terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Guiné 63/74 - P5822: Estórias avulsas (27): Do Cumeré a Canquelifá (João Adelino Aves Miranda, ex-1.º Cabo da 1.ª CCAÇ/BCAÇ 4610/73)




1. O nosso Camarada João Adelino Aves Miranda, 1° Cabo Radiotelegrafista, da 1ª Cia do BCAÇ 4610/73 - Cumeré, Canquelifá, Nhamate -, 1974, actualmente emigrado na Alemanha, enviou-nos, com data de 15 de Fevereiro de 2010, a seguinte mensagem:

Camaradas,

A minha curta passagem pela Guiné está de alguma forma preenchida de recordações, na sua maioria boas.


Do Cumeré a Canquelifá


No entanto, recordo-me, por exemplo, de que quando acabei o IAO no Cumeré e me tive de juntar ao resto da Cia, creio que em Piche, eu e outros camaradas fomos enviados para o aeroporto e, quando lá chegámos, deparámos com um NorthAtlas a voltar, de uma viagem, para trás, com um problema técnico num dos motores.

Ouvimos dizer que ia ser resolvido o problema, e que, depois do avião levar ao seu destino os soldados que nele viajavam, regressaria para nos levar a nós.

Não queiram saber o desatino que foi entre a maioria da malta, ouvindo-se aqui e ali: “Eu não entro naquele avião nem morto”.

Outros chegaram à conclusão de que, se o aparelho fosse e viesse, seria sinal de que a avaria tinha sido bem reparada.

De facto a aeronave foi e veio, e levou-nos também ao nosso destino sem problemas.

Continuo na dúvida se realmente o destino do avião era Piche ou Nova Lamego, mas estou mais inclinado para a segunda hipótese.

Logo que chegamos, tínhamos à nossa espera uma coluna auto, na qual embarcamos, e vieram avisar-nos que, muito provavelmente, iríamos encontrar ao longo da picada elementos do PAIGC, mas que, em princípio, não haveria qualquer problema, já que nesta altura estávamos no pós 25 de Abril.

Por via das dúvidas acharam melhor seguirmos com a arma em pronta a fazer fogo.

De facto encontrámos alguns elementos do PAIGC, com uma cara muito séria a olhar para nós, o que me deixou muito pouco à vontade.

Enfim, chegámos a Canquelifá e fomos recebidos pelos velhinhos como verdadeiros VIPS, tivemos direito a “reportagens televisionadas pela RTP” e tudo (estão a imaginar aquelas câmaras de televisão feitas de caixas de papelão).

Depois prestaram-nos as “honras da casa”, mostrando-nos o aquartelamento e alguns buracos no chão da parada, feitos (segundo eles nos diziam) por mísseis. Como a guerra tinha acabado, não me assustei muito.

Eu pensava, até ter lido aqui no blogue que ouve tiroteio em algumas zonas da Guiné depois do 25 de Abril, que tinham cessado completamente as hostilidades na Guiné, e dizia-o, então, a toda a gente com quem conversava.

Puro engano meu, pelo que tenho vindo a constatar.

Assim, fiz a minha estadia de um mês e sete dias, se não me falha a memória, a dormir em cima de umas tábuas durante esse período, porque os velhinhos fizeram o “favor” de levar com eles os colchões do quartel.

Durante esse tempo recebíamos a visita de soldados do PAIGC, com certeza para estabelecer os trâmites da entrega do destacamento com o nosso Capitão.

Lamento não ter fotografias dessa entrega, nem qualquer outra foto de Canquelifá.


Bissau > Bissalanca > Junto do avião > Eu em pé, à esquerda, e, ao meu lado, o Sold radiotelegrafista Guimarães, o Cantineiro da Cia (cujo nome não recordo), o 1° Cabo Operador Cripto Rijo. Em baixo, o 1° Cabo Radiotelegrafista Dinis e a seu lado o Sold Radiotelegrafista Magalhães.

Um abraço,
João Miranda
1° Cabo Radiotelegrafista da 1ª Cia, BCAÇ 4610/73


Emblema e guião de colecção: © Carlos Coutinho (2009). Direitos reservados.

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Nota de M.R.:

(*) Vd. último poste da série em:

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Guiné 63/74 - P5821: Histórias em tempos de guerra (Hélder Sousa) (9): A Presse Lusitana

1. Mensagem de Hélder Sousa (ex-Fur Mil de TRMS TSF, Piche e Bissau, 1970/72), com data de 15 de Fevereiro de 2010:

Caros Editor e Co-Editores
Junto envio este texto que foi motivado pelas lembraças despoletadas pelos posts do Eduardo relativamente à folha informativa "Presse", que julgo que no 'meu tempo' se chamava 'Presse Lusitana'.
Duma forma ou doutra o texto aqui vai e espero que sirva para conhecerem melhor outras actividades, para além daquelas que eram comuns à maioria dos 'operacionais'.

Um abraço
Hélder Sousa


HISTÓRIAS EM TEMPO DE GUERRA (9)

A “PRESSE LUSITANA”


Os relativamente recentes artigos do Belarmino Sardinha sobre as Transmissões e as funções e trabalhos dos camaradas TSF e agora os artigos do Eduardo Campos com a apresentação de vários exemplares da “Presse” (Serviço noticioso para as Forças Armadas da Guiné – Notícias captadas da radiodifusão pelas Transmissões), fizeram recordar-me alguns aspectos da minha actividade nesse âmbito.

Devo dizer que não tinha comigo nenhum exemplar do meu tempo, nem de outro, coisa que agora já está resolvida por que o Eduardo fez questão de me presentear com três originais do ‘tempo dele’, o que muito me sensibilizou e que aproveito para agradecer publicamente.

Como entretanto podem ter reparado, o sub-título refere-se à “Presse Lusitana” que é como a minha memória recorda a designação do ‘meu tempo’, e não simplesmente “Presse”, como aparece nos documentos apresentados no Blogue. Posso estar a ser atraiçoado pelo desgaste do tempo mas era assim que me lembrava, por isso assim o indico.

Aliás, já em várias situações se tem verificado que as coisas foram mudando ao longo do tempo, na ocupação do terreno, na extensão territorial do conflito, nas diversas operações, etc., e também até já me apercebi, por textos colocados aqui no Blogue, que relativamente às Transmissões também houve modificações, adaptações a novas realidades operacionais.

No caso particular destas ‘folhas de notícias’, julgo recordar-me que houve camaradas de tempos anteriores ao meu que se referiram a procedimentos que não coincidiam com o que foi a minha prática, por isso nada melhor que relatar como foi comigo e deixar que cada qual faça as suas adaptações…

Não sei, não me lembro, onde é que a “Presse” era efectivamente produzida, ou seja, batida a ‘stencil’ e depois policopiada e distribuída, seria certamente ‘algures’ nas instalações do Agrupamento de Transmissões, mas tenho a certeza que, no meu tempo, a “Presse” era sempre composta por três grandes grupos de notícias, a saber: notícias do País, notícias do Desporto e a parte restante, para ocupar o espaço, notícias do Estrangeiro.

As duas primeiras partes, ‘do País’ e ‘do Desporto’ calculo que eram recebidas no Centro de Mensagens e era um serviço recebido ‘via Marconi’. Talvez também no início as notícias do estrangeiro viessem por ali, não sei, mas a partir do momento em que no Centro de Escuta desenvolvemos a parte de captação das diversas agências noticiosas ficámos com a tarefa de coligir umas quantas que depois um estafeta recolhia ao fim do dia. Afinal, havendo ‘fonte’ para as notícias do estrangeiro, sempre se poupavam tempos de ligação à Marconi, que não eram grátis…

Não me lembro de haver qualquer indicação de orientação ou critério para a recolha dessas notícias, pelo que quando estávamos de serviço íamos, a nosso bel-prazer, fazendo uma ou outra tradução (a maioria das captações estava em francês, mas também havia em inglês, espanhol e italiano) e quando o estafeta passava, levava o que havia.

Como era uma actividade que eu gostava, pois assim estava a par do que se passava no Mundo e muito mais informado que qualquer vulgar cidadão português, acabei por chamar a mim o grosso das traduções, já que o fazia durante qualquer que fosse o turno, e mesmo durante a folga deixei muitas vezes o ‘serviço’ adiantado bastando aos camaradas seguintes escrever mais umas poucas, se se dessem a esse trabalho.

Dum modo geral não havia muito espaço para as ‘notícias do estrangeiro’ pelo que fosse qual fosse o conteúdo das notícias por nós coligidas no Centro de Escuta, não se corria muito risco da passagem de qualquer notícia menos ‘normal’.

No entanto, como sempre acontece nestas coisas, há sempre um dia em que não é assim!

Como já vos dei a entender, era minha convicção de que aquele território não era continuidade física de Portugal, que entendia como natural que aqueles povos aspirassem a uma independência, tal como os povos da península Ibérica se opuseram ao ocupante romano, tal como as tribos cristãs empreenderam a reconquista desse território peninsular, tal como os Portugueses se opuseram aos leoneses, aos castelhanos, aos franceses e até aos ‘aliados’ ingleses, pelo que, por simples acto de me rebelar contra a circunstância de estar ali, às vezes, pelo meio de notícias perfeitamente inócuas, metia um conjunto de notícias que não seriam as mais simpáticas para a orientação política do governo português e ao seu esforço de guerra, como por exemplo fazendo referência às decisões da ONU e a desastres crescentes ocorridos no Vietnam, tais como bombardeamentos, por engano, das próprias tropas americanas.

Ora então acontece que o maior problema ocorreu num domingo de 72, já não me recordo exactamente quando, mas que teve a ver com as eleições americanas que entretanto decorriam entre o republicano Nixon e o democrata MacGovern.

Tínhamos notícias de várias proveniências, como algumas vezes já referi, da APS (Argel Press Service), MAP (Magreb Árabe Press), MENA (Midle East News Agency), Reuter, France Press, etc., e também de algumas que íamos pesquisando, entre as quais a ‘Prensa Latina’ de Cuba.

Ora, nesse dia em causa, as comunicações da Marconi falharam pelo que o pessoal da “Presse” (ou Presse Lusitana) apenas tinha a tal folha proveniente da Escuta com as “notícias do estrangeiro” pelo que tudo o que eu tinha traduzido foi impresso e distribuído.

Entre outras coisas apareceu esta ‘pérola’, traduzida da ‘Prensa Latina’ que se referia, naturalmente, de modo pouco abonatório para o presidente Nixon, candidato republicano à reeleição. Dizia assim: “Mientras el Presidente Nixon se enfrascava en la Convención de Miami, el candidato MacGovern proseguía su campanha ….” . A minha tradução foi à letra, apenas coloquei o enfrascava entre aspas e foi assim que saiu.

No dia seguinte, após o Comando da Companhia se ter inteirado de que o redactor das ‘notícias do estrangeiro’ era eu, mandou-me chamar e procurou que lhe desse boas razões para aquilo ter saído assim. Foi o que fiz. O Sr. Comandante ‘compreendeu’ mas sempre foi avisando que talvez lhe fosse difícil defender a situação ‘mais acima’, porque aquilo tinha dado celeuma e havia ‘algumas vozes’ a propor inquérito com vista a possível punição.

Não aconteceu nada e o meu Comandante nunca me chegou a dizer como as coisas evoluíram, e eu também não lhe perguntei, no entanto, mais tarde, fiquei conhecedor da sua participação e envolvimento no “Movimento dos Capitães”, o que me fez perceber melhor porque é que ele ‘compreendeu’ as minhas ‘manhosas’ explicações.

Caros camaradas, desculpem estas reflexões sobre “memórias de tempos de guerra” que, espero, possam contribuir para o vosso melhor conhecimento das actividades ocorridas noutros locais, noutras funções e, como já uma vez escrevi, podem crer que a guerra se travou em muitas frentes… e de muitas maneiras! Até para criar condições para acabar com ela!

Um abraço para toda a Tabanca!
Hélder Sousa
Fur Mil Transmissões TSF

Centro de Escuta
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 12 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5636: Histórias em tempos de guerra (Hélder Sousa) (8): Como fui parar ao Centro de Escuta

Guiné 63/74 - P5820: Notas de leitura (67): O Disfarce, de Álvaro Guerra - Mais ou menos tão divertido como o teu exílio (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Fevereiro de 2010:

Queridos amigos,
Confesso que “O Disfarce” me impressionou pela sinceridade deste combatente que nos legou imagens tão impressivas, de grande recorte literário.

Um abraço do
Mário





Mais ou menos tão divertido como o teu exílio

Beja Santos

Álvaro Guerra (1936 – 2002) combateu na Guiné entre 1961 e 1963, regressa com um ferimento e em 1964 vai estudar na École des Hautes Études da Sorbonne. Volta a Portugal em 1969, ano em que edita O Disfarce, o seu segundo livro. Os Mastins (1967), O Disfarce, A Lebre (1970) e Memória (1971) são obras povoadas de recordações de um combatente que procura ajustar-se, por vezes com imensa dificuldade, a uma sociedade que se revela indiferente à guerra de África. Estes livros trazem já a marca de água de um talentoso escritor, Álvaro Guerra, a par de Armor Pires Mota, é nome cimeiro da literatura da guerra, sobretudo nos anos 60.

O Disfarce” corresponde a um tempo de desencanto, regista uma incapacidade de apaziguar a experiência da guerra junto de quem preferiu o exílio e vive na comodidade de Paris. Admito que no seu todo seja uma obra menor no conjunto da vasta biografia de Álvaro de Guerra, mas possui parágrafos belíssimos, irrecusáveis em qualquer antologia onde se pretendam registar os nomes perduráveis dos escritores combatentes. Logo o primeiro parágrafo de “O Disfarce”: “De narizes no ar, farejavam o céu, o motor do avião muito perto, muito perto, mesmo sobre as suas cabeças mas para além do nevoeiro cerrado, um grande insecto matreiro, invisível, irritantemente só nos ouvidos dos homens de narizes no ar, as armas na mão, empoleirados nos camiões estacionados no extremo da pista rodeada de pequenos grupos, para cada um sua metralhadora, as ligaduras brancas dos feridos quase brilhando entre os verdes e castanhos dos homens deitados nas macas, sentados nos jeeps, ou de pé, narizes no ar como os outros, ou ansiosos ou ciumentos, mas todos impacientes e, enfim, uma sombra aérea sobre a pista, por um momento, logo dissolvida naquele nevoeiro tão denso que molhava e, dentro dele, o bezoiro de prata que zumbia cada vez mais fraco, mais longe, até definitivamente se extinguir”.

São memórias sobrepostas, trata-se de alguém que vê e revê, que percorre Paris e outros locais europeus, que procura dar explicações sobre uma guerra onde esteve e que poucos querem ter notícia. O escritor transforma-se em agente figurante que em locais aprazíveis pode ouvir metralhadoras a crepitar, movimentos espasmódicos da culatra no seu vaivém. Por vezes alguém lhe pergunta se o braço lhe dói, o figurante responde que não e acrescenta “O que me está a doer é o sangue que lá perdi, a terra que ele não ensopou”. Toda esta narrativa é uma viagem, de amores precários, de tensões num mundo exilados, de recordações entre Bissau e Cacine, de uma mulher amada que se chama Maria e de que no final da obra nos apercebemos que é amor perdido. O figurante percorre as ruas de Paris e lembra-se de Safi, uma companheira acidental. Ele procura Jorge, o amigo que partiu para o exílio. Quando se reencontram, Jorge pergunta porque é que ele também não se exilou. E o figurante responde que não está arrependido: “Talvez eu não quisesse perder a oportunidade de ver e estar numa guerra ainda que sabendo estar nela no lado pior, longe de casa e a fazer horas para regressar”. Jorge responde-lhe que afinal fora divertido e o personagem desfecha-lhe sem uma hesitação: “Mais ou menos tão divertido como o teu exílio”.

Não nos interessa se esta Paris é autobiográfica, a cidade e o seu cosmopolitismo que não podem interpretar os barulhos do avião, o tumulto dos combates os gritos dos feridos. O figurante disfarça a vida que foi roubada ou postergada. Mas a memória está pujante de vida. A caminho da Holanda, ele recorda uma aldeia queimada, é um registo que não nos pode deixar indiferentes:

“Havia um cheiro adocicado, enjoativo, quando se aproximaram do que fora Lenguel, aldeia balanta, sinais de chamas recentes, devastação, e o povo escondido no mato. Tropeçou na carcaça calcinada de um boi cujos ossos amarelados se desconjuntaram, no meio de cinzas e destroços, pilões lambidos pelo fogo, cabaças enegrecidas, restos de primitivas enxadas de madeira, os gigantescos potes com as grandes bocas negras como os rombos enormes nos seus ventres vazios, e as paredes em ruína das cubatas sem tecto. Extensa, a bolanha estendia-se diante da aldeia queimada, a bolanha empapada, escaldante, febril, onde o arroz apodrecia na ponta dos calos amarelos a tombarem para a água”. O figurante pensa que a sua guerra é interminável, os seus pensamentos deslizam por uma corrediça tão extensa que chega à infância, à casa do tio João, mas cedo se embebe naquela floresta virgem, naquela terra de formigas pretas e de uma infinita saudade de gente que dá pelos nomes de Amadu, Gibril, Bubacar ou Malã.

O jovem escritor Álvaro Guerra revela-se pródigo em imagens que nos transferem sons, nos chegam aos sentidos, como se todo o corpo da guerra se tivesse colado à fisiologia. Por exemplo: “Com as pontas dos nervosos dedos, ele acariciou a granada suspensa de cobre da cavilha presa ao botão do casaco camuflado, sobre o peito, sobre o coração, a baloiçar a cada passo, de modo que ele podia permanentemente concentrar a atenção nesse levíssimo ruído das pancadas certas da granada contra o peito, ruído abafado, interior, só perceptível exteriormente pelo roçar do metal no botão da algibeira”. São imagens, convenhamos, de alguém na casa dos vinte anos que ainda não pôde filtrar tudo aquilo que é obra do tempo. Veja-se esta outra imagem de uma emboscada, vai ficar para todo o sempre: “Caiu em cima deles a surpresa, uma chuva de ferro, estampidos e silvos de ar vergastado quedas e ramos partidos e pragas e explosões e gargalhar fantasmagórico das rajadas matadoras e o homem ao lado dele com o sangue no ventre e nas mãos que disse “Ai, mãe!” e morreu”. Um sofrimento para toda a vida, porque são poucos os momentos desta tragédia, são instantes que vão ressoar no ser humano, por natureza mnésico, fraterno, comovido pela dor que pôde aliviar ou a morte que pôde obliterar. Esta a sinceridade de um tempo de disfarce, alguém que anda por Paris e veste uma mortalha, num mundo onde não se pedem explicações, parece que só os exilados é que têm direito à dor. Contido, o jovem escritor Álvaro Guerra deixou-nos esta memória discreta, efabulando uma mágoa tão poderosa que os seus amigos exilados até pensavam que era menor que a deles.

É pena falar-se tão pouco de Álvaro Guerra e do que ele escreveu sobre a Guiné onde se feriu, onde combateu, e cujo combate ele não escondeu.
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Nota de CV:

Vd. poste de 14 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5817: Notas de leitura (66): Armor Pires Mota (8): A Cubana Que Dançava Flamenco - O amor é mais forte do que a guerra (Beja Santos)

Guiné 63/74 - P5819: O 6º aniversário do nosso Blogue (3): No início de Maio de 2006, tínhamos 100 tertulianos, 735 postes publicados e 3 mil páginas visitadas por mês (Luís Graça)


Ao fim de 735 postes (usávamos então uma numeração romana...), no início de Maio de 2006, o nosso blogue , I Série, tinha cerca de 100 membros, registados, e uma média de 3 mil páginas visitadas por mês... (No final de Maio de 2006, atingiríamos um total de 26500).

Hoje estamos nos 400 amigos e camaradas da Guiné, já publicámos mais de 5800 postes e estamos prestes a atinjir o milhão e meio de páginas visitadas...

São são uns pequenos elementos para a petite histoire do nosso blogue, cujo primeiro poste remonta a 23 de Abril de 2004 (*)... Daqui de Braga, com um chicoração para todos/as... LG

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Reprodução do poste de 23 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXXII: Entrevista a Fernando Pereira, correspondente do Expresso, sobre o Projecto Guileje

(i) Mensagem de Fernando Pereira, correspondente do semanário 'Expresso' na Guiné-Bissau:


Caro senhor: Sou Fernando Pereira, jornalista guineense, correspondente do semanário Expresso na Guiné. Estou a preparar um artigo sobre o projecto Guiledje, da ONG AD - Acção para o Desenvolvimento. Nesse âmbito, queria saber o seguinte: (i) Que tipo de apoio o senhor e os participantes do blogue-fora-nada pensam atribuir ao projecto ? (ii) O que os atrai nesta iniciativa ? (iii) Já agora, quantas pessoas participam no fórum do vosso blogue ? (iv) Acha que a reconstituição do quartel de Guiledje e o lançamento de um turismo ecológico poderiam atrair visitas portuguesas a essas paragens ?

Se for possivel, agradecia uma resposta, o mais urgente possivel, a estas questões.
Cordialmente
FPereira

(ii) Respondi-lhe na volta do correio. O jornalista foi simpático, agradecendo-me de imediato "a atenção, assim como as interessantes evocações e opiniões".

P - Tipo de apoio que o senhor e os participantes do Blogue-fora-nada pensam atribuir ao projecto ?

Em cerca de 735 posts (ou textos) publicados no blogue, no espaço de um ano, uns 10% foram dedicados ou fazem referência a Guileje (ou Guiledje, segundo a grafia da Guiné-Bissau).


Guileje, o aquartelamento de Guileje, o corredor da morte de Guileje, a Mata do Cantanhez, mas também Madina do Boé, Gandembel e Gandamael, entre outros locais no sul, têm ainda hoje, passados mais de trinta anos sobre o fim da guerra colonial, uma enorme carga mítica, simbólica e afectiva para os ex-combatentes portugueses na Guiné...


A retirada de Madina do Boé saldou-se por um trágico acidente que vitimou quase meia centena de camaradas nossos; mas Guileje é considerado o único aquartelamento da Guiné que fomos compelidos a abandonar por razões militares e psicológicas: a pressão da guerrilha do PAIGC era de tal ordem que a situação se tornou insustentável...


Tanto para as tropas portugueses como para o PAIGC é um momento, se não de viragem (militar), pelo menos carregado de simbolismo...


Eu estive destacado, na zona leste, em Bambadinca, numa companhia africana, a CCAÇ 12, de Junho de 1969 a Fevereiro de 1971. Não conheci Guileje nem Gandambel. Mas no meu tempo contavam-se muitas estórias (falsas ou verdadeiras) sobre a degradação da situação militar no sul, e em especial em Guileje, Gadamael, Gandembel. Por exemplo, era extremamente popular a letra do Hino de Gandembel. Cantarolávamos, para espantar os nossos medos, exorcizar os nossos fantasmas e denunciar o absurdo daquela guerra a que estava condenada toda a juventude de um país, as quadras do Hino de Gandembel:


Gandembel das morteiradas,
Dos abrigos de madeira
Onde nós, pobres soldados,
Imitamos a toupeira.

(...) Temos por v'zinhos Balana ,
Do outro lado o Guileje,
E ao som das canhoadas
Só a Gê-Três te protege
(...)


Numa primeira fase, apoiamos o projecto Guileje, da AD - Acção para o Desenvolvimento, dando-o a conhecer, divulgando-o na Internet, recolhendo documentação sobre a presença militar portuguesa em Guileje (incluindo testemunhos de militares que por lá passaram)...

P - O que os atrai nesta iniciativa ?

Citando o líder da AD e autor da ideia, Pepito, o projecto Guiledje representa o triunfo da vida sobre a morte, da paz sobre a guerra, da memória colectiva sobre o esquecimento e o branqueamento da história...


É importantíssimo que a Guiné-Bissau recolha e preserve os testemunhos dos guerrilheiros do PAIG que lutaram pela independência, e que pertencem a uma geração que está a desaparecer... É importante igualmente ouvir o depoimento dos ex-combatentes e das autoridades militares portuguesas...

P - Quantas pessoas participam no forum do vosso blogue ?

Temos já uma lista de cem membros com endereços por e-mail...Por outro lado, o nosso blogue tem uma média de 3 mil visitas por mês... Há um crescente número de pessoas que o visitam, dentro e fora do país...

P - Acha que a reconstituição do quartel de Guiledje e o lançamento de um turismo ecológico poderiam atrair visitas portuguesas a essas paragens ?

Há uma crescente interesse pela Guiné-Bissau, por parte de uma geração como a minha que fez a guerra colonial e que hoje tem disponibilidade, vontade e poder de compra para ir à Guiné, juntar o útil ao agradável: fazer a sua romagem de saudade, exorcizar os seus fantasmas, visitar os lugares e as gentes que estão na sua memória, reconciliar-se com o passado, evocar os seus mortos, fazer o luto, conhecer o país de hoje, contribuir também para o seu desenvolvimento através de projectos integrados e inovadores como me parece ser este, liderado pelo Pepito e a AD...

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Nota de L.G.:

(*) Vd. postes desta série:

14 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5815: O 6.º aniversário do nosso Blogue (2): Homenagem ao Fundador Luís Graça e a toda a tertúlia (Joaquim Mexia Alves)

13 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5807: O 6.º aniversário do nosso Blogue (1): Homenagem ao Fundador Luís Graça e a toda a tertúlia (Jorge Félix / Carlos Vinhal)

domingo, 14 de fevereiro de 2010

Guiné 63/74 - P5818: História da CCAÇ 2679 (33): Vesti toalha de praia para ir falar com o Trapinhos (José Manuel M. Dinis)

1. Mensagem de José Manuel Matos Dinis (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), com data de 9 de Fevereiro de 2010:

Meu Amigo Carlos,
Certamente já tinhas saudades minhas, face à delonga desde o último episódio da CCaç 2679. É para te ires habituando, porque vou fazer um interregno de um mês e meio numa deslocação a Bissau.
Pronto, agora que já sabes, faz favor de engatilhar no teclado e dar à estampa mais um trecho cá-do-je.

Para ti e para a Tabanca,
Abraços fraternos
JD


HISTÓRIA DA CCAÇ 2679 (33)

Toalha de praia


O calor fazia-se sentir intensamente, o que provocava bastante incomodidade e calanzeira. Não havia alternativa. Não havia ar condicionado, nem as ventoínhas funcionavam por falta de operacionalidade do gerador. O pessoal procurava sombras protectoras para minorar o efeito da canícula que quase nos deixava em prostração. Deitei-me sobre a cama no quarto da velha casa colonial onde tinha alojamento. Peguei num livro, mas não lhe dei atenção, pelo que o deixei escorregar ao lado da almofada. Entreguei-me a pensamentos de sublimação, imaginando-me com quem eu gostava, algures num local tranquilo e confortável, finalmente livre dos condicionamentos da guerra.

Quase adormecera. Deixara o tempo passar naquela modorra, quando vieram chamar-me, que o Trapinhos queria falar-me.

Agradeci, e respondi que já lá iria.

Levantei-me e olhei em redor. Aos pés da cama, o camuflado, calça e camisa, que se apresentava como indumentária pesada e transpirada da saída matinal. Imprópria para aquele abafo. Peguei na toalha, com côres transversais próprias dos modelas de praia, cingia-a ao corpo, como se de mini-saia se tratasse, e dei-lhe um nó de fixação nas pontas superiores. De baixo da cama retirei os chinelos de enfiar nos dedos, a coisa mais barata e comum para calçar sem cerimónia.

Com um ar de macaco mal disfarçado, fiz-me ao caminho, atravessei a parada solenizada pelo pau onde flutuava a bandeira nacional, directo ao edificio da secretaria, por onde se entrava para aceder ao gabinete do capitão. Ao entrar naquele ambiente de trabalho burocrático, dei as boas-tardes e os olhares incidiram para mim. Além dos sargentos e do escrita, os habituais titulares do lugar, também se encontravam à conversa três ou quatro furriéis. Entre eles o Marino que, velhaco, querendo sublinhar a minha apresentação, atirou-me com a pergunta jocosa:

- Então, vais para o Tamariz?

O pessoal sorria, como se vissem um simpático extra-terrestre.

- Não pá, eu faço tudo ao contrário. Primeiro vou encontrar-me com o agente de viagens, respondi.

Ainda houve uns dichotes sobre a minha maluqueira, mas não dei qualquer importância e apresentei-me ao Trapinhos. Este, que frequentemente andava de tronco nú, aproveitou as larachas relatadas para me chamar a atenção, ao que lhe perguntei com ar indignado, se me chamara para ver a indumentária, se não, que fosse direito ao assunto. De tal forma surtiu efeito, que, sem mais palavras, dirigiu-se ao mapa que servia de quadro de operações, deslocou a cortina que o tapava, e apresentou-me o programa para o dia seguinte: uma qualquer patrulha de combate, por uns quaisquer traços de diferentes côres e intensidades, representativos de linhas de água, rios, trilhos e picadas, sobre o fundo verde claro que significava a planura da savana.

Não me perguntou pelo pessoal, nem sobre o equipamento, nem sobre o que quer que fosse, porque não lhe interessava minimamente, nem queria saber disso para nada, como se nada lhe dissesse respeito. Por mim, como não esperava nada daquele senhor, e a patrulha era para se fazer nas melhores condições possíveis para o pelotão, coisa que me dizia a mim respeito, só lhe perguntei se era para vir almoçar. Respondeu-me que não, era para levantarmos as rações de combate. Todavia, logo a seguir, possivelmente lembrado do escasso stock de rações, disse-me para avisar, tanto o cozinheiro, como o padeiro, para providenciarem o pequeno-almoço bem cedo, e que regressaríamos pelas treze horas para a refeição.

Porreiro, uma passeata de cinco horitas, dava para chegar pelo meio-dia, e o resto do tempo ficava por nossa conta. Ainda lhe perguntei se era necessário falar com o Marino e o Vitor, para providenciarem acompanhamento de transmissões e enfermeiro, e respondeu que sim, eu que falasse com eles. Fiz um sinal de que tinha compreendido, recolhi a carta com o desenho do percurso, e ala!

Em seguida fui à arrecadação do material, onde tinha deixado a arma ao cuidado do Mário. Ali trabalhavam dois excelentes militares, sempre disponíveis, a quem eu costumava pedir que me embelezassem a canhota. Antes do jantar, pedi a um ou outro Foxtrot deambulantes, para avisarem o pessoal, que o pequeno-almoço seria às cinco, e a saída antes das seis, sem ração, o que era uma boa notícia.


A propósito de Brecht

Quando cheguei ao quarto deparei com o seguinte cenário: o Lopes sentado na berma da cama, ao fundo, onde havia uma penumbra permanente; o Jorge, em chinelos, completamente à pai-Adão, circulava com a mão esquerda a afagar os testículos, enquanto com a direita segurava um livro e falava em jeitos declamatórios. Eram os dois furriéis artilheiros que com o alferes Mendes, prestavam dedicação aos obuses. À sessão cultural também assistia o Abreu.
Transpus o umbral da porta, e o Jorge chamou-me a atenção para o poema que reiniciaria a ler. E era assim:

Caio a dormir de cansado
Quando a fome aperta.
Ouço-os gritar-me aos ouvidos:
"Alemanha, desperta!"

E vi muitos a marchar
Pra o Terceiro Reich - diziam.
Eu nada tinha a perder:
Fui para onde os outros iam.

E, quando eu marchava, marchava
O Pança-Gorda a meu lado.
Grito eu: "Pão e trabalho!"
"Trabalho e pão!" é o seu brado.

O chefe tem botas altas,
Eu cá vou de pés molhados.
E ambos os dois marchamos
No mesmo passo "irmanados".

Quero eu ir para a esquerda,
Bradam: "Direita volver!"
E deixei-me comandar,
Seguia cego, sem ver.

Para qualquer terceiro Reich
Os famintos lá marchavam;
A seu lado os bem-comidos,
Todos marchavam, marchavam.

E um revolver me deram.
Ordem: "Fogo ao inimigo!"
E o que era amigo deles
Era irmão meu, meu amigo.

Sei hoje que é meu irmão
E o que nos une é a fome;
E aquele com quem eu marcho
"Inimigo" é o seu nome.

E o meu irmão morre agora,
Eu mesmo lhe dei um tiro,
E ao vencê-lo sei bem
Que sobre mim mesmo atiro.


- Porreiro, refere mesmo os nossos sentimentos, não achas?

- Acho, respondi.

- É a mesma merda em todo o lado. Convencem-nos que é o dever, mas não passamos de peões ao serviço de poderosos, acrescentou ele.

- Pois eu também me sinto lixado, mas ainda não me deram a volta à cabeça. Eu sei que as relações humanas têm muito que evoluir no aspecto da solidariedade e do respeito.

- E eu estou-me cagando para quem me mendou para aqui, gritou o Calvo, que do outro lado da parede ouvia a conversa.

Fora a leitura de Brecht, um livro do Lopes, que suscitara a indignação. Fora um pequeno estímulo, e logo nos associámos à perplexidade do autor perante o poder. Por vezes a discussão ou a abordagem de assuntos políticos dominava as atenções. Normalmente, transmitiam estados de espírito, sem outras reflexões de carácter sistematizado ou ideológico. Aliás, ideologicamente andávamos muito longe dos conhecimentos teóricos, e pouco sabíamos acerca de ideologias políticas. Mas não ficávamos calados, e havia um sentimento de incompreensão relativamente ao sacrifício e aos riscos a que estávamos sujeitos.

O Aquino então declamava:

Lágrima,
Sorriso,
Cair.


A isto acrescentei numa alusão aos diferentes escalões de poder:

Com a mão apanhar,
No bolso meter,
Pra mais depressa encher.

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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 8 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5614: História da CCAÇ 2679 (32): Reflexões sobre Tabassi e o mau relacionamento com o Trapinhos (José Manuel M. Dinis)

Guiné 63/74 - P5817: Notas de leitura (66): Armor Pires Mota (8): A Cubana Que Dançava Flamenco - O amor é mais forte do que a guerra (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Fevereiro de 2010:

Queridos amigos,
Despeço-me nostalgicamente dos livros do Armor Pires Mota que me proporcionaram tão gratificante companhia.
Ele fica com a obrigação de escrever mais, confio que não nos irá desapontar.

Acabei agora um livro do Álvaro Guerra, que o Armor fez o favor de me emprestar. Tem parágrafos extraordinários, convém não esquecer que havia a censura e que estávamos no fim dos anos 60.
Por favor, leiam o Álvaro Guerra, também nosso camarada da Guiné.

Um abraço do
Mário


Armor Pires Mota (8)

A Cubana que dançava flamenco: O amor é mais forte do que a guerra


Beja Santos

Silas Macário é prisioneiro de guerra, na área do Morés convive com guerrilheiros do PAIGC e os seus amigos cubanos. No meio deste calvário, Usita, uma guerrilheira guineense, apaixona-se por ele, depois as contingências da guerra separa-os, Conchita, uma enfermeira cubana, descobre igualmente afecto por este estranho prisioneiro que se adaptou, resignado, a viver os sobressaltos das emboscadas e das flagelações, dos sobrevoos dos T6, a permanecer nas casamatas, a trabalhar como carregador.

E um dia Silas Macário e Usita deixaram a zona de Satambato, Usita está grávida de Silas, trata-se de uma fuga discreta, Mamadu Indjai, o marido de Usita saíra em missão. Percorrem longas distâncias através do capim alto, seguem com o macaco Mussá. Passam por acampamentos do PAIGC, parece que ninguém desconfia. Tomam uma canoa e descem o rio, há mesmo que lutar com um crocodilo mais ousado, que até devora um braço de um jovem guerrilheiro do PAIGC que os acompanha. E assim, imprevistamente, por vontade de Usita, Silas Macário é restituído à liberdade, vai até ao Copilão, como animal devora comida, mostra-se brigão, é apanhado pela Polícia Militar. É aqui que Armor Pires Mota escreve algumas das páginas mais notáveis do seu livro “A Cubana que dançava flamenco”. Aos tropeções de um sonho, avança em direcção ao Pidjiquiti, fita um par de namorados, o que ele estava necessitado era de que o ouvissem, queria soltar a língua e com ela as amarras da angústia. Apeteceu-lhe escrever à mãe e à noiva, mas aquela região de Bissau exerce sobre ele um profundo fascínio: “Silas Macário tentou ver-se ao espelho da água do Rio Grande. O sol descambava por cima de largas rosáceas de nuvens finas e frágeis. Alguns peixes com as barbatanas quebravam-lhe o rosto e sujavam-no com as ondas. Também ele já não tinha de si uma imagem nítida e segura, bem construída. Pousou ainda o olhar, transportando-o por momentos, nas asas dos jagudis que tinham honras de bons e prestáveis servidores de limpeza no código da cidade e no Forte de S. José da Amura, com os seus quatro bastiões, ideia ali plantada pelo Marquês de Pombal. Foi então que se lembrou daquele diálogo que travara com o negro.

Era um garoto que saltava no cais, de um lado para o outro, sobretudo junto dos oficiais. Como se fosse uma espécie de espião.

– Que queres ser, quando fores grande? – questionou.

– Terrorista.

A resposta deixou-o varado, por inesperada. No entanto, não deixou de lhe afagar a carapinha, ainda que com relutância esmorecida:

– Ah, meu grande sacana! Isto é lá vida para um rapaz, um homem!

– Manga di ronco – disse ainda o miúdo.

Começou por assobiar baixo e sabia, então, passados dois anos, que os guerrilheiros enterravam, por vezes, os seus mortos a cantar. Faziam daquela guerra uma espécie de religião que, aliás, levavam a sério, e ele que o dissesse com duas cicatrizes, uma na face direita e outra na coxa, do lado de dentro, e teve sorte em a bala não subir ao bico do coração”. Silas prossegue a sua viagem fantástica, encontra um pescador que pesca sol, julga que está a ser emboscado, depois vai à procura de Susana, a mulher do capitão, professora de literatura e sonhos, pede-lhe para ser uma criança nos seus braços, conta-lhe que encontrou Usita, a guerrilheira que queria um filho de um branco. Silas permanece infatigável, escreve aos repelões aerogramas, um para a mãe, outro para a noiva. Depois foi telefonar para a mãe: “Uma voz entrecortada de soluços, muitos soluços. Reconhecia-a. A palavra filho veio à tona, milhentas vezes. Como se fosse necessário desenterrá-la do fundo de um naufrágio, dos destroços que era eu. Era minha que não se continha. De contentamento. Sobretudo espanto. Mas é possível?, questionava. Como é possível, rematava, aqui e ali. Aos soluços havia de acrescentar um rio de lágrimas. Tão grande corrente que naufragavam as palavras ou eram cortadas com fragor nalguma passagem mais dura e cruel”. A mãe tinha razões para duvidar, o filho fora dado como morto, tinha sepultura no cemitério da aldeia. E voltou a escrever à mãe dizendo que foi o alferes mais feliz de toda a guerra.
Silas Macário foi chamado ao quartel-general, afinal ele era um fenómeno, um alferes ressuscitado, até a PIDE desconfiava, submeteu a duro interrogatório, os nomes e os dados batiam certo.

Dá-se o derradeiro encontro com Usita, estão aqui as páginas mais sublimes da obra, trespassadas pela mensagem fundamental do autor: a paz é sempre possível, está acima dos queixumes e dos ajustes, sobretudo desta paz em que a guerrilheira era uma terra fecundada por um branco de Lisboa.

Silas vai partir eufórico, porque o futuro é sempre diferente. Não interessa saber o que depois se passou quando um barco atracou à Rocha do Conde de Óbidos e ele voltou para uma povoação lá no centro do país. O filho nasceu livre, agora havia que o saber colher, rememorar tudo o que se passara lá bem longe, naquelas regiões do Morés, de Bissorã, Mansabá e Mansoa.

Armor Pires Mota deixa definitivamente esclarecido que é um grande escritor, esculpe e desenha dentro da melhor tradição literária, acrescenta-lhe imagens muito pessoais daquela guerra da Guiné, tudo se salda numa grande mensagem de esperança, temperada por uma fé e um humanismo cristãos que ele não ilude nem deixa ao acaso.
Resta esperar ainda mais dele, qualquer dia o blogue vai comparecer na cerimónia do lançamento da nova edição da “Estranha Noiva de Guerra”.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 13 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5811: Notas de leitura (65): Armor Pires Mota (7): A Cubana Que Dançava Flamenco - A consagração de um grande escritor (Beja Santos)

Guiné 63/74 - P5816: Memórias de outros tempos (4): As minhas passagens pelo Quartel General de Bissau (Jorge Teixeira/Portojo)

1. Em Mensagem do dia 8 de Fevereiro de 2010, o nosso camarada Jorge Teixeira (Portojo)* (ex-Fur Mil do Pelotão de Canhões S/R 2054, Catió, 1968/70), enviou-nos esta sua Memória:


Memórias

Em tempos, o Branquinho escreveu sobre o acolhimento que era dado, na Messe de Oficiais do Q.G., aos Alferes do Mato que por qualquer motivo iam a Bissau, pelos Alferes que estavam de serviço ao ar condicionado. Na altura era para deixar um comentário, mas achei que dava para poste e por duas razões.

Se for o caso, aqui vai.

Por duas vezes, fui acolhido em estadia mais prolongada, no Q.G. Logicamente que a minha messe era a dos Sargentos. Sinceramente, não notei o mesmo tipo de acolhimento que aconteceu ao Branquinho lá na dos oficiais. Claro que havia piadas, mas mais do género de passar um tempo em conversa e nunca de exclusão ou superioridade. Conheci malta do ar condiccionado, entre eles rapazes do hóquei, por exemplo o Salema e o Ramalhete mais novo (o mais velho foi meu colega de curso em Vendas Novas) que me acompanharam muitas vezes por Bissau by night.

Consegui regressar à Metrópole com 3 (três) Guias de Marcha.

Fim do comissão, aguardava em Bissau o representante do pelotão que nos vinha render - diga-se de passagem, um óptimo rapaz, pois acreditou em tudo que lhe entreguei para assinar e de cruz o fez, e não o aldrabei - e também fazer aqueles espólios todos.

Estive adido para efeitos de apresentação e serviços (que nunca fiz nenhum) aos Adidos. Para efeitos de alimentação e dormida estive no Q.G. Pois bem, duas das Guias de Marcha foram-me conseguidas por furriéis milicianos, por rendição individual. Uma dos Adidos e a outra do Q.G. É certo que apresentei as folhinhas, num lado e noutro, com as 12 ou 14 assinaturas que eram precisas para nos libertar. Não me perguntem mais pormenores, porque não lembro. A terceira Guia de Marcha, foi-me conseguida pelo Alferes Luís Xarez, meu Comandante de pelotão, incluída na geral do pelotão.

Acrescento ainda que a do Q.G. foi-me entregue em mão na caserna, estava eu a vestir-me para jantar, poucas horas antes de entrar no Niassa, por um Furriel Mil.creio que era da 4ª REP, a do pessoal.

Em tempos escrevi que um dos temas para lembrarmos aqui, poderia ser a música ou as canções que nos marcaram durante a comissão.
Então, o meu aderir ao Fado começou verdadeiramente numas conversas e explicações com a viola de um Furriel na messe de Sargentos. Que estava em comissão no ar condicionado de Bissau. E quem me levou ao Barco foi um outro furriel, outro fadista, o Freire, que pediu um jipe emprestado para me carregar as malas.

Este escrito não é para comparar classes militares. E muito menos entre milicianos. Mas talvez a dos furriéis fossem mais terra a terra, mais unidos.

Um abraço para a Tabanca
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Nota de CV:

8 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5790: Memórias de outros tempos (3): Porque rapei o meu bigode (Jorge Teixeira/Portojo)

Guiné 63/74 - P5815: O 6.º aniversário do nosso Blogue (2): Homenagem ao Fundador Luís Graça e a toda a tertúlia (Joaquim Mexia Alves)


1. O nosso Camarada Joaquim Mexia Alves, ex-Alf Mil Op Esp/RANGER da CART 3492 (Xitole/Ponte dos Fulas), Pel Caç Nat 52 (Ponte Rio Udunduma, Mato Cão) e CCAÇ 15 (Mansoa), 1971/73, enviou-nos a seguinte mensagem, com data de 13 de Fevereiro de 2010:

Sábado à tarde!

Feliz, (pois então, sou vivo), estou em casa a gozar um pouco de quietude e paz de espírito.

Sente-se a família!

A mulher está a descansar um pouco, (coitada trabalha que nem uma moura para manter esta casa nos padrões que exige de si própria), os filhos mais novos, (que os mais velhos já têm casa própria e um até já me deu dois netos), utilizam o “brinquedo” dos tempos modernos, o computador, e vão dando largas á imaginação, imaginado-se “rambos” em jogos de guerra, lutadores numa arena imaginada pelos EUA, ou muito simplesmente falando e namoriscando à distância de uns “bites”, (dir-se-á assim?), absortos nos seus problemas que nem descortinam, mas vão ser grandes dentro de uns anos pelo jeito que a coisa vai.

E eu estou aqui também, neste computador que nos vai ocupando o tempo livre e às vezes até aquele que não é “livre”, mas que por força de uma “força” que não resistimos, nos leva a estar com “ele”.

Claro que havia eu de fazer, senão abrir o sítio da Guiné?

Deparo-me com a notícia, informação, de que a Tabanca Grande completará 6 anos no próximo dia 23 de Abril!

Fala-nos o Carlos Vinhal e o Jorge Félix da efeméride e aproveitam para muito justamente elogiarem o Luís Graça.

E eu junto-me a eles e faço o mesmo, ou seja, agradeço ao Luís Graça e agradeço o Luís Graça, por nos ter dado este espaço onde falamos com o coração nas mãos, a arma em riste, (mas como se estivesse em bandoleira), onde nos vamos libertando do “império dos tempos” e da “lei da morte”, e vamos tentando encontrar a vida, nas “mortes” que já vivemos.

É que, meus camarigos, calculo o que muitos de vós sofreram, porque eu, graças a Deus, sofri tão pouco!

E se o que eu sofri foi tão pouco, e mesmo assim doeu tanto, calculo meus camarigos o que ainda vos dói agora, porque ainda sinto dor!

E esta Tabanca Grande, que o Luís Graça construiu, com os adobes das memórias, com os “cibos” das dores sofridas, com os “bidons” de sangues derramados e sofridos, com os tectos de lembranças finalmente libertas, com os alicerces do dever cumprido e comprido, com as portas abertas a cada pensamento e vivência por mais diferentes que sejam, é a prova mais provada que hoje é dia de festa, de beber um copo ou dois, (coisa que eu já fiz), para dizer ao Luís, que lhe agradecemos o espaço, mas mais do que isso o convívio que nos liberta e ajuda, a conhecermos o que já fomos, aquilo que ainda somos, para que possamos ser, (mau grado alguns de agora o não quererem), os homens que então disseram: Talvez nem saiba bem porquê, mas estou aqui, com dúvidas ou com certezas, mas dando-me inteiramente por aqueles que comigo estão! Para que apesar de tudo, os nosso filhos e netos, saibam bem quem nós fomos e aquilo que ainda somos, e que não nos envergonhamos daquilo que então fizemos!

Para afirmarmos também, que se nós não nos envergonhamos, deixamos essa vergonha, ao Estado que deixa sem dignidade, aqueles que por ele lutaram.

Mas, meus caros camarigos, o meu coração é grande e nele cabem todos vós, por isso para além do Luís Graça, permitam-me que nele arranje um espaço, muito particular e dedicado, àqueles que todos os dias, me suportam, vos suportam, com escritos e mais escritos, que todos e cada um, querem ver dados á estampa no momento em que os escrevemos, porque é esse momento que importa!

Por isso, no copo que já bebi, e naquele que vou beber, junto ao Luís Graça a quem brindo, o Carlos Vinhal, o Virgínio Briote e o Eduardo Magalhães Ribeiro, porque todos são “culpados” da paz que agora vivo com a guerra da Guiné.

E junto-vos a todos vós, camarigos do meu peito, que juntos fizemos história, que agora vamos escrevendo, em cada dia, em cada hora.

Monte Real > Ortiga> Convívio da Tabanca Grande de 2009

Um abraço muito forte e camarigo para todos,
Joaquim Mexia Alves
Alf Mil Op Esp/RANGER da CART 3492

Fotos: © Casimiro Carvalho (2010). Direitos reservados.
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Notas de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

Guiné 63/74 – P5814: Estórias de Guileje (7): O percurso da CCAV 8350 (Manuel Reis, ex-Alf Mil At Inf da CCAV 8350)


1. O nosso Camarada Manuel Reis (*), ex-Alf Mil At Inf da CCAV 8350, (Guileje, 1972/74), enviou-nos a seguinte mensagem, com data de 9 de Fevereiro de 2010:

Camaradas,

Este texto é a descrição, em linhas gerais, do percurso da C.CAV 8350, Piratas de Guileje. É omissa a parte referente a Guileje e Gadamael, por todos já deveras conhecida.

Narrativa de alguns acontecimentos que marcaram o percurso da C. CAV. 8350.

Aos meus furriéis e soldados que nunca esquecerei

Nos meados do mês de Julho, cuja data não consigo precisar, a Companhia foi enviada para Cacine para aguardar embarque numa L. D. G. com destino a Bissau. Para trás, ficara Guileje e Gadamael. Connosco vão, para sempre, as marcas desses dias atribulados.

A estadia de dois ou três dias em Cacine foi maravilhosa. Com a compreensão e amabilidade da maioria dos camaradas da Companhia aí sediada, pode-se descomprimir um pouco.

Para o Juvenal Candeias e Catarino (a quem desejo uma rápido restabelecimento) e extensivo a toda a Companhia fica o meu sincero agradecimento por tudo o que nos propiciaram, num momento tão difícil.

Ao cair da tarde, sentado junto de uma das frondosas árvores e com o olhar perdido nas águas tranquilas e cálidas do rio Cacine, o meu pensamento voava para Coimbra, terra que me perfilhou e me fez homem.

Eram momentos únicos, em que tentava libertar a mente de um pesadelo, que ainda hoje subsiste.

Aqui as noites eram passadas num salutar convívio, em que a partilha de opiniões nos convidava a entrar pela noite dentro. Os temas abordados eram, inevitavelmente, o aproximar do fim da guerra. Tivemos a oportunidade de conhecer alguns pormenores da invasão à Guiné-Connakry e algumas das causas do seu fracasso. Foram dos momentos mais agradáveis que vivi no teatro de operações da Guiné.

Ao entrar para a L.D.G. deparo com o Comandante, meu conterrâneo, meu amigo, meu companheiro nos tempos estudantis de Coimbra. Luís Pato é o seu nome, esse mesmo, do bom vinho bairradino… Nada mau para começar, pensei…

Colocados no Cumeré fomos submetidos a instrução de reabilitação, orientada pelos Oficiais da Companhia de Comandos. Aqui valeu-nos o bom senso do Alferes, Comandante da Companhia, em substituição do Capitão, evacuado para a Metrópole. Após nos ouvir sobre o estado físico e anímico do que restava de uma Companhia, alterou o plano de instrução de modo a que este se adaptasse à situação física e psíquica dos militares da C.CAV 8350.

Todos os dias éramos bombardeados sobre possíveis hipóteses de colocação, que as Chefias Militares destinavam para a Companhia, que ia desde a colocação no local mais próximo de Guileje, considerando uma possível preocupação, até ao desmembramento total da mesma. Esta hipótese não vingou, dizia-se ser perigosa, pelo efeito contagiante que poderia exercer sobre os camaradas de outras companhias. Isto era o que se dizia, desconheço o seu fundo de verdade.

Após o mês de instrução são revelados os resultados dos exames médicos complementados com análises laboratoriais ao sangue, fezes e urina e são conclusivos: 87,5% dos camaradas são declarados inoperacionais. O registo é mental e pode não ser rigoroso. No entanto, tenho-o como tal.

As Chefias são obrigadas a alterar, temporariamente, os planos que projectavam para a C.CAV. 8350.

À Companhia é atribuído o sector de Quinhamel, zona onde a guerra não se fazia sentir. Como este sector ainda se encontrava ocupado por uma Companhia em rotação, fomos colocados num barracão rodeado por charchos. Julgo chamar-se Bisquita, o local da localização do barracão, onde não era possível dormir durante a noite, devido à imensidão dos mosquitos que penetravam, com relativa facilidade, através dos mosquiteiros. Andava-se de noite e dormia-se de dia.

Bem, assim ainda nos coçávamos, caso contrário não fazíamos mesmo nada!…

Em Bisquita ocorreu uma situação que não devo omitir pelo respeito e consideração que sempre me mereceram os meus soldados e furriéis. Este acontecimento mostra, ainda, até onde ia o espírito de união do grupo que, ao contrário do que constava em toda a Guiné, era sólido. Tinha sido forjado no sofrimento imposto pela guerra e moldado pelo desprezo a que fomos lançados. Soubemos resistir.

O acontecimento roça a banalidade, mas a atitude destes homens ultrapassa esses limites, é dignificante.

Todos sentíamos necessidade de nos ausentar daquele cenário de guerra, as chagas estavam vivas, mas os míseros pesos que os soldados auferiam, eram insuficientes para se deslocarem até à Metrópole e se libertarem um pouco do stress acumulado.

Seis ou sete soldados, do meu grupo, conseguiram que os familiares lhes angariassem a quantia necessária para a viagem e o dinheiro foi enviado, via postal, para o S.P.M. 2728 (o código postal). As sucessivas alterações de colocação da Companhia terão contribuído para que o dinheiro não aparecesse.

Era necessário confirmar a viagem e não havia dinheiro para o fazer. Sentia-me impotente por um lado e revoltado por outro. A situação parecia inultrapassável e ainda, por cima, eu também vinha de licença, nesse mesmo voo, o que me impedia de libertar as minhas economias.

Após falar com os meus furriéis, no dia de pagamento, descrevi ao grupo a situação, que alguns camaradas estavam a viver, já conhecido da maioria, e sugeri-lhes que emprestassem uma determinada quantia, que eu ficaria responsável pelo empréstimo de cada um.

A adesão foi total. Todos se mostraram disponíveis, com excepção de um soldado, que passadas umas horas veio ao meu encontro manifestar o seu desejo de também colaborar. As férias daqueles camaradas, na Metrópole, só eram possíveis com a colaboração de todos.

A maior ajuda, em termos monetários veio dos furriéis, que sem eles, a ideia não poderia avançar. A sua colaboração foi determinante.

A história termina com a chegada dos vales postais no próprio dia da viagem o que permitiu regularizar a situação antes da partida para férias.


Passados os três meses de permanência em Quinhamel fomos colocados em Cumbijã, onde se encontrava o nosso amigo e Capitão, Vasco da Gama, com a sua Companhia. Fomos acolhidos cordialmente e a ele e à sua gente estamos gratos, para sempre.

Nunca cheguei a saber qual a missão que nos estava destinada em Cumbijã e Colibuia. Recordo-me das operações, tipo bombeiro, a apagar fogos aqui e ali. Reordenamento de Colibuia, protecção à construção da estrada Aldeia Formosa-Buba nas imediações de Nhala, elaboração de 53 processos relativos a mortos e feridos em Guileje e Gadamael, para além dos patrulhamentos de rotina.

Deixo uma palavra de gratidão ao Capitão Reis, Comandante da C.Cav. 8350, em nome dos camaradas feridos em combate e dos familiares dos mortos. Sem a sua determinação e perspicácia, dificilmente conseguiam a pensão que, por direito, lhes assistia.

Aqui, em Cumbijã, terras do Vasco da Gama, nos vai encontrar o 25 de Abril.

A guerra, que vitimara tantos camaradas, transforma-se em PAZ.

As vivências eram outras. O inimigo deixara de o ser. Havia que preparar a entrega do aquartelamento de Cumbijã.

Foi um período complicado, pelo envolvimento a que me obrigava, para que nada sucedesse de anormal e que pudesse manchar todo o processo.

Foram os encontros no mato, desarmados, com os grupos de guerrilha do PAIGC, foram as reuniões de carácter político com os Comissários do PAIGC., foi o desarmamento dos nossos Milícias, sendo esta a situação muito dolorosa.

O aquartelamento de Cumbijã foi entregue no dia 19 de Agosto de 1974, ao PAIGC, com toda a dignidade, na presença do Comandante de Companhia, Capitão Santos Vieira.

Falei no trajecto da C.CAV. 8350 e relatei alguns episódios. Outros episódios, vividos neste trajecto, esperarão a sua vez.

Um grande abraço para todos os camaradas.
Manuel Reis
Alf Mil At Inf da CCAV 8350

Fotos: © Casimiro Carvalho (2010). Direitos reservados.
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Notas de M.R.:

Guiné 63/74 - P5813: Parabéns a você (79): Clara Schwarz da Silva, 95 anos, uma grande senhora, viúva de Artur Augusto da Silva, mãe do nosso amigo Pepito, leitora do nosso blogue, novo membro da Tabanca Grande (Luís Graça)


Lisboa > c. 1947 > Subindo o Chiado, Artur Augusto da Silva e Clara Schwarz... (Em 1949, o casal partiria para a Guiné, onde o Artur foi, até 1966, advogado, notário e até substituto do Delegado do Procurador da República; licenciado em direito, esteve de 1939 a 1941 em Angola, como secretário do Governador Geral; de regresso a Portugal exerceu advocacia em Lisboa, Alcobaça e Porto de Mós)... Esta é uma das fotos do álbum de família, já aqui reproduzida, no nosso blogue, um gesto que tanto a sensibilizou a Clara...

1. Texto do editor L.G.:

Acabei de falar, há umas horas atrás, com o meu e nosso amigo Pepito que veio, de propósito de Bissau para estar na festa dos 95 anos da sua querida mãe. Já sabia, com antecedência, da surpresa que ele queria fazer a essa Grande Senhora, que eu, a Alice, o João e a Joana tratamos simplesmente como Clara. É um privilégio ser seu amigo e frequentar a sua casa. É uma honra também ser amigo do seu filho, Carlos Schwarz, mais conhecido pr Pepito. (O Carlos tem mais dois irmãos, Henrique e João Schwarz).

A Clara Schwarz (Silva por casamento com o advogado e escritor Artur Augusto da Silva, 1912-1983) faz hoje 95 anos. Mas não uns 95 anos quaisquer. É uma vida plenamente vivida. É uma mulher independente e cosmopolita. São 95 anos de uma pessoa ainda muito autónomma, que usa com desenvoltura o telefone, o Skype, o mail, a Internet, o blogue… Até há pouco ainda conduzia. Tem uma memória prodigiosa, é culta, é poliglota, e tem um enorme orgulho de seu pai, engenheiro de minas, de origem polaca, judeu, conceituado estudioso do judaísmo em Portugal, arqueólogo, historiador, autor da descoberta e da revelação pública, em 1925, da comunidade cripto-judaica de Belmonte, e que era fluente nove línguas (de seu nome, Samuel Schwarz, 180-1953).

Qual a relação que ela tem connosco, para além da circunstância de ser mãe de um homem a quem a Guiné e os guineenses devem muito ? Se outras não fossem válidas, bastaria invocar aqui o seu papel como co-fundadora do Liceu Honório Barreto, hoje Liceu Nacional Kwame N' Krumah. Mais: foi professora de português (se não me engano), e por ela passaram os melhores filhos da Guiné, a começar pelos principais dirigentes do PAIGC... (É capaz de os citar de cor, e avaliar um a um!)...

Pois a Clara faz hoje anos, no Dia dos Namorados. Fala com muita ternura do seu marido, Artur, como um homem que "conhecia e amava a África" como poucos... O ano passado ofereceu-me um brochura dele, Pequena Viagem Através de África que um dia destes vou aqui reproduzir, com a devida licença da família: é uma conferência que ele pronunciou na Associação Comercial da Guiné, em 1963, no 46º aniversário da sua fundação. É uma admirável lição de sapiência e de sabedoria, que merece ser conhecida por um público mais vasto, incluindo os nossos amigos e camaradas da Guiné...

Três anos depois, em 1966, a PIDE prendia-o no aeroporto de Lisboa. O seu único crime era o de ser defensor de presos políticos... Libertado graças à intervenção pessoal de Marcelo Caetano, seu professor de direito, após cinco meses de Caxias, sem culpa formada, era impedido de voltar à sua querida Guiné, agora a ferro e fogo... Clara recorda o cinismo do governador, Schultz, que era visita da casa dos Silva, e que inclusive acompanhou o Artur, até ao aeroporto, nessa triste viagem sem regresso... Só depois da independência é que Artur voltaria, a convite de Luís Cabral, para desempenhar o lugar de juiz do Supremo Tribunal de Justiça... E lá morreria, em Bissau, em 1983.

É ambém com a mesma frontalidade e coragem que a Clara vem protestar, em 2005, junto do Presidente da Câmara de Belminte pela imperdoável omissão do nome do so seu pai, Samuel, no recém-inaugurado Museu Judaico de Belmonte. Embora tarde, a injustiça foi reparada em 2007.

(...) "S. Schwarz está na origem da descoberta dos cristãos novos de Belmonte. Graças à sua enorme sabedoria ele revelou os ritos e costumes destes cristãos novos, em numerosos livros dos quais o principal, publicado em 1925, 'Os cristãos novos em Portugal no Século XX' , livros esses que são uma referência incontestável tanto para historiadores portugueses como estrangeiros.



"Depois de ter adquirido a Sinagoga de Tomar, ele restaurou-a e doou-a ao Estado Português que também adquiriu a sua enorme biblioteca luso-hebraica.


"Este esquecimento é uma injustiça sem limites ao homem que foi S. Schwarz, de certa maneira uma segunda morte e também uma negação à verdade histórica.


"O Museu Judaico de Belmonte não pode existir perante esta dupla ofensa e deve oferecer à obra de S. Schwarz o lugar eminente que lhe é devido" (...) (Excertos da carta que Clara mandou ao autarca de Belmonte).


Neste dia tão especial para a família e os amigos da Clara Schwarz só queremos fazer-lhe esta homenagem singela, feita a partir da Quinta de Candoz, freguesua de Parede de Viadores, Marco de Canaveses, perto do Rio Douro, a serra de Montemuro ao fundo, um frio de rachar e uma Internet exasperadamente lenta como na Guiné... Obrigado, Clara, pelo tempo que nos dedica, obrigado pela atenção com que nos ouve, obrigado pela sua lição de vida, obrigado pelo seu amor imenso pela Guiné e pelos guineenses. E deixe-me terminar com as palavras que o Artur tanto gostava de citar, e que ele atribuía a esse sábio africano, seu amigo, o Cherno Bokar:

"Aquele que só ama os que pensam como ele, não ama os outros: ama-se a si póprio. E aquele que ama os que não pensem como ele, ama a Deus, que é pai de todos"... A Clara (e a sua família) é um exemplo dessa enorme capacidade de ouvir, reconhecer, respeitar e admirar os outros, mesmo quando os outros não são exactamente como nós, não pensam como nós... Desejo-lhe, eu e tida a Tabanca Grande, um dia magnífico, ainda para mais em Dia dos Namorados... E que o Amor nunca lhe falte, o Amor dos bisnetos, netos, filhos, demais família e amigos.

PS - A nossa singela prenda de aniversário, é pô-la aqui, debaixo do poilão da nossa Tabanca Grande, a falar com todos os amigos e camaradas da Guiné, a partilhar connosco as histórias de uma vida... A Clara´, que atravessou o Séc. XX e continua a sorrir-nos e a surpreender-nos no Séc. XXI, passa ser a Mulher Grande da nossa Tabanca Grande, o novo membro, o 397º, da nossa tertúlia, (O seu nome figura, desde hoje, na nossa lista alfabética, na letra C)... E daqui a cinco anos, em 2015, vamos apagar-lhe a vela do centenário!... Combinado ?