segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Guiné 63/74 - P5745: José Corceiro na CCAÇ 5 (2): A primeira saída para o mato (1ª parte)

1. O nosso Camarada José Corceiro* (ex-1.º Cabo TRMS, CCaç 5 - Gatos Pretos -, Canjadude, 1969/71), enviou-nos a sua 2ª mensagem, em 30 de Janeiro de 2010:

Camaradas,

Grato, pela atenção que possa ser dispensada a esta minha divagação, da incursão, que me foi imposta, nas terras da Guiné.

Dividi a narração, em duas partes, sendo esta primeira como que o aperitivo para ganhar folgo e coragem para partir à aventura e acção.

A todos, os tertulianos, o meu agradecimento por me permitirem invadir, uma nesga da vossa privacidade e darem-me um pouco de atenção e companhia. Para todos, o meu humilde Bem-haja, saúde para todos.

A PRIMEIRA SAÍDA PARA O MATO (1ª PARTE)

Cheguei a Canjadude, dia 13 de Junho, de 1969, na parte de tarde. Após a refeição do jantar, comunicaram-me que no dia seguinte, às 07.00h, devia estar pronto para alinhar na operação a nível de Companhia, ao Cheche. De transmissões iam o Silva, o Carvalho (que era o mais velho de transmissões), e eu, o mais novo, que para me familiarizar acompanharia sempre o Carvalho.

Era a minha primeira noite, passada no abrigo de transmissões, onde fiquei instalado e a dormir. Confesso que, para mim, se veio a tornar incomodativo, dormir lá. Além da luz sempre acesa, eu tenho a particularidade de muitas vezes dormir de olhos abertos, por isso, tornava-se duplamente perturbador.

Havia o expediente normal dum posto de transmissões em funcionamento 24.00h/dia, com os barulhos inerentes à execução das tarefas próprias das comunicações.Estava permanentemente um operador de serviço, em turnos rotativos de 3 ou 4 horas, para dar cobertura às necessidades de emissão, ou recepção de mensagens, e a respectiva manutenção do equipamento. Também os Q.T.Rs., eram desconcertantes para poder dormir, pois, de hora a hora, o posto principal (no caso Nova Lamego), fazia um varrimento a todos os postos do grupo, a perguntar quem tinha mensagens a transmitir e informava quem tinha a receber.

Dormia-se num ambiente demasiado agitado e hostil, visto o sossego não ser possível, devido a esta laboração, que era necessário desenvolver. Desta forma o sono não era reparador, para mim, e havia ainda outro inconveniente, pois quando se estava de serviço de noite precisava descansar de dia, que era a falta de silêncio. Além de tudo isto, o espaço era exíguo para as necessidades, as camas estavam amontoadas e mal dava par respirar. Mudei, do abrigo de transmissões para o abrigo Norte, dia 7 de Julho de 1969, uma segunda-feira.Nesta, primeira noite, fizemos um serão prolongado.

Era norma, o periquito chegado, pagar umas cervejas aos camaradas da secção e eu não fugi à regra. Os meus colegas estavam ávidos de notícias da civilização e eu estava sequioso do conhecimento deles, para melhor me proteger da guerra. As palavras são como as cerejas, só custa é comer a primeira, atrás de uma vem outra e assim foi, falou-se de tudo, da Metrópole; das novidades musicais, dos discos de vinil e do gira-discos que eu levava (tinha tido o primeiro haviam passado 10 anos e ninguém me ensinara a passar sem ele).

Falamos das namoradas, dos cuidados na Tabanca, das lavadeiras (logo que me quiseram arranjar uma). Muitas perguntas: Como tinha eu ido parar ali? Se tinha sido algum castigo? Cavaqueamos das aventuras e desventuras de cada um, do tipo de conversas de soalheiro e caserna!

Eles estavam concertados e queriam, amigavelmente, infernizaram-me a vida, mais parecia que me queriam praxar. Eu era uma novidade, um periquito e estava muito verde… um novato. Eles diziam: “Nós já somos velhinhos!”. O que queriam era “folia” e atormentar-me.Às tantas, um deles, causticamente, sai-se com esta:

- Tu chegaste hoje, dia 13 sexta-feira, e amanhã vais logo para o Cheche, onde há quatro meses perderam a vida perto de meia centena de militares (47), isto não é, convém que se diga, uma colónia de férias, para vires com discos e gira-discos na bagagem. Isto aqui é a guerra amigo e não vais ter propriamente vida facilitada, até porque os nossos graduados não são flor que se cheire, as surpresas, não vão ser glico-doces para o teu lado.

Eu respondi:

- Que respeito e sentido de hospitalidade vocês têm para com um colega, que se encontra aqui encabulado e pávido…! Não há necessidade de serem capciosos comigo, não nos conhecemos é certo, mas, neste caso particular, estar a utilizar a astúcia não é cordial, comigo não pega! Estamos todos no mesmo barco e aqui não reconheço barões. Quanto ao dia ser 13 e sexta-feira, para mim, são meros acasos, nada mais! Eu tenho a abonação do primeiro banho que me deram à nascença, que foi de humildade, regado com água benta, para ficar escudado e céptico, contra o mau-olhado e vacinado para imunização da superstição!

Sobre o Cheche é um facto, não tinha argumentos, mas, estava interessado em saciar a minha curiosidade. Sabia algo mas muito pouco, para a consistência e afirmação do meu ego e satisfação do meu desejo. Já ouvira falar qualquer coisa na Metrópole, mas, despreocupadamente, pouco me dizia. Só em Nova Lamego, em diálogo com o cabo Amaro, me elucidei e tomei consciência da localização geográfica de Canjadude. Fiquei a saber que, para lá deste, não haviam mais aquartelamentos.

Estava o Cheche, numa das margens do rio Corobal, de onde foram retiradas as N/T e, atravessando para a outra margem, estava a zona de Medina de Boé.Embora não fosse o momento adequado, sobretudo para mim, o diálogo descambou para a tragédia do Cheche e percebi, que haviam alguns, que me queriam supliciar com “velhaquices”. Compreendi e aceitei, pois era o meu primeiro baptismo de poluição psicológica guerreira. Eu estava ali puro, tinha chegado há meia dúzia de horas e era ainda um estranho.

Estava a aprender, a ganhar a confiança deles, achei que era aconselhável ser humilde e submisso e foi essa a minha conduta. A prudência nunca é demais, pois alguns deles já tinham a sua dose exagerada de mato e guerra e não admitiam contraditórios, sentiam-se conhecedores absolutos da verdade, como se uma só houvesse (a deles como é óbvio).

Pensei que lhes assistia o direito de me estarem a malhar e amedrontar. Eu pus em prática o ensinamento do meu professor de Filosofia, que dizia assiduamente: “Em casa de letrado, tanto se paga de pé como sentado.”.

Com todos os camaradas de armas tive relacionamento cordial e a todos lembro como amigos. Houve dois ou três “casinhos”, em que estive envolvido (só um em transmissões) sem importância nenhuma, que eu não esqueci, e provavelmente nunca ninguém mais se lembrou, e que a seu tempo aqui aflorarei.No delongo serão, falou-se da tragédia no Cheche e, alguns que a viveram, como que se recolheram em meditação. Foi um momento delicado, evidentemente que havia vozes embargadas e trémulas, a falar do assunto.

Era recente e estava fresco ainda nas memórias, mas, notei disponibilidade e ansiedade, para relatar o acontecido e estavam desejosos que alguém os ouvisse.Era notório que os alguns dos mais velhos estavam marcados, pois foram testemunhas impotentes da tragédia que a seus pés se desenrolou.

Tinham necessidade de falar e havia história para contar, sobretudo o Nora, o Graça, o Dionísio, o Loupa, o Rogério, o Carvalho e o Alex (estes dois últimos eram mais reservados). Em tempo passado na Guiné, o Carvalho era o mais velho e a seguir ao Dionísio (que eu estava a substituir).Pelo que percepcionei e registei, fiquei com a convicção que houve muito compromisso, empenho e envolvimento da CCAÇ 5, na retirada de Medina de Boé. Não tanto na acção operacional, mas sim na logística, recepção, hospitalidade, aquartelamento e esperança.

Não podendo esquecer também, que era o desejo da concretização dum sonho a unificação da companhia, que andou uns anos dispersa, por Cabuca, Nova Lamego, Cheche e Canjadude. Toda a CCAÇ 5, viria a aglutinar-se, em Canjadude.Os camaradas atrás citados, andaram em rotatividade, pelos locais onde os pelotões estavam sediados e era desconfortante esta dispersão, mais que não fosse em termos de segurança, pois havia menos coesão e entrosamento que os debilitava e tornava alvos mais indefesos.

Isto, quer para os metropolitanos, quer para os nativos, até porque, estes últimos, tinham as suas famílias estruturadas e domiciliadas, e preferiam receber os seus prés como desarranchados, sendo má política desfavorecê-los.

O Loupa e o Dionísio estiveram cerca de meio ano deslocados em Cabuca. No meu tempo dois homens da secção de transmissões foram feridos (um por acidente com uma G3 em Canjadude e outro numa deslocação a Bruntuma, num ataque aquando da operação Mar Verde, tendo-lhe sido atribuído um determinado grau de deficiência física).

O Graça dizia com orgulho que em tempos veio só e a pé (mais de 15Km), do Cheche a Canjadude, buscar o correio, algum expediente e mais alguma coisa, numa aventura arriscadíssima (autêntica roleta Russa). Faço esta afirmação, porque nesta picada que ele teve que percorrer, eu vi destroços de algumas viaturas devido ao efeito das minas, que por ali tiveram que ficar, e, pelo menos uma, incendiou-se numa das emboscadas (posteriormente, estive presente na recuperação de duas destas viaturas, em datas distintas).

O Cheche não tinha civis, o que o tornava muito isolado, representando assim sofrimento acrescido para os aquartelados, que ficavam confinados, dum lado pela água do rio Corobal, e do outro lado, em forma de meia-lua, por mata e floresta. Para poderem tomar banho no rio tinham que lançar previamente duas granadas para a água, de modo a afugentar os crocodilos e só depois se banhavam, o que, mesmo assim, não deixava de continuar a ser arriscado.

A margem do rio fazia uma ligeira encosta e estava dentro do aquartelamento, por isso, até pescar se aparentava perigoso (por duas vezes em operações em que eu estava presente, foram mortos crocodilos nos riachos afluentes, que presumo deviam ir desovar).

Houve, inclusivamente, empenho festivo para receber com a dignidade possível e agradecimento merecido, os martirizados heróis que deixavam Medina de Boé. Eu sou testemunha ocular que passados 4 meses após a infausta tragédia, existirem ainda a cerca de 1km de Canjadude, na picada que liga ao Cheche, fachas de pano passadas de árvore a árvore, por cima da picada, onde se podiam ler coisas como: “Canjadude saúda-vos”.

Pelo menos 1 ou 2 dessas fachas estavam por lá e só a acção do tempo as destruiu. Assim como haviam algumas folhas de palmeiras atadas nas árvores, ao longo da picada, como que a saudar e louvar os heróis. É lógico que os indícios preliminares de festividade deixaram de ter sentido após a aziaga tragédia.

Creio que ainda há história para contar, sobre a martirizada companhia que esteve e fechou Medina de Boé. Aqui não me alongo mais porque não fui testemunha.

Presto a minha homenagem pessoal a estes heróis, os que ficaram e os que partiram.

(CONTINUA)

FOTO 1 - Na frente – à direita: João Monteiro (tomava conta da cantina bebidas) e, a seu lado, estou Eu e o Nora. Atrás - à direita: Silva, Rogério e Dionísio (que eu substitui)

FOTO 2 - O Dionísio (lado esquerdo) a ensinar a arte ao periquito (Eu) que não aprendeu

FOTO 3 – Eu, sentado em cima do abrigo numa cadeira feita com aduelas das pipas do vinho, a ouvir música no meu gira-discos

FOTO 4 - Eu na Celebração de Missa em Canjadude (8 de Julho 1969). Não sei o nome do Padre.

FOTO 5 - Eu, do lado direito, e um Furriel junto à imagem da Senhora do Cheche, cuja história da Senhora do Cheche já não lembro.

FOTO 6 - Uma das máquinas que levei da Metrópole para a Guiné e me ajudou a passar o tempo. Guardo-a como uma relíquia. A conservação é a que se pode ver, está a funcionar, sempre a fotografar e tive sorte com ela porque nunca apanhou fungos, nem nas ópticas, nem nas lentes (Foto tirada em 30/01/2010)

Um abraço para todos,
José Corceiro
1º Cabo Trms da CCaç 5

Fotos: © José Corceiro (2009). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:


Guiné 63/74 - P5744: Notas de leitura (60): Armor Pires Mota (5): Estranha Noiva de Guerra (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Janeiro de 2010:

Queridos amigos,
Que grande romance, que beleza, que grande homenagem à Guiné! É urgente encontrar um editor para um texto colossal. No mínimo, este romance do Armor Pires Mota está na lista das obras-primas.
O João de Melo escreveu que aquelas guerras não produziram uma obra-prima.
Desafio a que classifiquem “Estranha Noiva de Guerra”. Leiam-no e depois digam-me.

Um abraço do
Mário


Armor Pires Mota (5)
Estranha Noiva de Guerra: Um romance notável


Beja Santos

Cabo Donato, Pastor de Raparigas” é um livro de contos editado em 1991. Surpreendentemente, em 1995, Armor Pires Mota volta à Guiné e escreve o livro da sua consagração: “Estranha Noiva de Guerra”. Se procurarmos os seus mestres literários, não é difícil encontrar simpatias por grandes agentes literários da ruralidade, caso dos mais antigos como Raul Brandão ou posteriores como Araújo Correia ou Tomás de Figueiredo. É a riqueza vocabular, o recurso à mais genuína imagem telúrica, interceptam-se simpatias pelo neo-realismo, naturalismo e, paradoxalmente, a narrativa à Hemingway ou Norman Mailer.

Na justa medida em que Estranha Noiva de Guerra é um dos livros mais portentosos que se escreveram sobre a Guerra da Guiné, está injustamente esquecido e é um dever cultural de alertar os editores para o imperativo da sua reimpressão, vamos sumariar onde está a singularidade e a notabilidade deste romance. A metáfora é a da via-sacra, isto é, o herói, no cumprimento do seu dever, arrasta o corpo de um camarada morto em combate por caminhos inóspitos, sujeito a toda a casta de provações: o confronto com o inimigo, os jagudis devoradores do corpo à sua guarda; uma viagem que se torna delirante e dilacerante, dando azo a que o herói solte as recordações para embates ainda mais imprevistos. A estrutura é a da narrativa na primeira pessoa, e aliás assim que abre o romance: “Eu, Bravo Elias – de nome completo José Joaquim Bravo Elias –, nado e criado em Parada de Junco, que não invento, por verdade ser o sangue e o tormento da hora, o dizer dos desasados momentos por que tive de passar, a cobra verde, o mosquito adejando raivoso, o olho miúdo mas generoso das suas velhas recitando o seu hamedulilai, a heróica rapariga, ah a rapariga e, como dizia, picado no ouvido fito por violento tiroteio, muito lá para a frente, assarapantado, agarrei da G3 e cavei de onde estava para a cratera aberta. Premi o gatilho, com raiva patenteada nas mãos humedecidas, varrendo, da esquerda para a direita, todo o campo de tiro, aliás, como costumava fazer sempre”. O herói combate em território que é familiar ao escritor, o Morés, um dos santuários míticos do PAIGC. Com ele segue Júlio Perdiz, o mártir que não será abandonado em campo de batalha. Estamos longe de Mansabá, ali é necessário regressar. Inicia-se a operação, à primeira refrega. O pobre Garcês levou um tiro no peito, só houve tempo de lhe rezar pela alma. O assalto nas imediações do Morés é bem sucedido: várias pistolas, carabinas, livro de anedotas em português, o primeiro livro de leitura do PAIGC, material escolar, folhas de um livro de conta corrente da firma viúva Campos e Grácio, Ldª, cargas prismáticas TNT, medicamentos, etc. E escreveu-se no relatório, na ausência de corpos: várias baixas prováveis.

A operação prossegue, desta feita um guerrilheiro ferido prontifica-se a colaborar. Na aproximação junto ao caminho que de Malimorés conduzia a Talicó, o IN voltou a atacar em força, vive-se uma hora de inferno sem a salvação à vista: “No primeiro grupo de combate havia feridos graves, um na retaguarda, outro no meio da coluna. O primeiro cabo Cerejo estava gravemente ferido. Apanhara um tiro quando se movimentava a socorrer uns e outros. Acabava de enrolar panos no braço de um camarada, quando sentiu um calor no braço, depois o gorgolejar do sangue. Havia necessidade de evacuar para a retaguarda todos os feridos. Ele não parava. Só parou com aquele tiro esgalhado. Os T6 ainda não haviam chegado. Nem os Fiat. Aquele era o duelo mais temido de toda a Guiné. A boca a saber a cortiça. Os nervos em farripas”.

Estacionou-se ali perto, numa noite comprida de séculos, a angústia anavalhando os nervos. A memória de Bravo Elias recorda nomes, situações cómicas ou destemperadas, há recordações de Bissau, da esplanada do Tropical, do café Bento, há o espírito de solidariedade. Apareceu um cão rafeiro, juntou-se àquela tropa em apuros, sabe-se lá se muito cercada, com uma força inimiga pronta para a emboscada. O herói descobre que ali ao pé jaz Júlio Perdiz agonizante: “tinha na cabeça um arrepio intranquilo de sangue e nenhum relincho era capaz de acordá-lo”. Perdiz distinguira-se um dia por se ter lançado, montado num burro contra uma força do PAIGC emboscada na mata densa. Os helicópteros sobem e descem, largam munições e água, transportam os feridos para Bissau. O sol trepava no horizonte. “Cambaleando ligeiramente as pernas, depois de carregado com o mínimo, arremessei para os ombros o corpo do meu camarada. O rapaz deu um urro, que não havia de ser o último, abafado e soturno, do tamanho da sua angústia. E quebrando-se todo, as mãos de um lado, os pés do outro, dançando, dançando e a boca largando uma babugem suja, uma aguadilha sanguinolenta, as pernas tropeçando nas minhas, - parti a caminho de Tabassai, não deixando de dizer-lhe que tínhamos que nos safar depressa, que ele não pesava nada como uma perdiz, antes como um burro, que, que”. Era necessário afastar os jagudis que vinham ao cheiro do sangue, o cão acompanhava o princípio da via-sacra. E eis que chega uma rapariga dizendo “Mim ajuda branco, mim vai ajuda branco”. A rapariga promete levá-los a Mansabá. O herói interroga-se se ela não é Ansaro, a sua lavadeira. Não é, chama-se Mariama. “Mariama fora uma adorável noiva de guerra, embora esquiva e envergonhada, o que a fazia, depois, mais generosa. Ou parecia. À falta de João Embaló que, depois de apertados interrogatórios, de faca de mato em cima da mesa da messe e onde o capitão exibia toda a sua truculência e cinismo para uma duvidosa operacionalidade, capitão que, mais tarde, lhe havia de comprar uma bicicleta, voltava assim a andar no mato topando de guia, mas não vendendo a alma, como se havia de comprovar mais tarde, também Mariama serviu, pelo menos uma vez, de guia, mas quem não ficou satisfeito foi o capitão, porque efectivamente ela não nos levou a acampamento nenhum, apenas a meia dúzia de casamatas há muito abandonadas”. Assim aparece Mariama a noiva de guerra de Bravo Elias, tem ele dezoito meses de guerra. Ela é uma bonita rapariga, bamboleando-se, olhos penetrantes e fundos, sabe manejar as armas, fora apanhada no mato, era guerrilheira.

Esta é uma das tónicas dominantes da obra de Armor Pires Mota: é a convulsão da guerra que atrai os pólos opostos, leva-os da conciliação à reconciliação. É a metáfora da paz, o mistério do amor cristão, depois da provação (ou com ela) nasce a confiança, pode despertar a paixão, os seres encontram-se. Aquela batalha é muito estranha, não se percebe como é que Bravo Elias se separou da força militar e se lança, confiante, atrás de Mariama, no interior da mata. Faz-se uma padiola, e é então que se inicia a via-sacra em terra incógnita.

Aqui nos detemos. É um romance fecundo de mensagens, o autor regressa trinta anos depois às mesmas situações, aos mesmos desfechos, o seu estado de espírito é de grande luminosidade e respeito por todos aqueles que combateram, mas também de grande respeito pelo guerrilheiro indefectível, aqui a metáfora é o combate até à chegada do perdão. Porque nós perdoamos o calvário imposto pelos homens mas jamais o esquecemos. É essa, penso eu, a mensagem principal desta obra-prima que me apanhou completamente de surpresa.

(continua)
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 31 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5737: Pré-publicação de Mulher Grande, de Mário Beja Santos (1): Um Gabu de poucas e fracas recordações

Vd. último poste da série de 25 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5708: Notas de leitura (59): Armor Pires Mota (4): Cabo Donato Pastor de Raparigas (Beja Santos)

Guiné 63/74 - P5743: Em busca de ... (116): O Ruiguila procura ex-Condutores da CCAV 2749 do Abrigo Os Volantes, Piche, 1970/72

1. Mensagem de Francisco Palma (ex-Condutor Auto Rodas na CCAV 2748/BCAV 2922, Canquelifá, 1970/72), com data de 18 de Janeiro de 2010:

Carlos Vinhal
Poderemos ajudar este "amigo dos velhos tempos" atraves da nossa Tabanca?

Um Guineense a viver na zona de Amadora , "moço de recados" naquele altura e que os Condutores apelidaram de o Riguila, procura contactar com antigos ex-Combatentes do Abrigo "os Volantes" de PICHE 1970-1972/3. Não disse o nome da companhia ou Batalhão, mas nessa altura estava lá o BCAV 2922 e a CCAV 2749.

Francisco Palma


2. Comentário de CV:

Encontrei na Página do Jorge Santos um pedido de contacto de um camarada da CCAV 2749, o Lopes, com o telemóvel 917 633 249. Talvez não fosse descabido contactá-lo para início de pesquisa.

Fica no entanto aqui registado o apelo do Riguila para ajudar a encontrar os Condutores da CCAV 2749(?), Abrigo dos Volantes que esteve em Piche no início dos anos 70.

Quem tiver notícias poderá encaminhá-las para o contacto móvel do Riguila ou para o Francisco Palma, email fapalmaster@gmail.com

Quem poderá também ajudar é o nosso camarada e tertuliano Luís Borrega que foi Fur Mil da CCAV 2749.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 1 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5742: Em busca de ... (115): Camaradas de meu pai, Júlio Marques Tavares, CCS / BART 1913 (Catió, 1967/69) (Marisa Tavares)

Guiné 63/74 - P5742: Em busca de ... (115): Camaradas de meu pai, Júlio Marques Tavares, CCS / BART 1913 (Catió, 1967/69) (Marisa Tavares)


Guiné > Região de Tombali > Catió > CCS / BART 1913 (1967/69) > O Júlio Marques Tavares é o segundo a contar da esquerda.

Foto: © Marisa Tavares (2009). Direitos reservados.


1. Mensagem, de hoje, de Marisa Tavares, filha de um camarada nosso, a viver em Toronto, Canadá / Mrs. Marisa Tavares' today message:


(i) Subject - BArt 1913


 My father was in Bart [1913], Guinea-Bissau,  from 1967-1969. His name was Julio Marques Tavares. He is under the flag [photo].


He passed away a long time ago, I was only 6 years old. Now as an adult,  I'm trying to learn more about him.


Do you know where I can gather more information about my father?


Thank you in advance,


Marisa Tavares


Toronto, Canada


2. Resposta de Luís Graça / Mr. Graça' s reply:

(ii) Dear Marisa:

Many thanks for your message. I will do my best in order to find out more data concerning this period of your father's life. Please notice the name and contact of Victor Condeço, a war camrade of you father, at Catió, Tombali Region, in the south of Guinea-Bissau, during the years of 1967-69.

http://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/search/label/BART%201913

I hope you can read our blog in Portuguese. I'm just publishing your call. Best wishes. Luis


3. Tradução para português / Portuguese translation [L.G.]:

(i) Assunto - BART 1913

O meu pai esteve na Guiné, na CCS do BART 1913 (1967/69). Chamava-se Júlio Marques Tavares. É o que está debaixo do estandarte [na foto]. Faleceu há muito tempo, quando eu tinha  apenas 6 anos. Agora que sou mais velha, procuro saber mais coisas sobre ele.

Vocês podem dizer-me onde encontrar mais informação sobre o meu pai ? Antecipadamente agradecida, Marisa Tavares, Toronto, Canadá. (*)

(ii) Querida Marisa:

Muito obrigado pelo seu mail. Faremos o nosso melhor com vista a descobrir mais informação sobre este período da vida do seu pai. Tome boa nota do nome e do contacto de um camarada de seu pai, Victor Condeço, que esteve com ele em Catió, Região de Tombali, no sul da Guiné, durante os anos de 1967-69.

http://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/search/label/BART%201913

Esperamos que saiba ler Português, para poder acompanhar o nosso blogue. Vamos publicar o seu apelo. As nossas melhores saudações. Luis

4. Informação sobre o BART 1913:

Foi mobilizado pelo RAP 2. Partiu para a Guiné em 26 de Abril de 1967. Regressou à Metrópole em 2 de Março de 1969. Esteve em Catió, o comando e a CCS. Comandante: Ten Cor Art Abílio Santiago Cardoso. Subunidades:  CART 1687 (Cachil e Cufar);  CART 1688 (Bissau e Biambe); e CART 1689 (Fá Mandinga, Catió, Cabedú, Buba,  Gandembel, Cabedú, Canquelifá, Bissau).
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Nota de L.G.:

(*) Vd. último poste da série > 31 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5738: Em busca de... (114): Neusa Danho procura amigos de seu pai, o 2.º Srgt Mil Cristóvão dos Santos - 3 (Paulo Santiago)

Guiné 63/74 - P5741: Blogoterapia (142): Aquela janela virada para o heliporto (Jorge Teixeira/Portojo)

1. Mensagem de Jorge Teixeira* (Portojo) (ex-Fur Mil do Pelotão de Canhões S/R 2054, Catió, 1968/70), com data de 26 de Janeiro de 2010:

Especial para o pessoal referido no post (Cancela e Jorge Felix). Para o alferes médico da altura, que não faço ideia de quem era. Se um dia o apanho dou-lhe cabo das trombas, pois que me mandou meter na bundinha umas tantas picadelas com líquido avermelhado, da cor das antigas camisolas da selecção nacional de futebol do tempo do Pedroto e do Águas e do Travassos, e que me faziam ver as estrelas com vidrinhos. Ainda por cima dadas por um rapaz que tinha a mania que era pegador de toiros lá no Ribatejo e que nunca saltou a barreira, (o varandim do hotel) porque alguem me deitou a mão. Provàvelmente quem saltaria era eu, mas isso nunca ficou demonstrado.
Se o Carlos Vinhal quiser usar isto noutras tabancas, acho que pode. Por mim tudo bem.


Aquela janela... virada para o Heliporto

Pois foi daquela janela, melhor dizendo, do varandim do Hospital Militar de Bissau - primeiro quarto, primeiro andar, frente, direito, onde me encontrava em gozo de merecidas férias, ofertadas (leia-se, impostas) por um alferes médico que partiu de Lisboa, no mesmo barco (Niassa), no mesmo ano, no mesmo dia (1.05.1968) que eu, ele incluído num Batalhão que saiu de Chaves, se a memória não me faz dizer asneiras. E que me quis evacuar para a Metrópole. Só que eu mandei mais do que ele e não esperei pelos 35 dias de internamento e aos 30 exigi alta. Aluguei a seguir um meio de locomoção aéreo e fui para o meu posto, em Catió, onde cheguei a 4 de Dezembro de 1969, dia da Artilharia. Que é também o de Santa Bárbara, que nos proteja, amén.

Pelo caminho apanhei uns frescos pois o pessoal estava nas últimas. Aquela CCS não aprendeu nada comigo, mas enfim. O dinheiro podia mais que os interesses estomacais do pessoal menor. Mas para o caso não interessa nada. São estórias para outras conversas. Pois, é isso, lá do Hospital, primeiramente era necessário esconder dos meus "velhotes" o novo local de férias. O amigo e camarada Quintino (o do Bando) deu-me o seu SPM para onde a correspondência deveria ser enviada, bem como os vales postais com os escudos (a vida em Bissau era cara... e os desenfianços do Hospital também) que nos chegavam às mãos transformados em pesos, logo deduzidos do imposto de transferencia de capitais.

Por isso, de vez enquando eram precisas fotos para comprovar o bem estar cá do rapaz. Esta, lá acima é um dos exemplos. Só que os olhos dos meus velhos com mais ou menos miopia, logo descobriram na minha tromba, que até era linda, uns sinais esquisitos. Eram uns restos de uma maleita que apanhei nos dormitórios adoque do Quartel General, que puseram esta carinha laroca em carne viva. Mesmo assim cheguei a ser abordado por uma patrulha da PM, toda arrogante - quase afirmo que era o secretário geral do actual PCP quem a comandava - porque não trazia a barba feita. Troca de palavras, etc e tal, mais posição de sentido que para estas ocasiões as douradas e a velhice ainda tinham força e significado em Bissau.
No meio disto tudo perdi-me, porque era para contar a estória da foto abaixo e já fui para outros caminhos.



Então é assim, como agora se diz. Estava lá eu na tal janela virada... no primeiro quarto, do primeiro andar, frente, direito, do HMB e ouvi chegar um Heli. Logo os habitantes vinham ver do que se tratava, pois além de ser um passatempo a contabilização dos que chegavam por este meio transportados, queríamos sempre saber de quem se tratava. Porque até poderia ser um dos nossos mais íntimos. Neste dia quem chegou foi um barbudo (fiz uma foto, que veio para os amigos da metrópole, mas como tantas outras, desapareceu...). Pensamos, pelo seu aspecto, olha um Fuza. Fodeu-se. Mas não era, soube à noite quando fiz a ronda do costume para passar o tempo, estranhando ver Comandos de sentinela à porta, que era um cubano, de nome Peralta. Não me dizia nada. Depois disse. Por isso a tal foto para a rapaziada da metrópole... Mais tarde, anos depois, soube da sua libertação.
Mas a conclusão é: Será que o Jorge Félix se recorda ou até terá dado a sua colaboração a esta operação?

Por casualidade o Cancela também estava hospedado, na mesma altura, no mesmo Hotel Militar de Bissau. Mas no terceiro apartamento. Só o soubemos há dias quando entreguei esta foto - entre outras - para o Carmelita digitalizar e ele viu. Estórias de vida...

Cancela, eu era aquele que andava com uns chinelos de cada cor. Parece que se chamam agora havanesas. Um deles preso com um agrafe, daqueles dos papeis. Com umas calças de pijama com um grande rasgão no sítio dos ditos cujos e que saltavam para o ar livre a cada passada sim passada não. O casaco não tinha botões. Eu não tinha 100 pesos para mandar comprar aos libaneses aqueles pijamas dos chineses. Andava sempre com um livro, pois a minha vida diurna era na Biblioteca do Hotel, cuja responsável era uma bibliotecária lindaaaaaaaaaaa. Grandes conversas...
Mas porque será que uma foto vem buscar tantas lembranças?

Portojo
25 de Janeiro de 2010
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Nota de CV:

(*) Vd. poste de 12 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5634: Blogues da Nossa Blogosfera (31): Tabanca dos Melros - Ex-Combatentes do Ultramar Português de Gondomar (Jorge Teixeira/Portojo)

Vd. último poste da série de 1 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5740: Blogoterapia (141): Pensar em voz alta: Fotos esquecidas, imagens de gentes de outrora (Torcato Mendonça)

Guiné 63/74 - P5740: Pensar em Voz Alta (Torcato Mendonça) (22): Fotos esquecidas, imagens de gentes de outrora

1. Mensagem de Torcato Mendonça (ex-Alf Mil da CART 2339, Mansambo, 1968/69), com data de 23 de Janeiro de 2010:

Meus Caros
Voltei a ver e guardar melhor fotos que arrumei há dias. Fotos esquecidas, fotos que, de certo modo, provocaram recordações de definição difícil, ou, se o faço direi serem pouco agradáveis. Imagens de uma parte de meu passado.

Militar, Guiné, guerra.

Tudo junto a influir num comportamento, de certo modo, pouco consentâneo com a dita normalidade. Vidas de minha vida. Ou as metamorfoses de um jovem, o claudicar a regras que lhe foram impostas. Regras a vergarem comportamentos futuros ou mentes fracas?

Há escritos aí a necessitarem serem passados à tecla. Adia-se e de repente sai este, sentido, a questionar ainda hoje a influência da vida militar em mim.

Segue o texto e, como sempre terá o destino que entenderem. É vosso.

Abraços, bom fim de semana,
Torcato


IMAGENS
Começava a ficar cansado de arrumar tanta fotografia.

Primeiro foram os slides e recordou certa parte de seu passado.

As fotos falam, dialogam se as olharmos bem. Aparecem acontecimentos de outrora e deixamo-nos embalar nessas recordações. Boas, más, nem uma coisa nem outra? Difícil de nos serem indiferentes. É sempre uma marca do passado.

Como faltavam tantos slides? Recordou então o que acontecera. Fora mau, demasiado mau e aparecia agora, mesmo tantos anos depois em dramáticas recordações, os sons do crepitar das chamas, os gritos de dor, dramático agora, neste momento do presente. Como reagia ele nesse tempo longínquo, aquando dos acontecimentos? Com frieza, com a brutalidade que entrara por ele adentro, com a indiferença por valores que anos antes respeitara. Agora já não, agora não eram valores, agora eram fraquezas.

Desviou o pensamento. Recordou outra perca anos depois, muitos anos depois de outra perca, outra fogueira a entrar na sua vida e perdeu relatórios, livros, projectos em arquivo, fotos e slides de trabalho. Tudo se fora em menos de uma ou duas horas. Porque tinha esta má relação com o fogo? Ou seria uma purificação, um apelo a começar de outro modo?

Que interessava isso agora? Tantas fotos por arrumar ainda. Abriu mais um envelope e parou. Que era aquilo, porque estavam aquelas fotos ali, porque não desapareceram tantos anos depois? Olhou bem o envelope e nada dizia. Não se recordava de as ter guardado. As fotos foram passando lentamente entre os dedos, as imagens entrando olhos dentro, as recordações a virem fortes, demasiado fortes quase se transformando em acontecimentos, não de quarenta anos, mais muitas delas, mas em acontecimentos quase de presente.

Parou depois de ter espalhado as fotos pela mesa. Era doloroso agora rever aquelas imagens. Ela aparecia sorridente, cabelos caídos em ondas largas e olhava a objectiva ou olhava-o ou juntos apareciam numa ou noutra.

Recordava agora aqueles cabelos, aqueles olhos verdes que se fundiam com o seu olhar. Olhar de carinho, de desejo, simplesmente olhar entre pessoas que se dizem amar e trocam promessas. Tantas promessas em juras de fidelidades eternas.

Não, não, isso não. A provar isso ali estavam uma e depois outra foto a atestar a infidelidade, a fuga dele a compromissos, a prisões, a querer sentir-se liberto de ou do nada.

Porque estavam ali as fotos que esquecera. Não as imagens de quem representavam. Sem querer começou a encontrar desculpa na vida militar, na passagem pela Guiné, no enganar-se ainda agora a ele mesmo.

Certo é que a guerra provocou o fim de uma ou outra relação. Certo é que a deriva dos tempos a seguir à vinda também ajudaram. Certo é que hoje, naquele momento não queria ainda assumir culpas, assumir o desejo de voltar a encontrar quem estava naquelas fotos, naquelas imagens. Porque sentia a cabeça a latejar? Apetecia-lhe um cigarro. Não, há anos que não fumava. Um uísque também não.

Arrumou devagar as fotos e esperou pensando em muito do que acontecera.

Onde estariam agora? Que interessava isso? Porque não? Não ia começar de novo ou ia?

Afagava lentamente as fotos e metia-as num álbum da Guiné. Não era a esse tempo que pertenciam? Não fora por ter lá estado que tudo acontecera? Ou eram desculpas?

Voltou a ver as fotos, a rever, a recordar quase uma a uma. Acabou à momentos de o fazer, passada já cerca de uma semana e resolveu guardar bem fundo, mais uma recordação, uma montanha de recordações a ficarem bem fundo.

Recordações de um tempo que sendo ele não o era bem. Desculpas, sempre desculpas.

Eram fotos, simples imagens, imagens de gentes de outrora, gentes que foram passado. Onde estarão? Porque…

Imagens, imagens!

Fnd/22 Jan/010 – 23H50
TM
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Nota de CV:

(*) Vd. poste de 31 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5735: Blogoterapia (140): Pensar em voz alta: E agora? (Torcato Mendonça)

domingo, 31 de janeiro de 2010

Guiné 63/74 - P5739: Efemérides (42): Dia 25 de Maio de 2009, finalmente inaugurada a estátua de Amílcar Cabral na Guiné-Bissau (António Rosinha)

Guiné-Bissau > Rotunda do Aeroporto > Estátua de Amílcar Cabral, inaugurada finalmente no dia 25 de Maio de 2009, após ter estado arrumada 23 anos.

Imagem Google Earth (com a devida vénia...)

1. Mensagem de António Rosinha*, nosso amigo e camarada (ex-Fur Mil em Angola, 1961; topógrafo na TECNIL, na Guiné-Bissau, entre 1979/93), com data de 20 de Janeiro de 2010:

Luís e Carlos,

Como até agora ainda não foi publicada a grande estátua de Amilcar que já vem no Google Earth, envio foto,  do Google,  do local onde foi instalada a estátua do Amilcar Cabral, após o assassinato de Nino Vieira. É a rotunda do aeroporto.

E envio uma foto do cruzamento de Chapa-Bissau, onde em 1993, no vigésimo aniversário do assassinato de Amilcar, se fez o cerimonial com o Nino a presidir,  com a promessa que em breve ia ser montada a estátua naquele lugar.

Para mim toda esta avenida e a rotunda do Aeroporto têm um sentido especial quer no aspecto profissional quer sentimental, pois que todos os centímetros dessa estrada fui eu a desenhá-los (no chão). E, durante mais de um ano ouvi ao longo daquela artéria tantas histórias de soldados e capitães, fulas e balantas, irãs e bajudas... mas também tive que ouvir com muito pouco àvontade e com muita frequência a história dos fuzilamentos. Mas um dia contarei a história da construção dessa Avenida pois teve tanta política, feitiçaria, complicações e casa derrubadas que também foi essa avenida a ajudar a "criar" o PAICV [, Partido Africano para a Independência deCabo Verde].

Mas, finalmente,  foi no fim dessa avenida, que ficou a estátua de Amílcar Cabral. Custou, mas foi.

Agora, quero-vos contar uma passagem sobre o 20.º aniversário em 1993, e que podem publicar, ou pôr de lado, se virem que pode afectar alguns espíritos mais pró-Amílcar.


Estava eu no Ministério das Obras Públicas numa cooperação, ao lado de vários engenheiros e técnicos, com  formações nos paises de Leste, enviados ainda por Amílcar Cabral, e que uns dias antes do dia do aniversário do assassinato, a  20 de Janeiro, esses meus "homólogos", era o nome, foram designados para, no cruzamento de Chapa Bissau, prepararem o local, (limpezas, enfeites, vedações e um pequeno palco), onde o Nino faria a cerimónia e anunciaria que seria ali que em breve surgiria a estátua.

Ora acontece que pelo menos meia dúzia de engenheiros, que eram, conseguiram-se desenfiar, com mil justificações, desde familiares falecidos, doenças, cerimónias étnicas (irãs), etc. e nenhum participou,  nem nos preparativos, nem na cerimónia.

Ora eu funcionava tipo colega deles com bastante confiança mútua. Não é que quem acabou por fazer todos os preparativos, acabei por ser eu? Claro que eu já via há muitos anos o que a "casa gastava", e como eu sempre "paguei para ver"...

- Favor, Rosinha, tens aqui pessoal...

Arranjaram-me uns serventes e desapareceram de cena, demonstrando ostensivamente que não queriam ser vistos nem achados no assunto.

Tirei algumas (poucas) dúvidas que me sobravam há vários anos. Aliás, as primeiras dúvidas foram-me transmitidas por imensos colegas cabo-verdianos em Angola.

Luis ou Carlos, o Google Earth tem uma foto panorâmica da estátua de Amílcar Cabral: se a conseguirem publicar era interessante, eu não sei como a tirar e mandar.

Um abraço,
António Rosinha


Rotunda do Aeroporto, local onde se encontra a estátua de Amílcar Cabral. Fonte: Google Earth (com a devida vénia...)

Vista geral da Rotunda e estátua de Amílcar Cabral. Fonte: Google Earth (com a devida vénia...)



Cruzamento Chapa-Bissau. Fonte: Google Earth (com a devida vénia...)

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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 4 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P3983: Nuvens negras sobre Bissau (16): O Nino e o Luís Cabral que eu conheci, em 1979-1993 (António Rosinha)

Vd. último poste da série de 20 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5680: Efemérides (41): No 37º aniversário da morte de Amílcar Cabral, recordando o sucesso diplomático que foi a visita da missão da ONU às regiões libertadas, no sul, 2-8 de Abril de 1972

Guiné 63/74 - P5738: Em busca de... (114): Neusa Danho procura amigos de seu pai, o 2.º Srgt Mil Cristóvão dos Santos - 3 (Paulo Santiago)


1. O nosso Camarada Paulo Santiago (ex-Alf Mil At Inf do Pel Caç Nat 53, Saltinho, 1970/72), enviou-nos a seguinte mensagem, com data de 22 de Janeiro de 2010:

PROCURAM-SE INFORMAÇÕES SOBRE

2.º Srgt Mil Cristóvão dos Santos

Camaradas,

Acho que vos devo dar conhecimento, se quiserem publicar, façam-no.

Como vós deveis saber, quando recebo msg' s semelhantes à da Neusa Danho, tudo faço e farei para satisfazer o desejo, neste caso, da filha de um camarada. E fico frustrado se tal não conseguir.

Mandei aquela msg para o blogue, mas não apareceu ninguém, até agora, que conhecesse o Fur.Mil. Cristóvão dos Santos. Procurei outras vias.

Ontem pesquisei quem na Tabanca Grande estivera colocado na CCAÇ 3, lá encontrei um camarada a quem enviei um e-mail, ainda sem resposta.

Hoje à tarde, depois de ver que não havia nada de novo, tive um clic... Porra! o Marques Lopes esteve na CCAÇ 3. Liguei-lhe, mas o nome Cristóvão não lhe dizia nada, mas, oh Paulo, vou falar a uns camaradas...

Passado meia-hora, é o Marques Lopes a ligar-me, já falei com um camarada, que ainda lá esteve comigo, o Cristóvão era do pelotão dele, eram muito amigos, toma o contacto dele e liga-lhe à noite.

Fiquei, como que aliviado.Há umas duas horas atrás liguei ao ex- Alf. Mil. Artur Fernandes, militar na CCAÇ 3, 68-70, tendo estado em Barro, Bigene, Binta, Guidage, que me confirmou ter tido um Fur. Mil. Cristóvão dos Santos, que deveria ser o mesmo que eu procurava, de quem guardava gratas recordações. Pedi-lhe para ver as fotos publicadas no blogue.

Entretanto liguei à Neusa, para Bissau.

Ficou surpreendida por ligar, e mais ficou quando lhe disse que encontrara um dos comandantes de pelotão do pai. O Artur perguntara, eu não soubera responder, mas perguntei à Neusa qual tinha sido a causa da morte do pai "uma intervenção cirúrgica às hemorróidas, parecia uma coisa simples, complicou-se e o meu pai morreu, em 1980, tinha três meses...não o conheci". Percebi a razão da procura dos camaradas.

Liga-me o Artur " Paulo, já vi as fotos, é mesmo o Cristóvão" Senti a comoção da voz.

Abraço a todos,
Paulo Santiago
Alf Mil At Inf do Pel Caç Nat 53

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Nota de M.R.:

(*) Vd. também sobre esta matéria os postes:

16 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5655: Em busca de... (108): Neusa Danho procura amigos de seu pai, o 2.º Srgt Mil Cristóvão dos Santos

23 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5695: Em busca de... (112): Neusa Danho procura amigos de seu pai, o 2.º Srgt Mil Cristóvão dos Santos (Paulo Santiago)

(*) Vd. último poste da série em:

25 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5706: Em busca de... (113): Procuro reactar contactos com Amigos da CCAV 3364 (Capito Joaquim)

Guiné 63/74 - P5737: Pré-publicação de Mulher Grande, de Mário Beja Santos (1): Um Gabu de poucas e fracas recordações


Guiné-Bissau > Região do Gabu > Gabu > 16 de Dezembro de 2009 > Um dos edifícios, de traça colonial, mais imponentes da cidade. Do laddo direito, fica a agência local do Banco da África Ocidental (BAO) que tem cinco agências no país (duas em Bissau, e as restantes em Gabu, Bafatá e Canchungo), pretendendo abrir outras  duas, em S. Domingos e em Buba.  O BAO, um banco guineense,  com 100% de trabalhadores guineenses, foi fundado em 1997, e pretende contribuir para a modernização da economia guineense: apenas 2% dos 1,3 milhões de guineenses utilizam serviços bancários...  O Banco tem participação de capitais portugueses.

Guiné-Bissau > Região de Gabu > Proximidades de Gabu > 16 de Dembro de 2009 > Um imagem eterna: Mulheres lavando no rio...



Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Tabanca de Tabató na estrada Bafatá-Gabu  > 16 de Dezembro de 2009 > Meninos mandingas. Esta é a terra do músico Kimi Djabaté, radicado em Portugal desde 1994. Fotos do médico e músico João Graça (Melech Mechaya), que esteve na Guiné-Bissau em Dezembro de 2009 (Bissau, Guileje, Iemberém, Bubaque, Bambadinca, Bafatá, Contuboel, Tabató, Gabu, São Domingos).

Fotos: © João Graça (2009). Direitos reservados


1. Damos início, hoje, à pré-publicação de excertos do próximo livro do nosso amigo e camarada Mário Beja Santos, "Mulher Grande" (*):


Mail de 14 de Janeiro:

Queridos amigos, o livro “Mulher Grande” é uma narrativa ficcionada, um relato de uma vida de memórias (memórias de uma vida). É a Guiné que aproxima a narradora e o seu arquivador/escriba. Benedita Dantas Estevão possui uma memória prodigiosa, viveu as agonias e os êxtases de toda a gente.

A estrutura da narrativa baseia-se num processo literário explorado magistralmente por John Dos Passos, limitei-me a seguir-lhe as pisadas: há um episódio inicial em que o narrador descreve acontecimentos, o arquivador/escriba reflecte sobre eles (solilóquio) e o narrador dá uma explicação íntima para o que contou (recordações e trabalho de casa), é um círculo fechado de duas pessoas que falam a três vozes.

O que ofereço ao blogue é matéria que se prende com a essência do nosso blogue: a Guiné em vias de entrar na guerra. O resto, caso venha a entusiasmar os tertulianos, fica para a leitura de cabo a rabo. Sugiro a sua publicação em pequenos episódios de duas ou no máximo três páginas, em consonância com a própria construção dos diálogos. Aguardo a vossa apreciação. Um abraço de amizade, Mário



Mulher Grande > III > A Guiné em chamas ou o “Tubabo Tiló”por Mário Beja Santos

[III. 1] Um Gabu que deixou poucas recordações


Viajámos quase um dia inteiro de Bissau para o Gabu. As coisas passaram-se assim. De Bissau seguimos para Nhacra e daqui para Mansoa. Esta primeira etapa era a que se fazia melhor, embora tivéssemos partido debaixo de temporal, uma picada escalavrada. Quase duas horas depois, rumámos para Mansabá, tudo em caminho de terra batida. Quando passámos ao lado do Morés, mal sabia eu que dentro de alguns anos estaria aqui um dos santuários da guerrilha. De Mansabá seguimos até Bafatá, um estirão de duas horas e meia com as picadas inundadas. Em Bafatá lá fomos a um restaurante, fez-se uma pausa de uma hora. E depois, fez-se o percurso final, uma picada interminável de Bafatá a Nova Lamego, o Gabu. Creio que já disse que procurei documentar-me, o livro dos Fulas ajudou-me imenso, foi ali que fiquei a saber que aquela imensidão árida era quase um quarto do território da Guiné.

A melhor recordação que retive da viagem foi a ida ao mercado de Bafatá, pela primeira vez senti qualquer coisa de Muçulmano na atmosfera, vi os cavaleiros Fulas, garbosos, com os trajos a esvoaçar, com lindos turbantes, fora do mercado havia jogos de corpo a corpo, para mim não era grande novidade, já tinha visto os Felupes e os Manjacos, todos untados de óleo, faziam simulações um pouco como o que eu tinha lido acerca dos lutadores gregos. Para meu pesar, calcorreei toda esta região ao lado do Albano. O Boé é o único ponto do território com alguma elevação, ali há colinas mas falta vegetação, fui muitas vezes a Cabuca, fizemos passeios à República da Guiné indo do Gabu até Madina do Boé e daqui à fronteira. O Corubal e os seus afluentes eram de uma grande beleza, sentia-se uma natureza pouco mexida, houve quem me dissesse que mais belo que aquelas matas à volta do Corubal só no Cantanhez.

Quando chegámos ao Gabu era o fim da tarde, mas deu para ficar horrorizada com o que vi da casa. Por fora, era imponente, por dentro não tinha conserto possível, era um apodrecimento imparável. A água vinha de uma fonte, em bidões trazidos por carros de bois, os criados enchiam os bidões para o serviço da casa. Ocorreu-me este pormenor quando há dias me falou que a água de Missirá vinha de uma fonte a 2 quilómetros e que os seus soldados muitas vezes rolavam os bidões até ao quartel. Estávamos lá há 4 dias quando o secretário da administração adoeceu e os seus 3 filhos ficaram em nossa casa. No meio daquela desolação, aquelas crianças encheram-me de alegria.

Provavelmente pensa que eu estou a exagerar quando falo no desgosto que senti no Gabu. Olhe, a cadeia era nas caves da casa. Cada um dos quartos tinham um número na porta, a primeira impressão era que eu estava num colégio interno ou num reformatório. Disseram-me que o anterior administrador era um homem original que chamava o pessoal com apitos, cada um tinha o seu toque. Cada um de nós tem tendência para dizer que já viveu no fim do mundo. Estou à vontade para afirmar que naqueles anos 50 o Gabu era para lá do fim do mundo.

Naquela época das chuvas foi uma verdadeira aventura irmos visitar os postos de Piche, depois o Albano disse que íamos até Buruntuma, tive a noção que estava a atravessar um deserto, aqui e acolá havia umas pequenas tabancas, não havia brancos, nem mesmo libaneses, talvez um ou dois cabo-verdianos, o Albano só falou crioulo. O Gabu não tinha praticamente brancos nenhuns, talvez por ter pouco comércio, por ser quente como tudo, e a terra parecia calcinada. Encontrei logo duas pessoas simpáticas, o senhor Fontes, o chefe dos correios, e a mulher que era a professora.

Tinha havido um incêndio muito grave na administração, parece que fora um cigarro aceso deitado imprudentemente para um caixote, perderam-se muitos documentos. Naquela aridez, o edifício da administração estava num dos vértices de um quadrado o outro vértice era o correio e a escola, do outro lado a casa do médico e no vértice oposto a igreja. A igreja esteve praticamente fechada enquanto lá estive.

O Albano prezava a fidelidade do pessoal, por isso o Omaia, o Ocante e o Augusto vieram connosco. Há uma história passada no Gabu que nunca mais poderei esquecer. Eu gostava muito do filho mais novo do Borja, o nosso secretário, que nós conhecíamos por Chaplin. Quando nos viemos embora o miúdo queria vir à força connosco. Foi uma separação muito difícil. Aí por 1997, quando o Toninho estava a morrer, encontrei numa sala de estar do Hospital Particular de Saúde uma rapariga nova, muito triste. Estava a chorar, aproximei-me dela, não sei como a conversa passou para a África, num pulo chegámos à Guiné, não sei como lhe falei do Chaplin, a senhora levantou-se e deu um grande grito, era o seu marido que estava ali ao lado a morrer. Fui vê-lo, ele reconheceu-me, assisti à sua morte. O Toninho morreu uma semana depois. Deus dá-nos sinais que não queremos entender. Ou não podemos.

Se tudo era árido, se nem ao menos podíamos passear à noite 1 quilómetro a pé, se eu não podia dar-me com quem quer que fosse, resolvi adoptar uma gazela que eu criava a biberão, vivia lá em casa. Quando o Albano saía do quarto entrava a gazela, ficávamos ali as duas a conversar.

É quando estamos no Gabu que soubemos que o De Gaulle ia fazer um referendo na Guiné-Conacri para saber se a população queria ficar vinculada à França ou tornar-se independente. O Albano foi enviado pelas autoridades de Bissau à Guiné-Conacri para apreciar o processo do referendo, andámos 4 dias a visitar mais de 20 mesas de voto.

Também o Albano estava contrafeito com a vida que levávamos no Gabu. Recebemos com alívio, 6 meses depois de ali estarmos, a notícia de que o Albano ia em missão para Bambadinca, junto do rio Geba. Lá metemos tudo num camião, desta vez a viagem foi muito mais simples, a partir do Gabu nós chegámos a Bafatá, e daqui por uma estrada razoável descemos até Bambadinca.

No caminho, o Albano levou-me a uma terra muito curiosa chamada Fá, fiquei surpreendida com as instalações, o Albano explicou-me que tal como em Geba houvera um presídio e uma missão católica importante, em Fá havia serviços da administração, granjas experimentais e, já não me recordo muito bem, parece que também tinha havido um presídio, Fá teria sido uma povoação muito importante no passado. Antes de partirmos do Gabu aquele Chaplin que muitos anos depois eu vi morrer agarrou-se muito a mim e pediu-me para vir connosco.

Desculpe se esta exposição não está muito clara, dormi mal, para ser sincera esta noite pensei nas diferentes doenças que sofreu o Albano e nos apoios que ele teve enquanto viveu na Guiné. Um dia, António Carreira, um administrador quase aposentado que depois foi trabalhar na Casa Gouveia e que assistiu aos acontecimentos do massacre do Pidjiquiti, falou-me numa doença grave do Albano, tinha ele 20 anos. Foi nesse tempo que o Albano passou a acreditar nas plantas medicinais, tratou-se com de chá de buco quando sofreu de uma bilharziose. Todos os grandes estudiosos da Guiné lastimavam não haver estudos sobre as plantas medicinais. Eu já estava habituada com as doenças mais estranhas que imaginar se pode. A si não o espantava aquelas elefantíases com os corpos deformadíssimos? O Albano, por exemplo, sofreu de uma ténia que o engordou imenso.

A viagem para Bambadinca foi agradável. Nota triste foi que a gazela fugiu do camião, nunca mais a vi. Chegamos ao fim do dia, fomos ver o porto, com um cais muito velho. Estava na enchente, várias embarcações partiam para Bissau, ali o Geba está cheio de meandros, as margens são muito bonitas, parámos a ver um pôr-do-sol extraordinário. O Albano disse-me: “Ali é o Cuor, antes do Oio. Havemos de lá ir, estão ali algumas das florestas equatoriais mais fechadas que existem. E agora vamos subir, a casa da administração é no cimo daquela rampa, de onde se parte para o Xime”.

(Continua)

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Nota de L.G.:

Brasão de armas de Gabu (do tempo colonial),  retirado, com a devida  vénia,  da Wikipedia.en

(*) O Mário já nos tinha mandado o 1º Cap da Mulher Grande em 1 de Abril de 2009...  É a história de uma mulher, lisboeta, nascida em 1920, que vai parar a África por via do seu casamento  com um administrador colonial, Albano, no início dos anos 50...  Falaremos, com maior detalhe deste 1º Cap, num próximo poste...

Guiné 63/74 - P5736: Armamento (3): A célebre, irritante e temível costureirinha, a pistola-metralhadora PPSH, usada pelo PAIGC (Luís Dias)


Guiné > Zona Leste > Sector de Galomaro > CCAÇ 3491 (1971/74) > "Chegada a Galomaro da CCAÇ 3491 [, pertencente ao BCAÇ 3872,]  no dia 9 de Março de 1973. No jipe podemos ver o Alf  Luís Dias, atrás o Fur Baptista,  do 1º Gr Comb,  e ao lado, a sorrir, um guerrilheiro do PAIGC que, no dia anterior, se tinha entregado a uma patrulha nossa na área do Dulombi. A arma é uma Shpagin PPSH 41, no calibre 7,62 mm Tokarev, mais conhecida por "costureirinha" e com a particularidade de ter um carregador curvo de 35 munições, em vez do habitual tambor de 71". (Foto do Luís Dias, reproduzida com a devida vénia, do seu blogue, Histórias da Guiné, 71-74:  A CCAÇ 3491, Dulombi.

Foto e legenda: © Luís Dias (2009). Direitos reservados




Guiné > Zona Leste > Sector de Galomaro > CCAÇ 3491 (1971/74) > Elemento do PAIGC, com PPSH-41 (Costureirinha), em Dulombi, Março de 1973.

Foto e legenda: © Luís Dias (2009). Direitos reservados




Guiné > PAIGC > Novembro de 1970 > Um guerrilheiro empunhando uma PPSH (a irritante costureirinha, uma arma temível sobretudo em emboscadas)...



Fonte: © Nordic Africa Institute (NAI) / Foto: Knut Andreasson (com a devida vénia... e a autorização do NAI)


Segundo o nosso especialista de armamento, Luís Dias, "a pistola-metralhadora PPSH-41, concebida por Georgii Shpagin, conhecida pelas nossas forças como a Costureirinha, e pelo PAIGC como a Pachanga, foi uma das PM mais fabricadas no mundo (mais 6 milhões de exemplares), e largamente utilizada pelo exército soviético na IIª Guerra Mundial. No pós-guerra foi usada nos países satélites, na China, Vietname e nos movimentos de libertação africanos" (*).

Características da arma

Tipo: Pistola-metralhadora
País de origem: ex-URSS
Calibre: 7,62 mm, Tipo P
Ano inicial de fabrico: 1941
Alcance eficaz: 200 m
Alcance prático: 25 a 50 m
Peso: 5,45 Kg com tambor de 71 munições; 4,30 Kg com carregador de 35 munições
Comprimento: 843 mm
Munição: 7,62x25 mm Tokarev
Velocidade de saída do projectil: 488 m/s
Alimentação: Tambor de 71 munições ou carregador curvo de 35 munições
Segurança: Através de travamento da culatra na posição recuada ou quando fechada.
FUNCIONAMENTO: Arma de disparo selectivo de tiro (auto ou semi-auto), funcionando por inércia da culatra, através da posição aberta
Cadência de tiro: 900 tpm

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Nota de L.G.:

(*) Vd. último poste da série > 23 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 – P5690: Armamento (2): Pistolas, Pistolas-Metralhadoras, Espingardas, Espingardas Automáticas e Metralhadoras Ligeiras (Luís Dias)

Guiné 63/74 - P5735: Pensar em Voz Alta (Torcato Mendonça) (21): E agora?

1. Mensagem de Torcato Mendonça (ex-Alf Mil da CART 2339, Mansambo, 1968/69), com data de 23 de Janeiro de 2010:

Caríssimos Editores
Parou a chuva e veio o frio. Tempo de inverno.
Estava a ler o Expresso, vício de sabado, só que estava enfadonho, aborrecido, reportagens e artigos de opinião confusos e chatos. Sempre o mesmo e não saem disto!

Voltei ao Blog e lembrei-me deste escrito de tempos de confusão. Teclei. E agora? Mando ou não? Ontem foi um em crise de momento. E Agora? Vai! Aí vai então a difícil adaptação... em "português suave"...

Abraços do Torcato


E AGORA?

O carro, um 2 Cv cinzento e velho, rolava, em esforço, estrada acima.

Eu, sem carta de condução, tentava vencer aqueles três ou quatro quilómetros até um cruzamento com estrada secundária.

Dois meses antes, nem tanto, ainda estava na Guiné. Agora, cá estava tentando a difícil adaptação à vida civil, à minha verdadeira vida, interrompida por breves anos plenos de fortes vivências. Anos de mudança, de formação de um outro eu. Seria isso possível? Teria havido essa metamorfose? Ainda hoje, tantos anos depois, não sei. Sabia, nesses tempos de regresso a necessidade de encontrar o outro eu. Estava longe, em parte esquecido e maltratado. Seria possível recuperá-lo? Certamente que sim, mesmo retocado iria aparecer.

Difícil. Sentia ser difícil.

Entretinha-me calmamente a passar o tempo; tirava a carta de condução, passeava ou vagueava por uns dias e voltava mais leve, mais próximo de “eu” de outrora. De quando em vez, talvez vezes demais, deixava-me embalar docemente nos vapores do álcool. Suavizava um pouco em ilusão e, quantas vezes não acabavam em confusão.

Pensava, pensava e não encontrava resposta convincente:

- Que vais fazer agora? Recomeçar os estudos, voltar para a vida militar, encontrar ou aceitar algum dos empregos que me iam prometendo?

O melhor era esperar, somente esperar e ordenar ideias. Estava confuso, com falta de poder de concentração, parte de mim ainda não regressara. Confuso!

Um exemplo, como se fossem necessários, foi um torneio de xadrez. Inscreveram-me e ainda fiz duas ou três partidas. Não conseguia e desisti. Olhavam-me com espanto e pensavam estar em presença de outra pessoa. Não, não estavam. Não conseguia concentrar-me.

Quase sem dar por isso aí estava o cruzamento da estrada secundária. Fui por ali fora, por aqueles quilómetros de rectas, por paisagens conhecidas e revisitadas sempre com alegria. Observava tudo, cantarolava e o vento frio batia-me no rosto depois de entrar pelos buracos daquela “caranguejola”. Podiam ter-me emprestado melhor objecto.

Assim dava-me tempo de ir saboreando a paisagem, as mudanças provocadas pelo regadio, os pinheiros mansos e os estúpidos eucaliptos, tudo numa charneca onde o gado já aparecia. Só que o frio entrava e arrefecia. O frasco de bolso com a “1920” ajudava dele tirando dois ou três goles.

Ronceiro o 2 CV lá ia estrada fora, novo cruzamento, umas curvas suaves e aí estava a povoação e o mar logo a seguir.

Parei no parque e deliciei-me a ver aquela imensidão de mar, tanto mar e que saudade tinha tido dele, estava no meu sangue.

Sempre que necessitava de repousar, pensar para decisão, relaxar simplesmente ali me sentia mais seguro e reconfortado ou protegido. Ainda hoje e dele vivo longe.

Ali estava ele estendido até ao infinito do momento e trazia-me a paz a pensar, ajuda na decisão mas não a resposta à angústia do momento:

- Agora que vais fazer?

Não obtinha resposta e o mar, calmo ou tormentoso, só ia e vinha estendendo-se preguiçosamente na areia ou batendo mais forte nalguma rocha negra e xistosa.

Apareceu um casal de namorados a ver a paisagem. Acenaram e fiz o mesmo. Pus o carro a trabalhar e voltei. Deixava a paisagem só para eles.

No regresso pensei em confusão e, porque não, em revolta no comportamento da maioria das pessoas sobre a guerra no Ultramar. Se tinham familiar lá preocupavam-se. Caso contrário alheavam-se, ou, pior ainda, diziam barbaridades. Estão lá para os militares ganharem dinheiro, não acabam com a guerra porque não querem e outros comentários.

Por vezes perguntavam onde eu tinha estado. Guiné; respondia.

Não se atreviam a dizer coitado. O comentário geralmente era: Azar, se ainda fosse Angola ou Moçambique. Geralmente não respondia, a cara, o sorriso amarelo ou o olhar tudo diziam. Vivíamos em ditadura, tínhamos falta de informação mas, esse desinteresse não justificava tudo. Hoje, dizem que vivemos em democracia e não devia ser diferente a atitude.

E Agora?

Esperava, ia outra vez a Lisboa? Voltava sempre ao mesmo. Só que Lisboa tinha tanto para ver, tanto para recuperar do tempo perdido. Enfim.

Esperava, ia tratando de assuntos pendentes e tentava encontrar o caminho a seguir. Adaptar-me com calma e recuperar o tempo roubado, procurando não ser boémio mas ir vivendo…calmamente.

E tu Camarada não foi difícil a tua adaptação à vida civil, à tua verdadeira vida?

Não? Então felicito-te.

Desculpa, percebi mal. Foi difícil, foi aos poucos. Então compreendes o que comigo aconteceu. Juventudes interrompidas ou roubadas.

Pergunto ainda: dormias bem, tentavas esquecer e conseguias ou, ou de quando em vez, sentias estar lá?

O tempo foi esbatendo, apagando cada vez mais. Até certamente pensaste, como eu – a guerra acabou para mim. Quando sentias situação de perigo, te diziam frase menos correcta e não só; - diz lá camarada, diz a ti, sentias como eu e voltavas lá. Pois!

Vai connosco, vai connosco vida fora e, para despertar basta o toque do clarim e estamos lá. Contudo algo ficou, algo só nosso, algo que só nós compreendemos e a nós diz respeito e perdurará até ao fim: a camaradagem, a amizade e solidariedade.

Nem tudo foi mau ou tempo perdido.

TM
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Notas de CV:

(*) Ver postes de:

23 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5697: Controvérsias (62): Colonizar versus descolonizar (Torcato Mendonça)

16 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4963: Blogoterapia (126): Pensar em voz alta: Em noite e dia de "cerrar dente" (Torcato Mendonça)

Vd. último poste da série de 26 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5713: Blogoterapia (139): Vencer os Traumas de Guerra (Joaquim Mexia Alves) / Recordar é viver (António Rosinha)

Guiné 63/74 - P5734: Ser solidário (53): Que muitas Runas se levantem (José Martins)

1. Mensagem de José Martins (ex-Fur Mil, Trms da CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70), com data de 23 de Janeiro de 2010:

Caros camaradas e amigos
Junto mais um texto sobre os sem abrigo.
Posso estar a bater em ferro frio, mas alguma coisa há-de ficar.
Bom resto de fim de semana.

Abraço
José Martins


Que muitas RUNAS se levantem!

Lar dos Veteranos Militares


Porquê RUNA [coordenadas 39º03’55” N - 9º12’32” O], aquela pequena localidade com 6,71 kms² e pouco mais de mil habitantes, situada a 8 km de Torres Vedras, a cujo concelho pertence?

Vamos encontrar a resposta, ou melhor, encontrar o seu início no ano de 1827, quando Portugal saía (?) dum período bastante conturbado:

- As Invasões Francesas ou Guerra Peninsular, entre 1807 e 1811, com toda a destruição do estado de guerra ou destruição táctica, e
- A mobilização de portugueses, e a consequente saída do país, integrando a Legião Portuguesa.
Em Runa ficava localizada uma quinta, propriedade da infanta D. Maria Francisca Benedita de Bragança, nascida em 25 de Julho de 1746, quarta e última filha do Rei D. José I e de D. Mariana Vitória de Espanha, que foi baptizada na Sé Patriarcal de Lisboa pelo Cardeal D. Tomás de Almeida. A título de curiosidade, e de acordo com a tradição, a princesa recebeu o nome de Maria Francisca Benedita Ana Isabel Antónia Lourença Inácia Gertrudes Rita Joana Rosa.

Em 21 de Fevereiro de 1777, com trinta anos, contraiu casamento com o seu sobrinho D. José, Príncipe da Beira, e presumível herdeiro da coroa, passando D. Maria Benedita a ser nora de sua irmã D. Maria, que ascenderia a rainha em Março seguinte, com o nome de D. Maria I.

Entre os esponsais havia uma diferença de idade de quinze anos. Não tiveram filhos, vindo D. José a morrer, prematuramente, em 1788, após onze anos de casamento, tendo D. Maria Francisca ficado conhecida como a Princesa-viúva. Iniciou um longo período de luto.

Senhora inteligente, com dotes artísticos [existe um painel na Basílica da Estrela, pintado de parceria com a sua irmã D. Maria Ana] e de uma cultura rara, poderia ter gasto o seu próprio dinheiro com a construção de uma igreja ou de um convento, o que lhe traria prestigio entre os nobres e o reconhecimento dos clérigos, mas assim não procedeu.

A 27 de Junho de 1799, sob o projecto do arquitecto José da Costa e Silva, são iniciadas as obras do Lar dos Veteranos Militares, destinado a acolher militares pobres e inválidos, pelo que também é conhecido por Asilo de Inválidos Militares de Runa.

O edifício no estilo neoclássico da época, cuja construção custou mais de seiscentos contos de reis, tem uma frente de 99 metros, orientada no sentido Norte/Sul, com 61 metros de fundo e uma altura de 13 metros. Ao centro do edifício foi construída a igreja de uma nave e transepto rematado em semicírculo, sendo o conjunto dominado por uma cúpula. Foi inaugurado em 25 de Julho de 1827, quando D. Maria Francisca comemorava o seu octogésimo primeiro aniversário, tendo destinado neste conjunto uma ala para sua residência, ficando conhecidos como “Aposentos da Rainha”.

O Edifício do Asilo de Inválidos Militares de Runa.

No acto da inauguração ficaram as palavras da sua fundadora: “Estimo ter podido concluir o Hospital que mandei construir para descansardes dos vosso honrosos trabalhos. Em recompensa só vos peço a paz e o temor a Deus ".

D. Maria Francisca de Bragança morreu em Lisboa no dia 18 de Agosto de 1829, tendo sido sepultada no Panteão dos Braganças, no Mosteiro de São Vicente de Fora, em Lisboa, junto do seu marido, D. José, em singelas arcas tumulares.

Actualmente o edifício é propriedade do Ministério da Defesa Nacional, e é dirigido pelo Instituto de Acção Social das Forças Armadas.



Abrigos de Combatentes

Após esta resenha histórica sobre o Lar dos Veteranos Militares que, senão único é pelo menos pioneiro, vamos entrar no motivo principal deste escrito: ABRIGOS DE COMBATENTES.

Quando D. Maria Francisca de Bragança se lançou na construção do Lar de Runa, os meios de assistência, quer médica quer social, eram reduzidos. Assim se justifica a concentração de meios, técnicos e humanos, naquela unidade.

Na actualidade, apesar de terem sido encerrados vários centros de saúde em diversas localidades, o país dispõe de meios de assistência que permite criar estruturas de assistência descentralizados.

Agora, que passadas as eleições de Outubro de 2009, com as autarquias eleitas e já em funções, e cujos programas manifestavam a intenção de tentar resolver a situação dos sem-abrigo, podem e devem dar início a essa campanha.

Qualquer Município ou Freguesia deste país terá, certamente, um imóvel que facilmente poderá ser adaptado a Abrigo a tempo parcial, caso não seja possível a tempo inteiro Esse local passaria a ser ponto de encontro entre amigos e conterrâneos, mantendo assim, além dos laços familiares e de amizade, a ligação às suas raízes de origem ou de adopção. Devemo-nos lembrar que há autarcas que são, apesar de muitas vezes o não revelarem, antigos combatentes, o que os torna nossos camaradas de armas.

Temos que ter em conta que os “sem-abrigo” não são só aqueles que, pelas mais diversas razões, estão desprovidos de local de habitação. São também aqueles que, tendo família, a vêem sair de manhã e só regressar ao final do dia, passando essas largas horas, quase intermináveis, olhando a rua através das vidraças, isto quando as janelas dos seus aposentos, normalmente os mais modestos da casa, dão para a rua.

Alguns, muitos ou poucos, vão até ao largo ou ao jardim, onde foram instaladas umas mesas e bancos, que servem de local de encontro para “um jogo de cartas”. Mas, nesses jogos, apenas só jogam quatro, limitando-se os outros a ver, quando não se retiram por se sentirem marginalizados. Quando chove e não podem ir ao encontro do jogo, única distracção possível, aumentam o exército dos “solitários”, aumentam o número daqueles que nem olham o relógio, porque sabem que esse aparelho de medida do tempo, nestas alturas ainda se arrasta mais lento.

Muitas frases ficaram na história sobre os combatentes, assim como a forma como, sempre, foram tratados:

- “Os soldados portugueses combateram para não ficarem mortos na alma.” [Professor Doutor Adriano José Alves Moreira, nasceu em Grijó de Vale Benfeito (Macedo de Cavaleiros) em 6 de Setembro de 1922];

- “O carácter duma nação vê-se pela forma como trata os seus combatentes.” [Wiston Churchil, nasceu em Oxforshire (Inglaterra) em 30 de Novembro de 1874, † Londres 24 de Janeiro de 1965];

- “Se serviste a Pátria e ela te foi ingrata, tu fizeste o que devias ela o que sempre faz.” [Padre António Vieira, nasceu em Lisboa em 6 de Fevereiro de 1608, † Bahia (Brasil) 18 de Julho de 1698].

Estamos cientes de que qualquer antigo combatente não deixará de colaborar e comparticipar dentro das suas disponibilidades, em tempo e materialmente, na concretização destas pequenas “organizações”; a própria comunidade local, individual ou colectivamente, colaborará para minorar os últimos tempos daqueles que, na sua juventude já longínqua, puseram á disposição da Pátria a sua própria vida, num juramento, mesmo que silencioso, à nossa Bandeira, e não veremos repetir-se a denúncia feita por Alexandre Herculano [nasceu em Lisboa 28 de Maio de 1810, † Santarém 13 de Setembro de 1877] na revista Panorama de 15 de Setembro de 1838, acerca do Real Hospital dos Veteranos, que dizia “… dentro em pouco os inválidos que lá existem terão de ir mendigar o pão, que a pátria tem obrigação de lhes dar, havendo eles ganho o direito a recebê-lo com o seu sangue, e com os perigos e fadigas da guerra, que só sabem avaliar aqueles que os têm passado.”



Urge começar …!

As festas natalícias já terminaram e o novo ano já se iniciou. Quer isto dizer que as pessoas voltaram a sua “vida normal”.

As festas organizadas pelas diversas organizações, juntando à volta de uma banda musical ou em espectáculos mais organizados, já se esfumaram, até na memória dos que foram o objecto delas, porque o país voltou à sua “velocidade de cruzeiro”.

Os subtítulos, “Lar dos Veteranos Militares” e “Abrigos de Combatentes”, que antecedem este novo subtítulo, foram terminados no dia 22 de Dezembro. Três dias depois, exactamente a 25 – no próprio dia de Natal – dei inicio à recolha de material para este texto de finalização.

Maquinalmente o carro levou-me para o centro de Odivelas, para o local onde os nossos camaradas José e António, conhecidos como os “sem-abrigo de Odivelas”, tinham passado a noite de consoada, que é como quem diz, mais uma noite expostos às intempéries: à chuva e ao frio.

Mantinham-se na sua posição e local habituais, indiferentes ao vento e à chuva que caía e ao que se passava à sua volta, porque era “apenas” mais um dia, que por acaso era dia de Natal.

Os antigos combatentes sem-abrigo, no “seu território”

Uns metros mais à frente, e num espaço de poucos metros, “encontrei” alguns locais que, apesar de puderem ter uma utilização social, mesmo desconhecendo se são propriedade particular ou propriedade do estado.

Rumei à Rua Guilherme Gomes Fernandes, acedendo pela Rua do Souto, junto do ex-líbris da cidade – o Cruzeiro - fica um casarão com o número 70.

Edifício da Rua Guilherme Gomes Fernandes, n.º 70

Este edifício encontra-se bastante degradado. Os vidros das janelas estão partidos e os caixilhos já estão deteriorados. Mas existem sinais de que não esteja completamente abandonada; o portão principal, e provavelmente único, está fechado com uma corrente e cadeado, dispondo, ainda, de uma placa indicando ser proibido estacionar em frente da mesma.

Uns metros adiante, frente ao Largo Dom Dinis, onde se encontra o Mosteiro de São Dinis e São Bernardo e funciona o Instituto de Odivelas tutelado pelo Ministério da Defesa Nacional, curiosamente o mesmo ministério que tutela os Ex-Combatentes, no número 104 letra B, fica um edifício que, pela tabuleta que ostenta, se encontra para alugar “ou” venda (?)”, uma vez que a placa se encontra partida.

Edifício da Rua Guilherme Gomes Fernandes, n.º 104-B

Continuando e entrando na Rua Combatentes da Grande Guerra, que termina na Rua Combatentes de Ultramar (nova e curiosa coincidência), junto da antiga Quinta de Nossa Senhora do Monte do Carmo, em cuja casa capela e anexos se encontra a Biblioteca Municipal Dom Dinis, encontram-se uma construções, que lembra os blocos operários do inicio da “era industrial” , sendo que algumas habitações apresentam sinais de “tentativa” de conservação, mas outras estão degradadas.

Rua Combatentes da Grande Guerra, n.º 6 e seguintes

Na entrada para o pátio que dá acesso as traseiras, encontra-se uma placa metálica que diz “DO MONTE DO CARMO”. Falamos do número seis e seguintes.
Do outro lado da rua, com o número 5, encontra-se outro imóvel de estilo diferente do anterior.
Apresenta resquícios de “art nouveau” ou um estilo mais modernista, em função da arquitectura do espaço em que se encontra implantado.
Como os anteriormente mencionados, o seu estado de degradação é notório, motivado, provavelmente, pela desocupação a que foi votado.

Rua Combatentes da Grande Guerra, n.º 5

Independentemente de se tratar de imóveis de propriedade particular ou do Estado, e independentemente de existir ou não qualquer utilização para outros fins, previstos ou não no PDM (Plano Director Municipal), somos da opinião de que estes imóveis deveriam manter a sua traça original, adaptados, como é obvio, aos fins a que vierem a ser destinados.

Mantemos a ideia de que Odivelas deveria ter um “Abrigo de Combatentes” com as funções que as organizações participantes (oficiais e/ou particulares) entenderam por bem pôr em prática, para o bem estar daqueles que, na sua juventude colocaram ao serviço da pátria, e hoje, com um futuro cada vez mais minguado, ainda enfrentam a incerteza do dia de “amanhã”.

Com esse espírito de solidariedade para com os desvalidos, governantes, autarcas, combatentes, gente anónima, ou seja, todos e cada um de nós, deveremos atentar na frase do Padre António Vieira, com quer finalizo este texto:

Nós somos o que fazemos.
O que não se faz, não existe.
Portanto, só existimos nos dias em que fazemos!


José Marcelino Martins
Ex-combatente da Guiné
josesmmartins@sapo.pt
Odivelas, 20 de Janeiro de 2010
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 5 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 – P5595: Fichas de Unidades (6): COP 4 - Comando Operacional nº 4 (José Martins)
e
22 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4992: Ser solidário (37): Carta Aberta em prol dos ex-combatentes sem abrigo do Concelho de Odivelas (José Martins)

Vd. último poste da série de 28 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5720: Ser solidário (52): Campanha da Tabanca de Matosinhos: Ajudemos a minorar as carências do povo da Guiné-Bissau (José Teixeira)