lusos.
Renasce a fé e a esp´rança de vivência
agora retomada a independência,
punidas as traições e os abusos...

© Manuel Maia (2009)

[Fixação / revisão de texto: L.G.]

__________

Notas de L.G.:

(*) Vd.postes de:

13 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3886: Tabanca Grande (118): Manuel Maia, ex-Fur Mil, o poeta épico da 2ª Companhia do BCAÇ 4610/72 , o Camões do Cantanhez

14 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3890: Tabanca Grande (119): Apresentação de Manuel Maia ex-Fur Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4610 (Guiné, 1972/74)

20 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3915: Cancioneiro do Cantanhez (1): De Cafal Balanta a Cafine, Cobumba, Chugué, Dugal, Fatim... (Manuel Maia)

27 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4087: Blogpoesia (33) : O bardo de Cafal Balanta (Manuel Maia)

(**) Vd. postes anteriores desta série:

2 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4274: Blogpoesia (43): A história de Portugal em sextilhas (Manuel Maia)

3 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4278: Blogpoesia (44): A história de Portugal em sextilhas (II Parte) (Manuel Maia)

6 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4290: Blogpoesia (45): História de Portugal em Sextilhas (Manuel Maia) (III Parte): II Dinastia, até ao reinado de D. João II

15 de Maio de 2009 >Guiné 63/74 - P4351: Blogpoesia (47): História de Portugal em sextilhas (Manuel Maia) (IV Parte): II Dinastia (De D.Manuel, O Venturoso, até ao fim)

Guiné 63/74 – P4455: Estórias cabralianas (50): Alfero, de Lisboa p'ra mim um Fato de Abade (Jorge Cabral)

Guiné > Zona Leste > Nova Lamego > Canjadude > CCAÇ 5 (1968/70) > O Alferes Capelão Libório, açoriano, celebrando missa, em 12 de Maio de 1969, num altar improvisado, e acolitado pelo ex-Fur Mil Trms Inf José Martins (*)

Foto: © José Martins (2006). Direitos reservados


O Jorge Cabral (no lado direito), fotografado com o Puim (ao centro) e o Durães (à esquerda), no 3º Convívio do pessoal da CCS do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72) e subunidades adidas, em 16 de Maio de 2009, em Viana do Castelo (**).

Foto: © Benjamim Durães (2009). Direitos reservados

1. Mensagem, de ontem, do Jorge Cabral:

Caros Amigos!

Desde Dezembro de 2005 que diariamente consulto este nosso Blogue. São já duas comissões e estou pronto e meter o chico para muitas mais…

Gosto de tudo, mesmo do que não gosto… e só lamento não serem mais os Camaradas a intervir. O não saber mexer no bicho-computador não serve de desculpa, pois podem recorrer aos filhos ou aos netos…

Infelizmente a minha vida profissional não me dá tempo para comentar tudo o que queria e era muito… Talvez a partir de 2010…

Na Guiné vivi sempre em Destacamentos [Fá e Missirá], pelo que mesmo em Bambadinca fui apenas visita… embora assídua e às vezes copofónica. Quanto a Bafatá só lá ia, desenfiado e à pressa, frequentando damas, o Teófilo e as Libanesas. (Nunca comi, por exemplo, o famoso bife da Transmontana).

Ainda assim, conheci a Ritinha, cujo pai, a certa altura, pretendeu pôr de namoro com o Furriel Branquinho… e claro também o Xame, o Homem dos dentes de ouro, ao qual cheguei a solicitar orçamento.

Não fui Comando, nem Ranger, mas pertenci a uma tropa muito especial. Dos meus Soldados, Sambaros, Dembas, Mamadus, Alfas, Djangos, Abdulais, Chernos… guardo as melhores recordações e conservo na cintura o ronco-mezinha, que eles me ofereceram no Xime, quando de partida para a minha primeira operação.

No dia 16 de Maio último, lá estive em Meadela com a malta do [BART] 2917, tendo então oportunidade de abraçar o Padre Puím e relembrar-lhe a missa que ele rezou em Missirá.

A propósito, envio estória

Abraços Grandes
Jorge Cabral

P.S.: Conheci bem o Luís Cabral [1931-2009]. Estive com ele, aqui em Lisboa, algumas vezes. Falámos da Guiné, dos Irãs, do Macaréu e principalmente dos Cabrais. Tal como eu, chamava-se Almeida Cabral. Descobrimos um antepassado comum – um tal Padre Cabral, que teve vinte e um filhos em Cabo Verde. Era um Homem simpático e afável. Quanto ao mais, a História o julgará… JC


Fotografia do Cónego, guineense, nascido em Bissau, Marcelino Marques de Barros (1844-1928). Documento extraído do artigo "Antiguidades do Ultramar: II. Organizações das Missões da Guiné (Projecto de 1880)", por António Lourenço Farinha, antigo missionário em Moçambique. In: O Missionário Católico, de 1931, p. 155. (***)

Imagem: © Beja Santos / Luís Graça & Camaradas da Guiné (2008). Direitos reservados.


2. Estórias cabralianas (50) > FATO DE ABADE
por Jorge Cabral (****)

- Meu Alferes! Meu Alferes! Já chegou o Senhor Abade!

O cozinheiro Teixeirinha, todo eufórico, gritava, à porta do meu abrigo.

- Abade - pensei comigo - , o Puím?

Magro, simples, humilde, o único Capelão que conheci na Guiné, viera de sintex e, antecipando-se, não esperara por ninguém, entrando no Quartel. Logo após o descanso, a missa foi celebrada, mesmo ao lado da Cantina, no local da Escola. Fiéis, sete, dois comungantes e o Padre, de paramentos verdes.

Uma missa em Missirá devia ser novidade, mas os Africanos, respeitosos, apenas de longe observaram. Foi em Dezembro de 1970 e logo no mês seguinte eram as minhas férias.

Antes da partida, como de costume, soldados e milícias, fizeram uma longa fila, a fim de pedirem, o que queriam da Metrópole. Pulseiras de prata, fios de ouro, uma gabardine, botões de punho, máquinas fotográficas… porque para eles, ao Alfero em Lisboa tudo seria possível.

A encerrar a fila, surgiu o Sitafá, um puto que vivia connosco desde Fá, ajudando na cozinha… e cuja ambição era ser Comando Africano.

Estranhei vê-lo e indaguei no gozo:
– E tu, Sitafá? Se calhar queres que te traga uma bajuda?!...

Timidamente, o rapaz balbuciou:
– Alfero, eu queria um Fato de Abade.

© Jorge Cabral (2009)
________

Notas de M.R.:

(*) Vd. poste de 12 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXLVI: Procissão em Canjadude ou devoção mariana em tempo de guerra (José Martins)

(...) Todas as unidades a nível de batalhão ou escalão superior incluíam no seu quadro de pessoal um sacerdote católico romano que, depois de uma breve instrução militar na Academia Militar e graduado no posto de Alferes, acompanhava as unidades combatentes para África, para as apoiar moral e religiosamente durante a sua comissão de serviço

Na zona onde se encontrava a minha companhia, Nova Lamego, o capelão do batalhão ali estacionado e que dirigia a actividade daquele sector, era o padre Libório, natural dos Açores, que, na sua missão de visitas de rotina a todos os destacamentos da área do Batalhão, se encontrava a passar uns tempos em Canjadude.

Na manhã de 12 de Maio de 1969, logo ao pequeno almoço, confidenciou que gostaria de fazer uma cerimónia especial nesse dia, já que se celebrava o 51º aniversário da primeira aparição, em Fátima, de Nossa Senhora aos pastorinhos. (...)

(**) Vd. poste de 18 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4372: Convívios (131): CCS / BART 2917 (Bambadinca, 1970/72), com o Arsénio Puim e os filhos do Carlos Rebelo (Benjamim Durães)

(***) Vd. poste de 17 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3642: Historiografia da presença portuguesa (14): A exótica Bissau do Séc. XVII e o papel de D. Frei Vitoriano Portuense (Beja Santos

(****) Vd. poste anterior, desta série em:

12 de Maio de 2009> Guiné 63/74 - P4326: Estórias cabralianas (49): Cariño mio... Muy cerca de ti, el ultimo subteniente romántico (Jorge Cabral)

(...) Dois dias depois de chegado a Bambadinca em meados de Junho de 69, fui mandado montar segurança no Mato Cão. Periquitíssimo, cumpri todas as regras, vigiando a mata de costas para o rio, sem sequer reparar na beleza da paisagem.

Mal sabia então, que ali havia de voltar dezenas de vezes, durante o ano que passei em Missirá. Pelo menos uma ida por semana para ver passar o Barco, no que se transformou numa quase agradável rotina.(...)

terça-feira, 2 de junho de 2009

Guiné 63/74 - P4454: Convívios (143): Castro Daire, agora chão de Bambadinca, 1968/71 (3): Gente feliz, com lágrimas...

Castro Daire > Freguesia de Monteiras > Zona Industrial da Ouvida > Restaurante P/P > 30 de Maio de 2009 > 15º Convívio do pessoal de Bambadinca, 1968/71, CCS do BCAÇ 2852, CCAÇ 12 e outras subunidades adidas (*) > Organização: Adélio Monteiro, ex- Sold Cond Auto da CCAÇ 12, natural de Monteiras, Castro Daire, e hoje um próspero comerciante e um poderoso chefe de clã familiar, com múltiplos talentos musicais. ( Para ele e para a família, vai daqui um grande, grande Alfa Bravo... O Adélio vai ter direito a um poste especial, um dia destes, na Série Os Nossos Seres, Saberes e Lazeres).

A nossa Tabanca Grande esteve orgulhosamente representada ao peito do Jaime Machado, de Matosinhos (foi Alf Mil Cav do Pel Rec Daimler 2046, Bambadinca, 1968/70)...

Castro Daire > Freguesia de Monteiras > Zona Industrial da Ouvida > Restaurante P/P > 30 de Maio de 2009 > 15º Convívio do pessoal de Bambadinca, 1968/71, CCS do BCAÇ 2852, CCAÇ 12 e outras subunidades adidas (*) >

O crachá da CCAÇ 12 (originalmente, CCAÇ 2590) (Contuboel e Bambadinca, 1969/71)... Nem toda a gente pôde vir, como foi o caso do ex-Cap Inf QP, Carlos Brito, hoje Cor Ref, que vive em Braga e está bem de saúde, segundo nos garantiram... Daqui vai, para ele, um abraço e votos de longa vida...

Castro Daire > Freguesia de Monteiras > Zona Industrial da Ouvida > Restaurante P/P > 30 de Maio de 2009 > 15º Convívio do pessoal de Bambadinca, 1968/71, CCS do BCAÇ 2852, CCAÇ 12 e outras subunidades adidas (*) >

Três camaradas da CCAÇ 12 (Contuboel e Bambadinca, Junho 69/ Março 71): o ex-Fur Mil Joaquim Fernandes, ex-1º Cabo Aux Enf Fernando Sousa e o ex-Fur Mil António Marques... O Fernandes e o Marques foram vitimas de explosão de minas A/C, à saída do reordenamento de Nhabijões, a 13 de Janeiro de 1971, com vinte meses de comissão... O Marques, que teve às portas da morte (se não fora a evacuação Y para o Hospital de Bissau), "ganhou" mais "dois anos de comissão" (desta vez, no "estaleiro")...

Castro Daire > Freguesia de Monteiras > Zona Industrial da Ouvida > Restaurante P/P > 30 de Maio de 2009 > 15º Convívio do pessoal de Bambadinca, 1968/71, CCS do BCAÇ 2852, CCAÇ 12 e outras subunidades adidas (*) >

O Fernandes, o nosso Engº Fernandes, mostra à actual companheira uma foto do burrinho em que seguia, ao fim da manhã do dia 13 de Janheiro de 1971, com outros camaradas... O sold cond auto Soares, da CCAÇ 12, teve morte imediata.

Castro Daire > Freguesia de Monteiras > Zona Industrial da Ouvida > Restaurante P/P > 30 de Maio de 2009 > 15º Convívio do pessoal de Bambadinca, 1968/71, CCS do BCAÇ 2852, CCAÇ 12 e outras subunidades adidas (*) >

O ex 1º Cabo Cozinheiro, de apelido Carneiro, que serviu em Bambadinca na messe de oficiais e de sargentos, e pertencia à CCS do BCAÇ 2852, explica ao Fernandes e à sua companheira como é que se confeccionavam, na época, as famosas iguarias gastronómicas de Bambadinca... e ao mesmo tempo dava conta da sua alegria por estar ali, com os seus antigos camaradas... Exerce hoje funções numa empresa de segurança (creio que em Lisboa). Conseguiu uma troca de turno para poder estar ali....

Castro Daire > Freguesia de Monteiras > Zona Industrial da Ouvida > Restaurante P/P > 30 de Maio de 2009 > 15º Convívio do pessoal de Bambadinca, 1968/71, CCS do BCAÇ 2852, CCAÇ 12 e outras subunidades adidas (*) >

O ex-1º Cabo Valente, do 1º Grupo de Combate, da CCAÇ 12, comandado pelo Alf Mil Op Esp Francisco Magalhães Moreira (residente em Santo Tirso) que, mais uma vez, não compareceu ao convívio, com muita pena dos seus camaradas... O Manuel Monteiro O. Valente, residente hoje em Vila Nova de Gaia, era atirador de infantaria e também o "nosso baeta", nas horas vagas... Quantas bardas e cabelos não cortaste tu, camarada ?

Castro Daire > Freguesia de Monteiras > Zona Industrial da Ouvida > Restaurante P/P > 30 de Maio de 2009 > 15º Convívio do pessoal de Bambadinca, 1968/71, CCS do BCAÇ 2852, CCAÇ 12 e outras subunidades adidas (*) >

O ex-Sold Radiotelegrafista João Gonçalves Ramos, residente na Quinta do Conde / Barreiro. Foi um pai para o puto Umaru Baldé, que veio morrer a Portugal, de Sida e de Tuberculose... (Uma história, triste e bonita ao mesmo tempo, para contar aqui um dia destes).
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O José Almeida, ex-Fur Mil Trms, da CCAÇ 12, captado pelo zoom indiscreto do fotógrafo...

Castro Daire > Freguesia de Monteiras > Zona Industrial da Ouvida > Restaurante P/P > 30 de Maio de 2009 > 15º Convívio do pessoal de Bambadinca, 1968/71, CCS do BCAÇ 2852, CCAÇ 12 e outras subunidades adidas (*) >

Numa das mesas, ao centro, junto à parede, o nosso ex-Fur Mil Trms José Almeida, reformado da RDP, que mora em Óbidos, e será o organizador do 16º Convívio, em 2010. Ao seu lado direito, a esposa... Em frente, o Murta, ex-1º Cabo Cripto...


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O ex-1º Cabo Cripto José António Damas Murta... Teve mais sorte do que o outro 1º Cabo Cripto Gabriel da Silva Gonçalves, que teve que esperar quase três meses pelo seu periquito...

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O António Marques e o Fernando Sousa (cujo soro salvou muitas vidas no mato; há tempos deram-lhe lá, no seu café da Trofa, um copo que, em vez de água, tinha um detergente corrosivo... Esteve às portas da morte, internado nos cuidados intensivos, em Coimbra, mas a estrelinha da sorte, que o protegera na Guiné, voltou a brilhar para ele)... Tive pena de não poder dar um abraço ao nosso querido ex-Fur Mil Enf João Carreiro Martins, hoje Enf Chefe Ref, do Hospital Curry Cabral... (Curiosidade: foi meu aluno no princípio dos anos 90, na antiga Escola Superior de Enfermagem Maria Resende, hoje integrada na Escola Superior de Enfermagem de Lisboa)...

Castro Daire > Freguesia de Monteiras > Zona Industrial da Ouvida > Restaurante P/P > 30 de Maio de 2009 > 15º Convívio do pessoal de Bambadinca, 1968/71, CCS do BCAÇ 2852, CCAÇ 12 e outras subunidades adidas (*) >

O ex-Fur Mil Patuleia, antigo dirigente da ADFA - Associação dos Deficientes das Forças Armadas, que ficou cego com o rebentamento de uma mina, em Angola, é já uma habitué dos nossos convívios... Veio pela mão do António Marques, seu companheiro de infortúnio no Hospital Militar Principal... É meu vizinho e amigo, natural do Bombarral...

Castro Daire > Freguesia de Monteiras > Zona Industrial da Ouvida > Restaurante P/P > 30 de Maio de 2009 > 15º Convívio do pessoal de Bambadinca, 1968/71, CCS do BCAÇ 2852, CCAÇ 12 e outras subunidades adidas (*) >

Um homem das secretas, o ex-Fur Mil, das Informações e Operações, da CCS do BCAÇ 2852... Vive em Resende, é empresário, pintor, gestor de um turismo de habitação... Em primeiro plano, aparece o nosso querido cartógrafo, o ex-Fur Mil Op Esp Humberto Reis (CCAÇ 12, 1969/71)... É meu vizinho, de Alfragide. Desta vez veio sem a sua Teresa, que ficou em casa, adoentada...

Castro Daire > Freguesia de Monteiras > Zona Industrial da Ouvida > Restaurante P/P > 30 de Maio de 2009 > 15º Convívio do pessoal de Bambadinca, 1968/71, CCS do BCAÇ 2852, CCAÇ 12 e outras subunidades adidas (*) >

Mais dois camaradas da CCAÇ 12: o ex-1º Cabo Trms Inf António Domingos Rodrigues, de Torres Novas (organizador do 14º Cónvívio, em 2008); e o ex-1º Cabo Ap Armas Pesadas José Manuel P. Quadrado, que vive hoje na Moita (como não havia armas pesadas na CCAÇ 12, a ele e a mim deram-nos uma G3 de presente...).

Castro Daire > Freguesia de Monteiras > Zona Industrial da Ouvida > Restaurante P/P > 30 de Maio de 2009 > 15º Convívio do pessoal de Bambadinca, 1968/71, CCS do BCAÇ 2852, CCAÇ 12 e outras subunidades adidas (*) >

Uma das mesas, com os convívios... Junto à parede, do lado esquerdo, o ex-Alf Mil Cav Jaime Machado, que comandou o Pel Rec Daimler 2046, Bambadinca, 1968/70 (Saiu em Março de 1970, tendo sido substituído do J.L. Vacas de Carvalho, se não me engano). É membro da nossa Tabanca Grande.

Castro Daire > Freguesia de Monteiras > Zona Industrial da Ouvida > Restaurante P/P > 30 de Maio de 2009 > 15º Convívio do pessoal de Bambadinca, 1968/71, CCS do BCAÇ 2852, CCAÇ 12 e outras subunidades adidas (*) >

O ex-Fur Mil Sapador, da CCS / BCAÇ 2852, José Manuel Amaral Soares, que reside em Caneças. Também já foi organizador de um dos anteriores encontros.

Fotos e legendas: © Luis Graça (2009). Direitos reservados
________

Nota de L.G.:

(*) Vd. postes anteriores desta série:

31 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4444: Convívios (138): Em Castro Daire, agora chão de Bambadinca, 1968/71 (1): O reencontro na capela de N. Sra. da Ouvida

31 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4446: Convívios (139): Castro Daire, agora chão de Bambadinca, 1968/71 (2): A música, a festa, a dança no planalto beirão

Guiné 63/74 - P4453: Vindimas e Vindimados (José Brás) (1): O Correio da Malta... e o enfermeiro, herói do dia



1. Primeira história da série "Vindimas e Vindimados", baseada no título do livro de José Brás, ex-Fur Mil da CCAÇ 1622, Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68, "Vindimas no Capim", que foi Prémio de Revelação de Ficção de 1986, da Associação Portuguesa de Escritores e do Instituto Português do Livro e da Leitura.



O Correio da Malta

O Correio da Malta

Era dia de DO.
Sabíamos que era dia de DO porque recebêramos de Bissau em mensagem cifrada e passada a claro no bidão, por mim próprio, Furriel de Transmissões da Companhia, fuçando sozinho no emaranhado dos códigos, privado do trabalho do Cabo Telegrafista em visita ao hospital da cidade.

Chamávamos de bidão ao meu quarto privativo, talvez o lugar mais recatado de Medjo por ser nele que funcionava a xerete do sítio, não mais que mesa tosca no cantinho ao fundo do pardieiro, junto aos pés da cama, pastas com nomes adequados, codoper, codoperex, Horus, Zeus, uns de linguagem quase aberta, outros complicados de abrir.

E bidão lhe chamávamos, porquê?

Por isso mesmo. Porque era um bidão, latão de duzentos litros, aberto à bordoada cortante, tornado lata mais ou menos direita e posta na vertical de molde a utilizar o lado mais comprido como pé direito da sala. Várias latas daquelas interligadas por lâminas de adobe, um telhado de zinco com duas águas, dois e meio por dois e meio de anchura, e aí tínhamos um verdadeiro e secreto escritório dos Serviços de Transmissões da Delegação do Exército Português, neste caso a minha Companhia que calhava estar por aquelas bandas naquele tempo, a meia dúzia de quilómetros do corredor de Xinxi-Dari e de Salancaur, com estrada fechada para Bedanda e aberta para Guiledje, se não estou em erro, sete quilómetros de boa travessia em tempo seco e como vocês sabem, de trabalho cansado e longo em tempo de chuva.

A saída a Guiledje tinha dois objectivos. Um, levar o Capitão que apanhava a DO de regresso a Bissau; outro, o de agarrar os sacos do correio para a malta que dele carecia tanto como de pão.

E falo de pão, talvez sugestionado pela falta que frequentemente nos fazia, sempre que o PAIGC nos visitava na cortesia de morteiro e canhão sem recuo e nos abatia o forno mais uma vez.
Nunca entendi bem que diabo de construção era aquela que desabava tão amiúde.

Por via das coisas (as coisas aqui eram a proximidade de vizinhos tão incómodos e a existência de população civil dentro do quartel), deu-se a esta saída, com era hábito rotineiro, um carácter muito sigiloso, apenas duas Secções que fingiam ir por água à fonte, antes mesmo da passagem do aviãozinho que sabíamos viria abanar asas à vertical, momento azado para a teatral e exuberante faz de conta da surpresa, como se fosse aquele o instante exacto da tomada de conhecimento da coisa, "éh pá, correio! Tá bem mas hoje já não pode ser, fica para amanhã, sargentos do quarto, organizem-se! Porra, é sempre ao quarto que calha o prémio", coisas do estilo, ingenuidades de quem ensinava o padre nosso ao vigário.

A estrada estava seca, minuciosamente picada na ida, capitão entregue, sacos na mão, dois unimogues de motor aceso, ala que se faz tarde, de regresso a Medjo, condutores batidos, rectas prolongadas, cem à hora na pressa de fazer o caminho, pressa maior ainda do que a vontade de chegar.

E um Cabo Enfermeiro!

E um Cabo Enfermeiro que veio de Bissau para nos ajudar em Medjo e não podemos esquecê-lo retido em Guiledge, no risco, depois, de nada do que se dirá adiante poder ser dito porque não acontecido.

Expliquemos!

Cada Companhia em quadrícula tinha, como é que hei-de dizer, a sua Delegação de Saúde, própria para tratar de equimoses, de sinais de enxaquecas, de blenorragias… às vezes, mesmo, de pequenas cirurgias apressadas.

Um Furriel e um Cabo ou dois.

Acontece que na minha Companhia, episodicamente ficámos sem ninguém, o Furriel de férias em Lisboa e o Cabo de baixa em Bissau, de filarse, de caganeira, ou de simples maluquice.

Bissau resolveu enviar-nos um que ocupasse o lugar durante a falta dos nossos, e foi ali que caiu, de pára-quedas, quase, na mesma DO do correio.

Era um tipo de bom talhe físico, exuberante em trejeitos e maneiras de falar, assim como… costumamos chamar de femininas, esquecendo que dentro de cada homem, mais nuns que noutros, existe sempre, também uma parte da mãe que nos pariu.

Os soldados logo ali se reuniam em cochichos e olhares de lado, risinhos abafados, e tal.

Aí a meia viagem, sei lá, a uns cinquenta metros, se tanto, de uma ligeira curva à esquerda, as rajadas estoiraram no coração de cada um.

O unimog da frente, directamente atingido por fogo feito a poucos metros, chupa com um rajada em cheio, começa a travar, sai da estrada e imobiliza-se logo ali, ligeiramente atravessado, ligeiramente inclinado em pranchamento à direita mas ainda com parte da carroçaria na berma.

Dos ocupantes, um Alferes apanhou com três balas numa perna, um Soldado negro de Aldeia Formosa que havia apanhado boleia na DO só para vir matar saudades que tinha da malta, leva também a sua conta, dois Soldados mortos na carroçaria, um que nem chegou a levantar-se, tendo caído de imediato sobre umas baterias que viajavam connosco para substituições, outro que se levanta, é atingido e malha no pó ainda antes da paragem da viatura.

O Cabo Calçada é apanhado já em pleno salto. Uma rajada nas costas que lhe há-de levar a maior parte de um pulmão, deixa-o também fora de combate.

Isto tudo passa-se em menos de um ai, por assim dizer, que nestas cenas, soldados sentados no duplo banco corrido da carroçaria de um unimog, têm molas nas pernas e não iriam esperar que a viatura parasse para comodamente dela descerem.

Já nem me recordo se houve mais feridos, lembro sim que ficámos com sete ilesos e a disparar o troco, cabeças na orla da mata, com as rajadas inimigas a varrerem o meio da estrada, sem poderem utilizar a bazuca contra a barreira de mata no nariz do pessoal, nem o morteiro sessenta, pelas mesmas razões e porque o combate se travava com uma distância de quinze ou vinte metros entre os dois lados. O Soldado Lixa, nem se lembra porquê, arrisca o salto para um bagabaga e do outro lado descobre guerrilheiro inimigo. Recua e grita:

- Olha um turra - ouvindo o outro que também recua e grita:
- Olha um branco.

A coisa estava preta e a tropa que saiu de Medjo na convicção que a escaramuça se desenrolava a um quilómetro, se tanto, que teria de correr três ou quatro para dar a mão aos amigos. Contudo, como o Pelotão de Auto-metralhadoras Fox com a sua Brownning 12,7 saiu de Guiledje a abrir e a malta do PAIGC, que também não deveriam ser muitos, achou por bem dar às de Vila Diogo, a corrida nem chegou a meio.

Outra coisa que ninguém mais esqueceu foi a imagem do Enfermeiro chegado de Bissau, indiferente ao tiroteio, cirandando sem parar debaixo daquele fogo danado, rastejando de ferido a morto, de morto a ferido, dando-lhes o melhor apoio que lhes podia dar na circunstância.

Nem um arranhão sofreu e o pessoal não acreditava como podia ser isso, se o fogo era intenso e certo e ele circulava por entre as balas como anjo imune.

No quartel, intervalando o choro pelos amigos mortos e feridos, o pessoal comentava: - O enfermeiro, hein?!

Foi mais uma verdade que antes tinham como certa e que ali se desfez nas cabeças e no coração, voltando o mundo de pernas para o ar e deixando-os de palavra presa na garganta.

Ter entre eles, como seu igual, o mais bravo, praticamente o único herói daquela bernarda em que se haviam visto, um homossexual assumido e evidente, ainda por cimo acabado de chegar do ar condicionado, era demais para as certezas com que haviam embarcado no Niassa.

Com muitas coisas se espantavam na Guiné estes soldados portugueses, cidadãos precários de Medjo.

E foi assim, naquelas partes da Guiné e naquele dia de estação seca, no ano da graça de 1967.

José Brás
__________

Nota de CV:

(*) Vd. poste de 4 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4279: Blogoterapia (101): Obrigado, Manuel Maia, emocionaste-me até às lágrimas (José Brás)

Guiné 63/74 - P4452: Controvérsias (19): O 'massacre do Pidjiguiti', em 3 de Agosto de 1959: o testemunho de Mário Dias

Guiné-Bissau > Bissau > c. 1975 > Novo mapa, pós-colonial, da capital da nova república, já com as novas designações das ruas, avenidas e praças, que vieram substituir o roteiro português: Av 3 de Agosto, Av Pansau Na Isna, etc. Veja-se a localização do porto do Pidjiguiti (para os barcos de pesca e de cabotagem), à esquerda do porto de Bissau (para os navios da marinha mercante).

Foto: © A. Marques Lopes (2006). Direitos reservados



1. No dia do enterro de Luís Cabral (1931-2009), achámos oportuno e pertinente recuperar o testemunho do nosso camarada e amigo Mário Dias sobre os trágicos acontecimentos do 3 de Agosto de 1959, que estiveram na sua origem um conflito laboral, opondo os trabalhadores portuários e os marinheiros da Casa Gouveia à respectiva gerência local que se recusava a proceder à actualização (anual) dos salários.

Desde o seu regresso à Guiné, em 1953, Luís Cabral era contabilista (ou guarda-livros, como se dizia na época) na Casa Gouveia, um emprego que lhe tinha sido arranjado pelo próprio irmão, o Engº Agrónomo Amílcar Cabral. Trabalhador-estudante, terá completado em 1958 o 5º ano. Em 1956, era um dos co-fundadores do clandestino PAIGC. E em 3 de Agosto de 1959 foi testemunha do 'massacre do Pidjiguiti' (*)

(…) "Da varanda do meu apartamento que estava situado frente ao porto, pude presenciar a parte final do monstruoso crime da caça ao homem no rio Geba. O sol desaparecera nessa tarde dos céus de Bissau; a atmosfera pesada e escura parecia gritar com o povo.

"A tarde sangrenta de 3 de Agosto fizera mais de cinquenta mortos e muitas dezenas de feridos entre os marinheiros pacíficos que mais não queriam que viver um pouco melhor.

"Na noite de 3 de Agosto, reuni-me com o Aristides e o Fortes. Este, na sua qualidade de chefe da Estação Postal, tinha podido meter no correio, que devia partir na manhã seguinte, cópias de um comunicado elaborado rapidamente sobre os acontecimentos, endereçadas às principais emissoras escutadas em Bissau.

"Lembro-me bem que a Rádio Brazzaville, a BBC, a Rádio Conakry e a Rádio Dakar, estavam entre aquelas que receberam e difundiram a notícia que os colonialistas não queriam que saísse da Guiné. Simultaneamente, foi também enviado um primeiro relatório ao Amílcar que se encontrava nesse momento em Angola." (...)


Há 3 anos atrás, na I Série do nosso blogue, publiquei a versão do Mário Dias (**), que também foi testemunha dos acontecimentos, tal como Luís Cabral. E comentei o seu texto, mais ou menos nestes termos:

O massacre do Pidjiguiti é um dos mitos fundadores do PAIGC. Aliás, para os seus ideólogos, marca o início da luta de libertação nacional. O depoimento do Mário Dias é uma peça importante para se fazer a história recente da Guiné-Bissau: reivindicações laborais dos marinheiros do serviço da cabotagem das casas comerciais de Bissau (e, em particular, da Casa Gouveia, ligada ao grupo CUF - Companhia União Fabril) estiveram na origem de graves tumultos que foram prontamente reprimidos pelas autoridades portuguesas.

Trata-se de um depoimento que terá que ser tido em conta pelos nossos historiadores (tanto de um lado como do outro). E sobretudo por nós, portugueses e guineenses, que temos direito à verdade. Eu, pessoalmente, só conhecia (e mal) a versão do PAIGC (e de Luís Cabral), que fala em massacre, em 50 mortos e mais de um centena de feridos.

Na época - é bom lembrá-lo - a imprensa portuguesa não era livre, pelo que nunca nos poderia dar a, nós, metropolitanos (nem muito menos aos poucos guineenses que liam jornais ou ouviam rádio), uma versão isenta dos acontecimentos. Havia a censura, a polícia política, o partido único, o governo de Salazar... É bom não esquecê-lo (um recado que serve sobretudo para os mais novos mas também para os mais velhos, que eram umas crianças, nessa época: eu, por exemplo. tinha 11 anos...).

Infelizmente, eu não conhecia, em 2006, investigação de arquivo sobre este assunto. O historiador Leopoldo Amado tentou já fazer luz sobre este e outros acontecimentos que antecederam o início da guerrilha do PAIGC, na sua tese de doutoramento em história contemporânea, sobre a guerra colonial versus guerra de libertação, defendida em provas públicas, na Universidade de Lisboa (2007). Mas a sua perspectiva é sobre o Pidjiguiti é macro, não micro (***): ele não me parece trazer elementos novos, historiográficos, sobre os acontecimentos do 3 de Agosto, se bem que eu continue a aguardar a publicação, em livro, da sua tese de doutoramento, de há muito prometida...

Como é timbre do nosso blogue, temos procurado pautar-nos pela procura da verdade dos factos, tendo publicado, logo no primeiro ano (2005/06), alguns notáveis (e inéditos) documentos sobre a experiência da guerra na Guiné (1963/74).

Como então escrevíamos, "nenhum de nós é detentor da verdade. E a verdade não se resume aos factos: mais complexa é a sua análise e interpretação"... Mas também a sua recolha..

O depoimento do Mário Dias honrou (e continua a honrar) o nosso blogue. O Mário, que anda agora mais fugidio das lides blogísticas, é um homem que, sem negar os seus valores, a sua identidade e o seu passado, sempre revelou uma grande sensibilidade, sabedoria, humildade e honestidade intelectual...

Agradeço-lhe mais uma vez o ter confiado em nós para publicar a sua versão dos acontecimentos do 3 de Agosto de 1959. Ele não se arvora em dono da verdade. Simplesmente, ele foi uma testemunha (privilegiada) dos acontecimentos: ele estava lá em Bissau, no Pidjiguiti, nesse dia 3 de Agosto de 1959 (que é hoje dia de feriado nacional na República da Guiné-Bissau), na qualidade, algo insólita, de soldado recruta, cuja companhia, acabada de chegar de Bissalanca e a caminho do quartel em Santa Luzia, foi chamada à pressa para ajudar a repôr a ordem pública...

Essa circunstância valoriza muito a sua versão (presencial) do que ocorreu naquele dia e que, à distância de 47 anos, não podemos deixar de condenar e lamentar, como um dos episódios que ensombraram a presença portuguesa naquelas paragens... A mim, pessoalmente, como português, é um episódio da nossa história em África que me envergonha... Tal como me envergonham, enquanto homem e amigo da Guiné, os fuzilamentos do pós-independência, efectuados pelo PAIGC em nome da justiça revolucionária...

Já na altura tinha escrito que não ia entrar em polémica com ninguém (e muito menos com o nosso querido Mário) sobre a contabilidade dos mortos e o conceito (técnico-jurídico) de massacre. Nem sobre outros alegados massacres que terão occorrido na longa Guerra do Ultramar / Guerra Colonial, tanto na Guiné como nas outras duas frentes, Angola e Moçambique, a começar pelo terrível massacre de população civil cometido pela UPA no norte de Angola, em 1961.

No início de 2006, este assunto ainda era doloroso para todos nós. E fracturante. Mas também já não era tabu, com a criação de uma janela aberta, por e para os antigos combatentes de um lado e do outro, uma janela aberta para o debate (tanto quanto possível possível, sereno) sobre estes e outros fantasmas da guerra colonial que precisavam de ser exorcizados... (L.G.).

Guiné > Bissau > Ponte-Cais > 1969 > Postal Ilustrado, edição Foto Serra.

Foto: ©
Tino Neves (2006). Direitos reservados


1. Texto do Mário Dias (ex-sargento comando, Brá, 1963/66) (**)

Caro Luis:

Tinha guardado o propósito de falar sobre os acontecimentos de Agosto de 1959 no Pidjiguiti proximamente. Atendendo, porém, que eles têm sido referidos recentemente no blogue, antecipei a decisão. Espero que se consiga lançar um pouco de luz sobre esta tragédia de forma a que se evitem especulações futuras.


Um abraço
Mário Dias



Os acontecimentos do Pidjiguiti em 3 de Agosto de 1959 (depoimento de Mário Dias)

[Subtítulos, a bold, de L.G.]

Muito se tem escrito e comentado sobre os acontecimentos que tiveram lugar no cais do Pidjiguiti em 3 de Agosto de 1959. Eu estive lá. À época dos factos, cumpria o serviço militar obrigatório, ainda como recruta (o Juramento de Bandeira teve lugar uma semana depois, precisamente a 10 de Agosto) (***).

Para melhor entendermos a greve e consequente revolta dos marinheiros, há que recuar um pouco no tempo e no contexto em que se movimentava a actividade dos marinheiros.

As principais casas comerciais da Guiné (vou designá-las pelo nome abreviado como eram conhecidas, Casa Gouveia (CUF), NOSOCO, Eduardo Guedes, Ultramarina e Barbosas & Comandita, tinham ao seu serviço frotas de lanchas - umas à vela e outras a motor - que utilizavam no serviço de cabotagem transportando mercadorias para os seus estabelecimentos comerciais e, no regresso, traziam para Bissau os produtos da terra, principalmente mancarra e arroz. A maioria deste tráfego era pelo rio Geba, até Bafatá e, para o Sul, até Catió e Cacine.


(i) Tudo começou com um conflito laboral

Anualmente, essas empresas se reuniam para acordarem os salários a pagar aos diversos elementos da tripulação das embarcações. Esse acordo tinha a finalidade de ajustar o salário nas várias frotas, de forma a evitar concorrência no engajamento do pessoal. É claro que, embora efectivamente todos os anos fossem aumentados, os marinheiros não eram tidos nem achados nestas reuniões. Era comer e calar à boa maneira da época. O mesmo se passava, aliás, em relação ao preço a praticar anualmente na compra do amendoim (mancarra) e que era fixado por tabela governamental, ouvidos os comerciantes. Os agricultores não era ouvidos nem tinham voto na matéria.

Acordo estabelecido, as várias firmas comerciais começaram a pagar aos marinheiros o novo salário. Porém, a Casa Gouveia não procedeu ao aumento e continuou a pagar pela tabela do ano anterior. Passaram-se meses e os marinheiros questionavam o gerente - na altura o ex-funcionário do quadro administrativo Intendente Carreira - sem resultados e até com uma certa sobranceria, tique que lhe deve ter ficado dos tempos de funcionário administrativo. Com o descontentamento a aumentar e ânimos cada vez mais exaltados se chegou à tristemente célebre tarde de 3 de Agosto de 1959.

E agora o relato dos acontecimentos por mim presenciados e conforme informações na altura colhidas.


(ii) O triângulo Santa Luzia, Bissalanca e Pidjiguiti: uma companhia de recrutas ao serviço da lei e da ordem

Nesse dia passou por Bissau, a caminho de Angola, uma alta entidade da Força Aérea. Ocupava no governo, salvo erro, o cargo de Secretário de Estado de Aeronáutica. Fosse qual fosse a sua função, a verdade é que tinha direito a honras militares à sua chegada ao aeroporto. Não havendo outra tropa com capacidades para tal missão, embora ainda recrutas e como tal impedidos regulamentarmente de prestar guardas de honra, acabámos por ser nós a fazê-lo. Bem limpos e engraxados, mauser com baioneta calada, luvas brancas, partiu a Companhia de Recrutas para Bissalanca (****).

A cerimónia decorreu de forma brilhante (nós éramos um espanto!) e iniciámos o regresso ao nosso quartel em Santa Luzia. Ao aproximarmo-nos da praça do Império, comecei a reparar que muita gente se dirigia apressadamente, alguns até corriam, em direcção ao rio. E, um pouco antes de atingida essa praça, fomos interceptados pelo comandante da companhia, capitão Teixeira, que se dirigiu ao oficial que comandava a coluna, tenente Vaz Serra, com quem esteve a conversar por alguns momentos.

Retomada a marcha, ficámos todos surpresos por virarmos à direita em direcção ao rio em vez de à esquerda para Santa Luzia. Conforme descíamos a avenida da República víamos que algo devia estar a acontecer pois cada vez havia mais pessoas aglomeradas e maior era a agitação que demonstravam.


(iii) Polícias africanos armados de espingardas Lee Enfield 7,7 mm

A certeza tive-a quando, já perto da Casa Gouveia, vi, em cima de um camião que seguia para o hospital, vários homens em grande exaltação. Um deles ficou-me na memória: de pé, escorrendo sangue de um ombro, barafustava e agitava os braços, dava punhadas no peito como um possesso. Impressionante! Ainda hoje, passados todos estes anos, quando se fala destes acontecimentos do Pidjiguiti, é esta a imagem que me ocorre.

Chegados ao local, vi uma considerável multidão nas imediações, os portões do Pidjiguiti encerrados e uma força da PSP, constituída por pouco mais de uma dezena de seguranças, como chamávamos aos polícias africanos, armados com espingardas Lee Enfield 7,7 mm, enquadrados por 2 ou 3 graduados europeus.

Na altura já tinham terminado os tiros e encontravam-se apenas a conter a multidão e a evitar que os marinheiros e trabalhadores do cais de lá saíssem em direcção à Casa Gouveia. Fomos mandados apear das viaturas e só então nos deram as indicações da nossa missão que foi, simplesmente, cercar os terrenos anexos ao Pidjiguiti (no local onde mais tarde nasceram as Oficinas Navais e instalações da Marinha e Fuzileiros) que na altura eram terrenos baldios. Não devíamos deixar ninguém sair por esse lado que não tinha vedação. Ainda vimos alguns tentando fugir por aí, atravessando o lodo, mas desistiam ao ver o cordão por nós ali formado.


(iv) O papel dos militares, armados de mausers, mas sem munições...

Nós, militares intervenientes, não demos nenhum tiro. Aliás, nem podíamos pois nem tínhamos munições. Como já referi estávamos a regressar de uma guarda de honra quando fomos desviados para o local. Deve ter sido bem caricata a nossa postura, de luvas brancas, num cenário daqueles.

Ali nos mantivemos, aproximadamente 30 minutos, até os ânimos acalmarem (era o que se pretendia) e regressámos ao quartel.


(v) A reconstituição dos acontecimentos, feita no dia seguinte

Nos dias seguintes não se falava de outra coisa. Como não tinha assistido ao início dos acontecimentos, fui perguntando aos que mais de perto o tinham seguido e a versão generalizada era a seguinte:

Nessa tarde, mais uma vez, aproveitando a presença do gerente da Casa Gouveia no local, os marinheiros e descarregadores pertencentes a essa firma comercial reclamaram pelo aumento de salário que todas as outras empresas já estavam a praticar.
- Casa Gouveia, nada. Então como é, senhor Intendente?

As coisas começaram a azedar e teve que retirar apressadamente a bem da sua integridade física. Chamou-se a polícia. Um subchefe que para lá se dirigiu, não sei se por falta de tacto em situações como aquela ou porque a exaltação dos marinheiros e trabalhadores era já considerável, foi agredido com um remo na cabeça e teve de imediato que ser socorrido e levado para o hospital. Vieram reforços, já armados, e como se organizava no cais um movimento em direcção à Casa Gouveia, armados de remos, ferros e do que havia à mão com a intenção de tudo escavacar, fecharam os portões para impedir a sua saída. Mesmo assim não desistiram e começaram a galgar o portão e a vedação.

Entretanto, o comandante militar, tenente-coronel Filipe Rodrigues, chegado ao local inteirou-se da situação e, ao ver aquele grupo armado de remos, paus, etc. a marchar agressivamente em direcção à Casa Gouveia, deu ordens aos polícias para dispararem por ser a única forma de os deter.

E foi assim que aconteceu. O resultado foram 16 mortos e não 50, ou até mais, como já tenho visto escrito. Por mim, um que fosse já era demais. Mas, atendendo às circunstâncias do momento, hoje questiono-me: que teria acontecido se não tivesse sido travada aquela multidão da única forma que foi possível? Certamente teríamos muita destruição e bastantes mais mortes a lamentar. E ter-se-ia gerado uma espiral de violência de consequências muito mais graves.

Guiné > Bissau > 1959 > Alguns dos 1ºs Cabos Milicianos do 1º Curso de Sargentos Milicianos, realizado na província portuguesa da Guiné, em participaram juntos, pela primeira vez, europeus e guineenses."De cócoras, a partir da esquerda: Domingos Ramos; um outro cujo nome não me lembro mas que também foi para a guerrilha; Laurentino Pedro Gomes.

"De pé: não me recordo o nome mas também foi para a guerrilha; Garcia, filho do administrador Garcia, muito conhecido e estimado em Bissau; mais um de cujo nome não me recordo; eu, [Mário Dias]; e mais outro guerrilheiro. Como se pode concluir, o recrutamento de 1959 do CIC [Centro de Instrução de Civilizados] , foi um autêntico alfobre [de quadros ] para o PAIGC.

Foto e legenda: ©
Mário Dias(2006). Direitos reservados.


(vi) Lições e conclusões:

Da narração destes tristes acontecimentos podemos realçar os seguintes factos:

- O PAIGC não esteve por detrás da ocorrência. Ela foi inteiramente da responsabilidade dos marinheiros e trabalhadores do cais pertencentes à Casa Gouveia, por motivos meramente laborais. Os marinheiros das outras empresas não estiveram envolvidos, pelo menos no início dos acontecimentos. É possível que, por solidariedade, alguns se lhes tenham juntado. O PAIGC aproveitou-se inteligentemente deste movimento, como sempre fez - o que só nos merece admiração - para conquistar mais uns tantos seguidores.

- Não se pode considerar o ocorrido como uma simples greve, conforme é vulgarmente referido. Foi mais do que isso. Tendo começado por greve, rapidamente se transformou numa revolta violenta cujas consequências são difíceis de prever se não tivesse sido travada. Se a referida revolta era ou não justificada, é-me difícil concluir. Sim, atendendo à injustiça de que estavam a ser vítimas. Não, pelas proporções que lhe deram.

Antes de concluir, parece-me que o termo massacre, aplicado aos acontecimentos do Pidjiguiti, é um pouco exagerado, não por o número ser muito inferior aos 50 habitualmente referidos, mas porque o conceito que a palavra implica, se refere à chacina indiscriminada, a uma carnificina injustificada do género descrito nos livros de história como passar tudo a fio de espada.

Com respeito aos massacres de populações balantas e beafadas na região de Bambadinca nos primeiros anos de 60, referidos no blogue-fora-nada (******), embora não os possa negar ou confirmar, tendo eu saído da Guiné em Fevereiro de 1966, nunca deles ouvi falar o que é estranho pois, como se diz na Guiné, noba ka ta paga cambança - aforismo com um sentido semelhante ao as notícias espalham-se depressa. Numa terra como a Guiné onde tudo se sabia e comentava, é estranho que nunca tivesse ouvido falar em tal acontecimento. Deve ter sido muito bem ocultado.

E já que estamos a tratar de massacres, assunto tão melindroso e de que frequentemente acusam as nossas tropas, só tenho a dizer que durante toda a guerra colonial a que assisti e em que participei (depois da Guiné tive uma comissão em Moçambique e duas em Angola) massacres, massacres mesmo, na verdadeira acepção da palavra, só conheci um: foi o perpetrado pela UPA (mais tarde FNLA) no Norte de Angola em Março de 1961 sobre os fazendeiros brancos e suas famílias bem como sobre os negros bailundos fiéis aos seus patrões. Mas esses já estão esquecidos ou, convenientemente, nunca são referidos.
_____________

Notas de L.G.

(*) Vd. postes de:

1 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4447: PAIGC - Quem foi quem (7): Luís Cabral (1931/2009) (Virgínio Briote)

18 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLVII: Antologia (36): o massacre do Pidjiguiti (Luís Cabral)

(**) Vd. postes de:

15 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXXXV: Pidjiguiti, 3 de Agosto de 1959: eu estive lá (Mário Dias)

21 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLXXIII: Pidjiguiti: comentando a versão do Luís Cabral (Mário Dias)

(***) Vd. postes de:

22 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLXXV: Simbologia de Pindjiguiti na óptica libertária da Guiné-Bissau (Leopoldo Amado) - I Parte

25 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLXXXVI: Simbologia de Pindjiguiti na óptica libertária da Guiné-Bissau (Leopoldo Amado) - II Parte

26 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLXXXVIII: Simbologia de Pindjiguiti na óptica libertária da Guiné-Bissau (Leopoldo Amado) - III (e última) Parte

26 de Fevereiro de 2006 >Guiné 63/74 - DLXXXIX: Pidjiguiti: resposta do Mário Dias ao Leopoldo Amado

(****) Sobre a vida militar do Mário Dias e de alguns dos seus camaradas que depois se alistaram nas fileiras do PAIGC, vd. postes de:

2 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXCI: Domingos Ramos, meu camarada e amigo (Mário Dias)

2 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXCIII: Domingos Ramos e Mário Dias, a bandeira da amizade (Luís Graça / Mário Dias)

2 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXCIV: O segredo do Mário Dias, ex-sargento comando

12 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2343: PAIGC - Quem foi quem (5): Domingos Ramos (Mário Dias / Luís Graça)

30 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3543: O segredo de ... (1): Mário Dias: Xitole, 1965, o encontro de dois amigos inimigos que não constou do relatório de operações

(...) Em 1959 , Mário Dias e Domingos Ramos tinham feito a recruta juntos, com início em 8 de Maio de 1959, numa unidade que então se chamava Centro de Instrução de Civilizados (CIC), destinado a naturais da Guiné considerados civilizados. O comandante era o capitão Teixeira, pai do historiador Severiano Teixeira, actual Ministro da Defesa. (No anos seguinte, passaria a chamar-se Centro de Instrução Militar (CIM), tendo sido transferido para Bolama)

Em 10 de Agosto de 1959, prestam juramento de bandeira, uma semana depois dos sangrentos acontecimentoss do Pidjiguiti, a 3, em que também tiveram uma pequena participação, ajudando a polícia a manter a ordem...

Em 14 de Agosto desse ano, os dois estão no 1º Curso de Sargentos Milicianos e estreitam a sua amizade.

Em 29 de Novembro de 1959, são promovidos a 1ºs cabos. O Mário fica em Bissau a dar recruta, enquanto o Domingos segue para Bolama. (...)


(******) Fui eu que fiz referência, na altura, em e-mail interno que só circulou pela nossa tertúlia, a alegados "massacres de populações balantas e beafadas" que terão ocorrido na região de Bambadinca (Samba Silate, Poindon), no início da guerra, reportando-me apenas a conversas, soltas, que eu fui tendo, durante a minha comissão (Maio de 1969 a Março de 1971) com os meus soldados africanos (leais, valentes, insuspeitos, fulas, entre eles o Abibo Jau, mais tarde fuzilado pelo PAIGC) da CCAÇ 12 mas também com outras fontes como o malogrado Seco Camará, mandinga do Xime, extraordinário guia das NT (morto em 26 de Novembro de 1970, na Op Abencerragem Candente > vd. poste de 25 de Abril de 2005 > Guiné 69/71 - VII: Memórias do inferno do Xime (Novembro de 1970) (Luís Graça)