terça-feira, 27 de julho de 2010

Guiné 63/74 – P6792: Histórias de José Marques Ferreira (18): Recordações


1. O nosso Camarada José Marques Ferreira, ex-Sold Apontador de Armas Pesadas da CCAÇ 462, Ingoré - 1963/65 -, enviou-nos em 26 de Julho de 2010, a seguinte mensagem:

Camaradas,

Com as minhas desculpas por tão prolongada ausência, quero transmitir a todos que ainda tenho alguma coisa que contar, como este pequeno texto sobre a foto que junto e me avivou algumas recordações guineenses.

É, como habitualmente, uma história simples fruto de algumas recordações, que ainda se mantêm nas minhas vivências de um tempo ido, que, felizmente, não volta.

Recordações
Quando se olha para esta foto, com mais de quarenta anos de existência (são pouco menos que aqueles que ainda tenho!), parece que estes três “malucos” estariam, de certa forma, fora de si e aos murros uns nos outros.

Também parece que a fotografia mostra que o terceiro elemento estaria em atitude de apaziguamento.

Mas não é nada disso.

São três militares, na localidade de Ingoré que, ao que consta, hoje é um centro que evoluiu bastante, e considerado importante no comércio e turismo fronteiriço com o Senegal.

Desses três homens (um deles sou eu mesmo) e os outros são da cidade do Porto.

O mais magrinho (um autêntico “trinca-espinhas”) de seu nome completo Alfredo Mateus Freitas Martins, chegou à Guiné alguns meses depois dos restantes. Era escriturário, mas como a companhia não tinha levado nenhum, foi este que nos calhou.

O outro chegou a ser funcionário do extinto Banco Borges & Irmão, cujo nome completo é António Marcel Nunes Rema.

A imagem refere-se, certamente, a um dos intervalos em que a «guerra estava parada para descanso» e havia lugar para agradáveis momentos de cavaqueira e divertimento.

Do António Rema, que chegou a acumular funções com as de gerente do bar (que não existia), mas que nós construímos e colocamos a funcionar, tinha uma namorada que lhe chegou a enviar uma montagem fotográfica, ou então tirada mesmo de lado da ponte de D. Luís, lembrando-me eu ainda que a fotografia estava efectivamente uma maravilha... A PRETO E BRANCO (porque não havia outra maneira de a “pintar”, na altura).
O que retenho em memória é que parece que a tal dita namorada, com a ausência do António Rema, não terá esperado mais tempo por ele e deu de «frosques», isto é, debandou e deixou o meu amigo num tormento inimaginável de sentimentos de desgosto e angústia.

O rapaz andou muito tempo em baixo... deprimido!

O Alfredo chegou a fazer parte dos redactores do «Jornal da Caserna», assim como o Rema, e como era habitual nos jornais, também nós seguíamos as normas de, no cabeçalho, colocar o nome do Director (que era ele), mas com o pseudónimo de Hércules (por ser muito magrinho, como se diz na minha terra: «um pau de virar tripas»).

Eu era o Editor e, nessa qualidade, só servia para «enterrar» a todos e por isso o pseudónimo foi o de Zé Cangalheiro.

Havia ainda um tesoureiro (só de nome), porque aquilo não funcionava, como agora, com financiamentos ou receitas de assinaturas e publicidade, que não fossem apenas o “lucro” do tempo que aplicávamos na elaboração de cada número e, também, o “ganho” das inúmeras horas que nos mantinha, utilmente, ocupados.

Esse tesoureiro - José de Sousa Piloto -, era um habilidoso em desenho livre e foi o autor do primeiro emblema que foi usado e distinguia a CCaç 462. O seu pseudónimo era o «Massinhas».

Recordo ainda que, um dia, o comandante de Batalhão Caçadores 507, Tenente Coronel Hélio Felgas, quando nos visitou naquela localidade, achou muita piada aos pseudónimos e fez uma observação, procurando saber quem era o «Massinhas», ou se tinha muito prejuízo, ou coisa do género...

Memórias... quase afagadas!

Um abraço para todos,
J. M. Ferreira
Sold Ap Armas Pes da CCAÇ 462
____________
Nota de M.R.:
(*) Vd. último poste da série em:

segunda-feira, 26 de julho de 2010

Guiné 63/74 - P6791: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (2): Tina Kramer, etnóloga, Universidade de Frankfurt, em trabalho de campo, em Lisboa





Excerto de um ficheiro em formato pdf donde consta o nome de Tina Kramer, autora de uma comunicação ou sessão, no dia 29 de Abril de 2010, sob o título (em alemão) "Guiledje – vom Militärstützpunkt zum Austauschforum der Erinnerung in Guinea-Bissau" (o que traduzido para português, quer dizer mais ou menos, "Guileje, de aquartelamento militar a fórum de troca e partilha de memórias na Guiné-Bissau")... Seminário de verão 2010, Colóquio sobre África, organizado pelo Instituto de Etnologia (até 2008, Etnologia Histórica) da Universidade de Frankfurt, sob a direcção do Prof Mamadou Diawara.  O colóquio prolongou-se até meados de Julho.

1. Sigo a sugestão do nosso co-editor Carlos Vinhal:

Luís, era engraçado publicares este comentário tal como chegou, sem as devidas correcções de português. Ab. CV.

2. Comentário, com data de hoje,  de Tina Kramer, jovem investigadora alemã, ao post P6774 (*):

Olá à todos,


primeiro obrigadinha ao Luís para editar o meu pedido e aos todos quantos já me ofereceram ajuda.


Depois eu estou muito surpresa sobre os numerosos comentários que o meu pequeno texto causou. Eu peco desculpe se eu desconsiderei as regras do blogue. Só quis descrever um pouco o meu trabalho e explicar o meu interesse para falar com alguns camaradas. Na tradução alemão a designação „doutoranda" só quer dizer que sou uma aluna de um programa/projecto cientista na universidade.


Além disso, não tinha a certeza se eu posso tatar todos por tu, porque eu não assistiu na Guerra e mesma sou mais jovem do que os camaradas. Na minha região não é permitido para uma pessoa tutear uma outra pessoa mais velha quando não se conhecerem, e a minha professora de português não acaba indicar a importância desta regra na sociedade portuguesa. São as regras de cortesia e de respeito que são discutível, e felizmente há línguas naquelas esta diferencia entre "tu" e "você" não existe.


Então, se eu ofendi alguem, não era a minha intenção, e se eu também puder tratar todos por tu, naturalmente seria contente.


Um abraço
Tina Kramer

3. Segundo consegui apurar, das minhas navegações na Net, a Tina Kramer (27 anos) é investigadora, Doktorandin (em alemão), Ph. D. student (em inglês), doutoranda (em português) no Instituto de Etnologia da  Universidade Goethe de Frankurt. Alguns factos e números sobre esta prestigada universidade alemã, criada em 1914, e que tem 37 mil alunos, um orçamento superior a 300 milhões de euros, 550 docentes, 2665 investigadores, 16 faculdades (desde o direito às ciências médicas), cerca de 170 cursos de ensino superior (I, II e III ciclos).

http://www.uni-frankfurt.de/english/about/facts/index.html (em inglês)

Facts and Figures

Annual Budget
General Budget 2009: € 317 million
Third-Party Funding : € 120,2 million
(Within the next 10 years € 60 million in construction funds will be spent to upgrade the university)

Number of Students (Winter 2009)
Overall Number of Students: 37.000
International Students: 4.100

Number of Staff
Full and Associate Professors: 550
Research Staff: 2.665
Administration: 2.025

Academic Departments
01 Law
02 Economics and Business Administration
03 Social Sciences
04 Educational Sciences
05 Psychology and Sports Sciences
06 Protestant Theology
07 Roman Catholic Theology
08 Philosophy and History
09 Linguistics, Cultural and Civilization Studies, Art Studies
10 Modern Languages
11Geosciences and Geography
12 Computer Science and Mathematics
13 Physics
14 Biochemistry, Chemistry and Pharmacy
15 Life Science
16 Medical Science

Number of Degree Programs
Around 170

4. Comentário de L.G. ao poste P6774 (*):

Em face da "onda de comentários" suscitados pelo pedido de ajuda da Tina Kramer, e uma vez que ela vai sentar-se connosco à sombra do poilão da Tabanca Grande, durante uns mesitos, eu sugiro que:

(a) ela se submeta às regras do nosso blogue e faça o seu pedido de adesão à Tabanca Grande;

(b) nos mande um foto actual, tipo passe, em suporte digital, pois claro, que é para a gente ficar a conhecer a sua carinha larocas, de menina e moça;

(c) nos diga, com mais detalhes, quem é, donde vem, o que faz na vida, ao que vem, re-béu-béu, pardais ao ninho;

(d) passemos a tratar a Tina como "camariga", ou seja, por tu e ela faz o mesmo (se os "kotas" ou os "manos velhos" não se opuserem)...

Recorde-se que na Guiné, no nosso tempo, era tudo corrido a "tu", desde o jubi à bajuda, do Homem Grande ao Régulo... Os guineenses tratavam-nos da mesma maneira: do médico ao capitão, do furriel ao alferes era tudo corrido a "tu"... Até o Caco Baldé (o Spínola) era  tratado por tu pelos "guinéus"... Sociedade mais horizontal não podia haver do que essa estranha Guiné, crioula, que conhecemos...

Não, não era o "tu" do ocupante militar! Não era o "tu" do colonialismo, da relação dominador/dominado, ou do antigo esclavagismo senhor/escrvo...Era a nossa maneira, muito própria, de lidar com o "outro"... Era também, e sobretudo, imposto pela economia linguística do crioulo, essa espantosa criação de africanos e portugueses que queriam comunicar uns com os outros...
_________

Nota de L.G.:
(*) Vd. poste de 22 de Julho de 2010  >  Guiné 63/74 - P6774: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (1): Pedido de colaboração da doutoranda alemã Tina Kramer 

(...) Chamo-me Tina Kramer, sou uma dotouranda alemã e vou ficar em Lisboa por 3 meses.

Estou a elaborar a minha tese de doutoramento [, III Ciclo do Ensino Superior,] sobre a Guerra na Guiné-Bissau e como esta está na memória do povo em Portugal e na Guiné-Bissau. Tal significa que eu quero saber quais são os conteúdos da memória, de que maneira e através de que meios as pessoas se recordam dessa guerra. Este seu blogue  já é uma fonte rica de memórias e de história.

Além disso,  quero fazer entrevistas com pessoas que tenha participado na Guerra ou, mesmo que não tenham participado, desde que tenham ligações com este tema ou com a Guiné-Bissau em geral.

Ficaria  muito contente se vocês conseguirem ter tempo para um encontro comigo.
O meu número de telefone é
917 091 484 e o meu e-mail é Tina-Kramer@gmx.de (...)

Guiné 63/74 - P6790: Notas de leitura (135): Rui Patrício: A vida conta-se inteira, de Leonor Xavier (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Julho de 2010:

Queridos amigos,
É verdade que Rui Patrício não está a fazer história, confia o seu testemunho, não tem todos os documentos à mão, é forçado a fiar-se na sua memória. Mas há enormidades que devemos evitar, a todo o custo ou então devemos renunciar ao testemunho, se ficámos incomodados com a substância dos nossos actos, quer como políticos quer como militares.
Não dá para perceber qual é a imagem que o Rui Patrício pretende dar daquilo que hoje se sabe que foram disparates e até pazadas de cal para o regime a que ele ainda hoje se mantém fiel.


Um abraço do
Mário


Rui Patrício e a Guiné

por Beja Santos

Rui Patrício foi ministro dos Negócios Estrangeiros de Marcello Caetano, já tinha experiência governativa quando chegou às Necessidades, viveu em cheio os acontecimentos diplomáticos que se prendem com a guerra de África. Resolveu agora contar a sua vida à jornalista e escritora Leonor Xavier (“Rui Patrício, a vida conta-se inteira”, por Leonor Xavier, Círculo de Leitores e Temas e Debates, 2010).

Como é óbvio, as notas que se seguem circunscrevem-se a matérias relacionadas com a Guiné.

Estava Rui Patrício como subsecretário do Fomento Ultramarino quando foi à Guiné, na Primavera em 1966. Ele escreve a visita desta
maneira:

 “A Guiné era uma província pequena, que os movimentos de libertação, a que chamávamos terroristas, cercavam e atacavam através do Senegal e da Guiné Conacri. Sempre foi a mais difícil de defender. Estive em Bissau e depois fomos a Catió, no interior. O Schultz não me acompanhou nesse dia e fui num avião de quatro lugares. Havia uma pequena pista no meio do mato e era preciso ter cuidado, especialmente perto das fronteiras. Mas nesse dia, quando eu ia voltar para Bissau, depois de uma manhã de trabalho, houve um problema com a porta do avião quando ia descolar e já estava no final da pista. Eu ia sentado ao lado do piloto, fiz-lhe um sinal, ele travou e o avião tocou com a asa no chão. Ficámos ali a tarde toda, com um calor terrível.

Noutro dia, fui também com o director-geral do Ensino a Madina do Boé”.

Rui Patrício passa a titular da pasta dos estrangeiros a 15 de Janeiro de 1970. Relata que logo no início do seu mandato houve que dar resposta aos incidentes no Senegal. Diz ele:

“A província de Casamansa, devido a conflitos tribais tinha sido sempre um factor de instabilidade para o governo do Senegal. O PAIGC, embora contasse sobretudo com o apoio da Guiné-Conacri, agia também a partir de Casamansa.

"Em reacção aos ataques que dali vinham, o Spínola, por vezes, mandava bombardear localidades situadas em Casamansa. Os Senegaleses queixavam-se aos Franceses... a nossa conduta poderia afectar grandemente as nossas relações com a França”. 

Não deixa de referir que se encontrou com o ministro dos Negócios Estrangeiros com o Senegal e que conhecia as iniciativas de Spínola para encontros com o Senghor.

Temos depois a repercussão internacional da ida a Conacri, graças à operação Mar Verde. Leonor Xavier pergunta-lhe se ele sabia que tinha havido a invasão, ao que ele responde:

“Trata-se de um assunto que ficou sempre mal esclarecido e muito controverso... Há hoje livros publicados sobre o assunto. Li neles que teria sido uma operação realizada pelos comandos portugueses chefiados pelo Alpoim Calvão”.

Leonor Xavier aborda-o frontalmente sobre as conversações de Londres, que se realizaram em Março de 1974, do lado português estava o diplomata Vilas Boas, a delegação do PAIGC era encabeçada por Vítor Saúde Maria. Fala no cessar-fogo e na independência. Rui Patrício procura esclarecer:

 “O embaixador do Reino Unido em Lisboa veio dizer que o Foreign Office se dispunha a esclarecer, com a maior discrição, um contacto com o PAIGC. A nossa orientação nunca foi a de ter conversas por via diplomática com os movimentos de libertação. Porquê? Por várias razões.

"Primeiro, porque isso seria reconhecer internacionalmente os movimentos de libertação. A via diplomática é a via de representação do Estado português no exterior, junto de organismos internacionais e de outros estados. Portanto, negociar pela via diplomática com os movimentos de libertação seria o mesmo que atribuir-lhes personalidade internacional e, assim, oficializar e legitimar todos os apoios que organismos internacionais, nomeadamente a ONU, e outros estados dessem ao PAIGC”. 

Leonor Xavier continua a insistir, dado que a resposta do antigo ministro é redonda e etérea: mas porque é que admitiu esse contacto e mandou o diplomata Villas-Boas ir encontrar-se com o PAIGC em Londres? E vem a resposta:

“Primeiro, porque foi uma missão puramente exploratória. Depois, e a verdade é esta, todas as questões doutrinárias e todas as teorias, de vez em quando, têm de mudar perante as realidades. A realidade na Guiné era extremamente complicada. A guerra tinha atingido patamares muito difíceis e, portanto, era possível que tivesse de ser encarada uma solução diferente na Guiné. Portanto, foi chamado o embaixador, com o conhecimento meu e do Conselho, sem mais ninguém saber, para um contacto exploratório em Londres. Depois voltou, mas aconteceu o 25 de Abril”.

Rui Patrício mostra-se céptico sobre a hipótese de Marcello Caetano preferir uma derrota militar na Guiné e afirma:

“Nunca ouvi dizer isso, e o facto de até admitir esse contacto com o PAIGC seria porque preferia evitar precisamente qualquer coisa que fosse uma derrota militar”.

Leonor Xavier diz na introdução que Rui Patrício mantém a mesma absoluta fidelidade ao regime que serviu e aos governos que integrou, no seu tempo de governação. Poderá ser. O que não obsta que se questione se entre a fidelidade e a integridade intelectual não deve haver consistência e se a distância entre o mando, no pretérito, e a verdade dos factos, hoje conhecidos, não deve obrigar a testemunhar com rigor e probidade. Não é admissível que o antigo ministro dos Negócios Estrangeiros venha dizer que o PAIGC cercava a província da Guiné e atacava do exterior. Especule-se quanto à implantação do PAIGC no interior do território, não havia ninguém que não soubesse que o movimento de libertação estava de pedra e cal, tinha as suas bases, o seu apoio populacional, etc.

Para quê fazer propaganda, agitando a maquinação soviética e os ataques a partir do exterior? Já não querendo questionar o que leva um membro do governo a ir com um director-geral do Ensino a Madina do Boé, fica-se estupefacto quando se lê que o Dr. Rui Patrício, ministro dos Negócios Estrangeiros, acerca do ataque a Conacri, que ele disse na televisão portuguesa ter sido uma mentira, vem agora reiterar que nada sabia quando há provas que Marcello Caetano deu luz verde ao ataque a Conacri, tal como ele se desencadeou. Uma coisa é ter desmentido na época, outra coisa é vir declarar agora que faz leituras sobre a operação chefiada por Alpoim Calvão. É caricato demais para as funções que exerceu, inaceitável que possa dizer que não é capaz de confirmar que foram os portugueses a fazer a invasão de Conacri.

Há que reconhecer que o regime de Caetano teve uma vida tumultuosa nos seus últimos meses de vida, viveu-se o descontrolo de medidas totalmente opostas às declarações oficiais. Já em 1995 Rui Patrício dera a saber que houvera conversações em Londres com o PAIGC. O regime caiu arredado nas suas contradições, abandonado pelos seus antigos apoiantes. Mas vir dizer que tinha de ser encarada uma solução diferente na Guiné sem ser capaz de enunciar os trâmites dessa solução, também não deixa hoje de ser surpreendente.

Penso que Rui Patrício está a prestar um grande serviço narrando factos da nossa história recente com uma candura espantosa e ao arrepio da verdade histórica. Afinal, o regime inventou as suas próprias fábulas e as derradeiras figuras ou acreditam no mundo em que viveram ou revelam-se coerentes na argumentação que sabem estar falseada e que nós sabemos. Basta ver o que ele diz sobre a Guiné que todos conhecemos.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 25 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6782: Notas de leitura (134): Invenção e Construção da Guiné-Bissau, de António Duarte Silva (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P6789: Era uma vez um Unimog 411 que morreu nos Nhabijões, em Janeiro de 1971 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Julho de 2010:

Queridos amigos,
O artista Manuel Botelho pegou numa fotografia relacionada com um desastre largamente referido no blogue (mina anti-carro que destruiu um Unimog 411, matando o soldado condutor Soares e feriu gravemente outros militares da CCaç 12, em Janeiro de 1971) e fez esta aguarela.

Fui economizando uns euros, como bom descendente dos árabes, judeus e fenícios, regateei o preço até ao desespero do seu criador, sou agora o feliz proprietário deste documento que me põe constantemente a pensar como é que por vezes a brutalidade do real se transmuta numa mensagem estética de inquietação e aviso solene aos inconformados com o viver em paz.

Se alguém precisar de mostrar esta obra-prima numa exposição sobre a nossa guerra, é só pedir.

Não sei se existe documento mais eloquente sobre a fúria destruidora, dos homens e das coisas.

Como conheci o soldado Soares e o estimei profundamente, esta aguarela é o testemunho de tudo aquilo que não deve voltar a acontecer, em nome da concórdia e do bem supremo da humanidade.

Um abraço do
Mário


Unimog 411 da CCAÇ 12 destruído por mina AC. Pintura de autoria de Manuel Botelho
© Foto de Mário Beja Santos (2010). Direitos reservados

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > 1971 > CCS/BART 2917 (1970/72) > Cemitério de viaturas militares > Em primeiro plano, pode ver-se o estado em que ficou o burrinho, o Unimog 411, depois de accionar uma mina anticarro à saída do reordenamento de Nhabijões, em 13 de Janeiro de 1971, por volta das 11h25. Duas horas depois, era accionada outra mina A/C por uma GMC (parecida com a que está visível ao fundo, na imagem, mas com um maior grau de destruição).
Foto: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados


2. Uma viatura moribunda, um artista investigador que se apaixonou pelo nosso blogue

por Beja Santos

Manuel Botelho é um nome cimeiro das artes plásticas do nosso tempo. Ele já escreveu sobre as motivações que o levaram, em período recente, a interrogar a guerra da Guiné, espiolhando o nosso blogue. Dei-me conta do facto quando o crítico João Pinharanda me convidou para um colóquio à volta de uma exposição que o Manuel Botelho apresentou no Museu da EDP. Já nessa altura ele adquiria compulsivamente tudo o que tivesse a ver com a guerra colonial e emergiu no nosso blogue, catando fotografias de todo o tipo. Há que reconhecer que Manuel Botelho é um dos raríssimos artistas plásticos que se entusiasmou em comunicar artisticamente as manifestações da guerra. Recomendo vivamente que se consulte o site (www.manuelbotelho.com) do artista onde ele confessa o íntimo desta sua curiosidade. Ele escreve:

“Nos últimos anos vi crescer o meu desejo de identificação com os homens da minha geração que há muito tempo embarcaram para Angola, Guiné e Moçambique, escondidos atrás de um camuflado e uma G3. Sei que não fui um deles. Tive a fortuna de estar no último ano do curso de arquitectura quando o 25 de Abril pôs termo ao pesadelo que me ensombrou a adolescência, e já não experimentei a guerra ao vivo e em directo. Mas vivi-a intensamente, numa antecipação obsessiva que durou toda juventude.

Desde então muito tempo passou, e a minha perspectiva da vida mudou também. A guerra na África portuguesa deixou de me interessar enquanto fenómeno político e passei a prestar uma outra atenção aos que a fizeram. Muitos (a esmagadora maioria), ainda estão vivos; têm sensivelmente a minha idade; estão carecas e cansados como eu. Alguns serão um pouco mais velhos, mas pertencemos todos a um mesmo tempo, a uma mesma condição. E eis-me a viver um estranho paradoxo: eu, que andei pelas ruas a berrar “nem mais um soldado para as colónias”, comecei a ter sentimentos de culpa por não ter partilhado esse tempo de abnegação e sacrifício. E a minha pintura começou a falar das memórias dessa guerra, como em “Escombros de Wiryiamu”, o massacre no norte de Moçambique que escandalizou o mundo e que evoquei através de um soldado (eu, já velho), sob a ameaça de insectos gigantescos e segurando desoladamente uma G3. Foi essa G3 que quis fotografar de seguida.

Em 2006, depois da exposição em que apresentei esses trabalhos, senti que alguma coisa devia mudar. Sentia-me enclausurado. A pintura e desenho eram incapazes de traduzir com eficácia o universo temático que tinha em mente… porque, como costumo dizer aos meus alunos, há coisas que são “pintáveis”; outras não.

Comprei uma máquina fotográfica nova e, quando em Setembro fui ao Museu Militar, tudo o que pretendia era fotografar uma G3 e uma Kalashnikov, as armas emblemáticas da guerra colonial. Talvez esse simples acto me apontasse um caminho novo. Talvez um registo impessoal desses vestígios me indicasse para onde seguir. Talvez o rigor metálico de uma G3 ditasse o futuro próximo da minha obra. E foi uma G3 que fotografei; e uma Kalashnikov; e uma FN; e uma Mauser. Às tantas tinha o chão coberto de armas. E aqueles 3 ou 4 dias iniciais começaram a multiplicar-se. Os dias transformaram-se em semanas, as semanas em meses. Em determinado momento já não sabia o que havia de fazer e desatei a inventar outras coisas, dando sequência a desenhos e pinturas anteriores e experimentado territórios completamente novos. E começaram as incursões à feira da Ladra. Comprei equipamento militar da época, velhos camuflados, cinturões, cantis, botas e quicos, e pouco depois estava a invadir o Museu com objectos de toda a ordem, grandes e pequenos: placas de madeira, tapetes de trapos, sardinhas enlatadas, plantas secas e terra, muita terra, cinzenta, vermelha… que fazia agora dialogar com granadas, facas de mato, pistolas, espingardas, minas anti-carro…

Como estavam previstas 3 exposições simultâneas nos primeiros meses de 2008, acabei por isolar 3 núcleos mais ou menos autónomos, deixando de fora muitas dezenas de imagens potenciais. E assim se arrumaram as exposições no Museu de Arte Contemporânea de Elvas, na galeria Lisboa 20 e na Fundação EDP.

Embora ligadas por um fio condutor comum, foram 3 mostras muito diferentes. O “inventário” de Elvas apresentou quase exclusivamente fotografias de armas utilizadas ou apreendidas pelas forças armadas portuguesas, em registos mais ou menos neutros (isto embora uma das minhas grandes preocupações tenha sido descobrir a luz certa para cada caso, o que tornou essas imagens numa espécie de retratos… se é que isso se pode dizer de objectos inertes cuja função é matar). As outras duas exposições seriam mais alegóricas, evocando a guerra de uma forma quase sempre indirecta. Se na Lisboa 20 a “emboscada” ainda incluía algumas cenas de “acção” (?), outras imagens eram sobretudo rituais, com um velho combatente em dialogo consigo próprio ou à beira da loucura e do suicídio. E na “ração de combate”, exposta na EDP, foi a retaguarda que serviu de pano de fundo, e o tempo sem fim das unidades de quadrícula, esses aquartelamentos que desenharam nos mapas e gabinetes (que não necessariamente na realidade vivida) o domínio português desses territórios, ameaçados pelo desejo de autodeterminação.

Em Setembro de 2008 estava de volta ao trabalho, não já no Museu Militar mas sim num espaço improvisado no quintal de minha casa. Sem um estúdio fotográfico em condições, improvisei uma tenda no terraço com paus e panos velhos. E porque agora tinha a possibilidade de trabalhar com outros actores para além de mim próprio (coisa inviável no Museu), pude convocar para as imagens uma figura que há muito me fascinava e que deu o nome à série: a “madrinha de guerra”.

Personagem algo dúbia, patrocinada ao longo da guerra em África pelo Movimento Nacional Feminino com o objectivo de mitigar o isolamento das tropas através de uma activa troca de correspondência entre os soldados e as raparigas casadoiras na metrópole, a madrinha de guerra transforma-se aqui numa presença real, na materialização de um sonho, aterrando num palco de guerra vinda não se sabe de onde. É nesse mesmo palco que decorrem as cenas diversas, de uma série paralela que também aqui se apresenta pela primeira vez. Nas imagens de “flagelação”, o mesmo soldado que povoa as histórias anteriores procura agora proteger-se de uma agressão iminente, real ou imaginária.

Já lá vão quase 3 anos de trabalho e sinto que ainda não esgotei este filão. Ao longo desse tempo li livros, vasculhei depoimentos sobre a “nossa” guerra, essa guerra de miséria e “pé descalço” tão próxima do Portugal rural da minha infância, mas em nenhum caso pretendi ilustrar factos reais, específicos. Por isso, as imagens muitas vezes escaparam-se à ideia que lhes esteve na origem e tomaram direcções imprevistas. Desligadas de uma leitura fixa e imutável, basta trocá-las de lugar para num instante tudo ser diferente… E a guerra de há 40 anos pode tornar-se na guerra de hoje.”

Tive o privilégio de fazermos amizade e de ele me ir mostrando as diferentes facetas do seu trabalho (fotografia, instalação, pintura, etc.). Nunca imaginei que um artista forjasse, quatro décadas depois, espaços, ambientes, situações em que a envolvente guerra tudo dominasse. Comoveu-me ver o meu Unimog 404, destruído por uma mina anti-carro em Canturé (Cuor), em 16 de Outubro de 1969, a ser objecto de uma aguarela que viria a ser exposta num dos eventos artísticos mais importantes da Europa, a ARCO, de Madrid. Ele tinha visto uma fotografia em que o Humberto Reis se mostrava ao lado da viatura imprestável, como se estivesse a interrogar a essência do sinistro. Eu tinha já outra fotografia do António Silva Queiroz, nosso apontador de morteiro 81, que se fizera fotografar também a olhar todo aquele ferro desconjuntado onde morreu o nosso condutor Manuel Guerreiro Jorge, que pertencia à CCS/BCAÇ 2852. O meu guarda-costas, Cherno Suane, seguia no guincho, foi parar a 20 metros, aterrou num baga-baga, teve sorte, quis o destino que o sinistro se saldasse num duplo traumatismo craniano.
Sinto um grande orgulho neste artista que está permanentemente atento ao que depomos, que ele transfigura em arte. É caso para dizer: demorou décadas a compreender o que vivemos, o produto artístico vai testemunhar-nos até à eternidade.
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Nota de CV:

(*) Vd. poste de 25 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6782: Notas de leitura (134): Invenção e Construção da Guiné-Bissau, de António Duarte Silva (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P6788: Patronos e Padroeiros (José Martins) (13): Avós - Santa Ana e S. Joaquim

1. Mensagem de José Marcelino Martins* (ex-Fur Mil Trms da CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70), com data de 24 de Julho de 2010:

Caros Camaradas
Como se aproxima o «Dia dos Avós» que se comemora em 26 de Julho - segunda-feira - , nos quais a maioria de nós se inclui ou espera a hora de entrar neste clube, envio mais um texto sobre Patronos e Protectores,

Fraterno abraço
José Martins


PATRONOS E PADROEIROS XIII

DEDICADO ESPECIALMENTE AOS AVÓS DO NOSSO BLOGUE

São Joaquim e Santa Ana com Nossa Senhora, imagens da Colecção de Maria Manuela Martins
© Foto de José Martins

Santa Ana e São Joaquim, não sendo Padroeiros ou Patronos Militares, não deixam de estar ligados a um sector, com algum peso, nas Forças Armadas e, especialmente nos Antigos Combatentes.

Santa Ana, que pertencia à família do Sacerdote Aarão e, São Joaquim, homem rico da família do Rei David, sendo familiar próximo de São José, havendo teorias que seriam mesmos irmãos, eram casados, mas não tinham filhos.

Alguns factos chegam ao nosso conhecimento pelo chamado “Livro de Tiago”, atribuído Tiago Menor, filho de Zebedeu, e escrito cerca do ano de 150, tendo sido publicado nos finais do século XVI, sob a designação de “Proto-Evangelho de Tiago”.

À época, era norma os casais terem vários filhos, já que a ausência destes era considerada na cultura judaica, como um castigo de Deus. Além da tristeza que esta situação provocava em Joaquim, o Sacerdote Ruben censurou-o por não ter filhos, mas a mulher era estéril. Homem pio e crente, retirou-se para o deserto, a fim de meditar, rezar e fazer penitência, durante quarenta dias e quarenta noites. Foi nessa altura que Ana recebeu a visita de um Anjo, que lhe disse: "Conceberás e darás à luz, e de tua prole se falará em todo o mundo." Era o prémio para a resignação com que haviam sofrido a esterilidade da Ana. Em Jerusalém, localidade em que residiam, a 8 de Setembro do ano 20 a.C., nasceu uma filha ao casal a quem puseram o nome de Miriam, que significa “Senhora da Luz” (em hebraico) ou Maria (em latim).

Já que Maria tinha sido dedicada pelos pais a Deus, aos três anos de idade Maria foi para a escola do Templo de Jerusalém, onde ficou até aos doze anos. Foi nesta altura que São Joaquim morreu, contando cerca de oitenta anos.

A devoção a Santa Ana e a São Joaquim já é muito antiga no Oriente e, quando as relíquias de Santa Ana foram trasladadas da Terra Santa para Constantinopla, cerca do ano de 710, o seu culto foi desenvolvido no ocidente. O Papa Urbano IV oficializou, em 1378, o culto a Santa Ana, tendo sido fixada a data da sua festa, pelo Papa Gregório XIII, a 26 de Julho.

O culto de São Joaquim que vinha, desde os primeiros tempos da era cristã, estendeu-se ao ocidente no século XV. A sua festa litúrgica era comemorada a 20 de Março, associando a data à festa de São José, a 19 desse mês, vindo a ser transferida para o dia 16 de Agosto, associando, assim, a sua festa à celebração da Ascensão de Nossa Senhora, sua filha. O Papa Leão XIII, de seu nome de baptismo Goiacchino (Joaquim na versão italiana), estendeu a sua festividade a toda a Igreja.

O Papa Paulo VI associou as festividades de Santa Ana e de São Joaquim num único dia, a 26 de Julho, passando a comemorar-se, nesta data, o dia dos avós. Por serem os pais de Maria e avós de Jesus, Santa Ana e São Joaquim são os santos protectores dos avós, entre os quais se encontra a maioria dos antigos combatentes.

24 de Julho de 2010
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 5 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6674: O Nosso Livro de Visitas (91): Hélio Matias, ex-Alf Mil Cav, comandante do Pel Rec Daimler 805 (Nova Lamego, 1964/66), que conheceu o Triângulo do Boé (José Martins)

Vd. último poste da série de 29 de Junho de 2010 > Guiné 63/74 - P6657: Patronos e Padroeiros (José Martins) (12): Escola de Sargentos do Exército - Nossa Senhora do Mundo

Guiné 63/74 - P6787: Estórias cabralianas (62): À Tesão, Pelotão!... Este é o Alfero Souza, meu amigo (Jorge Cabral)


1. Estórias cabralianas (*),
por Jorge Cabral

À TESÃO,  PELOTÃO! 

Com o Pelotão [, o Pel Caç Nat 63,] em Bambadinca, preparando-me para arrancar para o Xime, eis que deparo, com um Gandhi,  de camuflado, que avança para mim com os braços abertos. É o Souza, com "z", meu amigo e camarada de Vendas Novas.

Indiano de Damão, logo em 1961, partira para a Inglaterra, onde se doutorara em Física. Não conhecia Portugal, mas em Fevereiro de 1968 teve que vir ao funeral da Tia. Foi quanto bastou, foi incorporado. Já tinha 34 anos, era casado, Professor Universitário, pai de 3 filhos, quase não falava português. Pois bem, atirador de artilharia, meu companheiro de Pelotão [, em Vendas Novas]. Magríssimo, usava uns oculinhos redondos e nunca se queixava.

Fazia parte da nossa instrução, dar voz de comando, apresentando o Pelotão.  Começava, " Atenção Pelotão…", mas quando calhou ao Souza, ele clamou:
- À Tesão,  Pelotão! -  (Não me lembro se nós respondemos afirmativamente…).

De passagem por Bambadinca em trânsito, para o Leste do Leste, o Souza estava ainda mais magro, conservava os pequeninos óculos e aquele ar de suprema resignação. De partida, sem tempo para conversas, quis que conhecesse os meus Soldados. Reuni o Pelotão e disse:
– À Tesão,  Pelotão! Este é o Alfero Souza, meu Amigo!

Muitos anos passaram. Mas ainda hoje, quase como uma divisa, em momentos de chatice, desânimo ou tristeza… eu penso "À Tesão Pelotão!" …e as coisas melhoram…

Jorge Cabral

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Nota de L.G.:

(*) Vd. último poste da série > 21 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6769: Estórias cabralianas (61): Os Poderes do Professor Wanatú... (Jorge Cabral)

Guiné 63/74 - P6786: Tabanca Grande (233): João Crisóstomo, ex-Alf Mil, CCAÇ 1439 (Enxalé, Porto Gole, Missirá, 1965/66), e grande português da diáspora

1. Mensagem de 8 de Junho passado, enviada pelo nosso camarada Beja Santos:

Data: 8 de Junho de 2010 11:08. 

Assunto: Notícias de João Crisóstomo: Só para vocês saberem qual a militância deste nosso camarada!



2.  Mensagem enviada pelo João Crisóstomo [, foto à esquerda,], ex-Alf Mil, a viver em Nova Iorque, e que passa doravante a integrar, de pleno direito, a nossa Tabanca Grande (*), sob o nº 432, com uma saudação muito especial do Luís Graça e demais editores e membros do nosso blogue:

Meu caríssimo Beja Santos:

Envio de novo, pois parece que parte do e mail não chegou a sair.  Isto de comunicações digitais... Deus me ajude!!!!....

Tentei telefonar, (que para mim o som duma voz humana do lado de lá da linha vale mais que mil emails (que são úteis e necessários para outras coisas, eu sei...), mas não apanhaste o telefone... Frustrado tenho mesmo de me pôr ao teclado...

Mas não quero de jeito nenhum deixar de te enviar um grande abraço. Aliás, embora ninguém me tenha encarregado de o fazer, eu tenho a certeza de que muitos dos teus amigos no exterior, especialmente aqueles que como nós tivemos as mesmas experiências e o mesmo viver na Guiné, para os que por acaso leiam este email e não me conheçam: eu fui o percursor imediato (juntamente,  com o Freitas, Sousa, [Luís] Zagallo, Henrique Matos e outros da CCaç 1439), do nosso Beja Santos em Xime, Bambadinca, Missirá, Enxalé, Porto Gole... Se soubessem que hoje era o dia dos teus anos iam rebentar com as linhas telefónicas ou pôr sobrecarga na Internet.... Portanto por estes todos que te queremos muito e que estão espalhados por esse mundo fora....o meu grande abraço e um grande abraço deles também.

Tenho pena de até ao momento não ter podido dedicar mais um pouco de tempo para me corresponder mais contigo e com [o blogue] Luís Graça & Camaradas da Guiné: acreditem que... não tem mesmo dado jeito. E já que estou ao teclado - sempre é alguma comunicação - eu permito-me esclarecer o porquê, na esperança de que compreendam, ao mesmo tempo que me permito dar alguma informação que, como portugueses,  creio relevante para todos nós.

Desde que voltei de Portugal eu tenho andado 'sobrecarregado'. A idade - quase 66 anos  - começa a impor condições e limitações a que não estou habituado e me custa aceitar: e o resultado foi há bem pouco tempo ter apanhado um susto pois estive dois dias com dores de cabeça horríveis e alta temperatura (chegou a 42º C) sem o médico saber porque nem o que fazer. Até que, ao preparar-me para fazer test scans e não sei que mais, eu perguntei ao médico se o cansaço e a falta de sono podiam ter algo a ver com essa minha situação: que desde que voltara de Portugal estava a dormir uma média de 2 a 4 horas por noite (com algumas excepções, pois havia noites que eu não chegara a ver a cama). Ele não me disse o que pensou, mas creio que de estúpido para cima no faltou nada. Depois de medicado, mandou-me para casa descansar....

E isto porque, ao contrário de 2004 em que coordenei o 50º aniversário da morte de Aristides de Sousa Mendes [ 1885-1954,] em 22 países, as comemorações que me decidi organizar, embora em menor escala este ano - 125º  aniversário do seu nascimento e o 70º  aniversário do 'Dia da Consciência' -  as comemorações têm sido muito difíceis de concretizar. Mas algo está acontecendo (e, como portugueses, que somos, espero não levem a mal aproveitar-me deste meio para a divulgação do que acho relevante): Sei de acontecimentos que são programados por esse mundo fora, especialmente em França pelo Sr. Manuel Dias e nos quais eu eu não estou envolvido. Outros, em cuja realização eu tenho prestado o meu maior ou menor contributo incluem:

Dias 17 e 20 de Junho [de 2010]: Missas de Acção de Graças (junto algumas cartas -resposta relacionadas com algumas delas ) no Vaticano, França, Portugal, Brasil, Canadá, Estados Unidos e Argentina.

Além destas há outros acontecimentos relevantes: a vinda por empréstimo do MNE [, Ministério dos Negócios Estrangeiros,] do livro de registo de Bordéus para Nova Iorque, como sucedeu há cinco anos e que teve tal ressonância que o próprio New York Times dedicou um artigo editorial ao acontecimento; a adesão de muitas sinagogas pelo mundo fora que confirmaram com maior ou menor destaque participar nestas comemorações; a apresentação (neste caso embora "esteja por dentro" a minha participação tem sido muito muito pequena, podendo dizer que se limita a apoio moral da minha parte) do filme "O cônsul de Bordéus", uma co-produção belga, espanhola e portuguesa (maioritariamente portuguesa) dirigido por Francisco Manso e João Coreia, música pela Orquestra de Viana de Castelo e voz de Lina Rodrigues... tudo fabuloso... etc., etc.

Quanto a Portugal permitam-me mencionar a Missa na Sé Catedral de Lisboa, dia 17 de Junho, às 19h00. O Sr. Cardeal Patriarca disse-me da sua impossibilidade de presidir este ano, mas delegou num dos seus bispos auxiliares: A Missa será [ foi,] celebrada pelo Sr. Bispo D. Tomás da Silva Nunes.

Familiares, Amigos de Sousa Mendes  e outras individualidades estão envolvidas e a todos convido a estarem presentes neste acontecimento muito significativo e relevante.

Bom, agora tenho de ir para Nova Iorque.... trabalhar. Antes porém, aqui vão as tais cartas (**)

Um braço grande para todos vocês também
João Crisóstomo




Blogue Amigos de Aristides e Angelina Sousa Mendes:

"A missão deste blog é de celebrar, divulgar e homenagear o ACTO de CONSCIÊNCIA de Aristides de Sousa Mendes em Junho de 1940 em Bordeaux, salvando milhares de refugiados sob a ameaça imediata dos invasores e da Segunda Guerra Mundial. / The mission of the blog amigos desousamendes.blogspot.com is to celebrate, disseminate and honor the Act of Conscience of Aristides de Sousa Mendes, the Portuguese diplomat who saved thousands of refugees in June 1940 in Bordeaux".

Poste de 18 de Março de 2010 sob o título "João Crisóstomo works for the Sousa Mendes cause" [João Crisóstomo trabalha para a causa de Sousa Mendes]
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Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de 18 de Março de 2010 > Guiné 63/74: P6013: Camaradas na diáspora (1): João Crisóstomo, ex-Alf Mil, CCAÇ 1439 (Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67), militante de causas nobres, a viver em Nova Iorque

(**)  Cópias de documentos enviados pelo João Crisóstomo que servem para ilustrar a sua actividade como "militante de causas nobres":


[Carta, em francês,  com data de 19 de Fevereiro de 2010, assinada pelo Cardeal Ricard, arcebipo de Bordéus, endereçada para o nosso camarada João Crisóstomo, coordenador e vice-presidente do Comité Internacional Angelo Roncalli] (LG)




[Carta, em inglês, com data de 25  de Abril de 2010,  assinada pelo nosso camarada João Crisóstomo, coordenador do Projecto "O Dia da Consciência" e vice-presidente do Comité Internacional Angelo Roncalli, e dirigida ao Secretário de Estado do Varticano, Cardeal Bertone] (LG)

E AINDA ESTA MISSIVA QUE ACHO MUITO INTERESSANTE PELO ENTUSIASMO T
TÃO O EVIDENTE .( Assim vale a pena trabalhar....) (JL)

Dear friends,

Thanks so much for all your support with this idea to honor this great man.

Here's the status as of today, May 28, 2010:

NEW ACTIONS:

- Tim received confirmation from the Israeli Consulate that the Consul General will attend on June 17

- João Crisóstomo sent me the text (Portuguese and English) to be shared with any priests for special intention masses

- João de Brito is contacting Nathan Oliveira, John Mattos, and Maxine Olson to provide artwork that may relate to the theme (Sousa Mendes, freedom, hope, despair, etc.) to be exhibited at the Consulate

- João de Brito is contacting the Contemporary Jewish Museum of San Francisco to potentially provide some space to exhibit the works of these prominent artists (João, Nathan, John, Maxine) at one of the museum's galleries

- João de Brito and/or John Mattos will be designing a large banner to display on the façade of the Consulate

- I requested that Diane Madruga ask the Pastor at St. Clare's Church in Santa Clara to say a mass in Sousa Mendes' honor on June 13, 17, and/or 20

- I invited the Consul General of Brazil

- Sebastian Mendes and Sheila Abranches (grandchildren of Sousa Mendes) are contacting their relatives who live in the Bay Area to attend the events; they are also contacting their aunt Teresinha (Sousa Mendes' surviving daughter) who lives in Manteca, CA to see if she would be able to attend

- Tim is preparing an invitation list

- Tim is coordinating the hors d'oeuvres (kosher) and flower wreath - donated by PFSA

- I asked Sharon Xavier de Sousa, choir director, who will be performing at the Dia de Portugal concert at Five Wounds Church in San José on June 13 (2:30 PM), to consider dedicating one of the concert pieces to Sousa Mendes and his family

- I have asked João Crisóstomo about posters, banners, brochures, etc. that may have been prepared previously that could be used again

- I contacted the San Francisco Police Department to inquire about potential permits or requirements that need to be addressed

COMPLETED ACTIONS:

- Portuguese Consulate is reserved for the event on June 17 starting at 10 AM (thanks to the Consul General); PFSA will coordinate and donate the kosher hors d'oeuvres (thanks to Tim and PFSA)

- Email invitations sent to Mayors Gavin Newsom of San Francisco, Tony Santos of San Leandro, Al PInheiro of Gilroy, Consul General of France, Honorary Consuls of Austria and Belgium (Tim previously contacted the Consul of Israel), Senators Boxer and Feinstein, Congressmen Nunes, Cardoza, and Costa, Fr. Don Morgan of Five Wounds Portuguese National Church; Tim is inviting Newark Councilman Luis Freitas and is preparing a list of additional invitees

- Five Wounds Portuguese National Church will have a special intention mass on Sunday, June 13 at 11 AM (thanks to Fr. Don Morgan); Fr. Morgan has asked for a text in Portuguese to be read during mass about Sousa Mendes (I will be preparing it)

- Press releases sent to the following media outlets: San Francisco Chronicle, San Jose Mercury News, KGO 810 AM Radio, KGO 7 TV, NBC 11 TV, KRON 4 TV, KCBS 770 AM Radio, CBS 5 TV, KQED Radio, KQED 9 TV, KTVU 2 TV, Portuguese Tribune (Facebook)

Um grande abraço,
Miguel

domingo, 25 de julho de 2010

Guiné 63/74 - P6785: Bibliografia (33): Lugares de Passagem, a minha próxima ficção (José Brás)

1. Mensagem do nosso camarada José Brás* (ex-Fur Mil, CCAÇ 1622, Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68, autor do romance "Vindimas no Capim"*, Prémio de Revelação de Ficção de 1986, da Associação Portuguesa de Escritores e do Instituto Português do Livro e da Leitura ), com data de hoje, 25 de Julho de 2010:

Os camaradas que estiveram a 26 de Junho em Monte Real assistiram ao triste episódio de, quando quisemos oferecer ao Luís em nome do auto-intitulado "Grupo do Cadaval", uma prova de gratidão no objecto concreto do que será o meu próximo livro, escolhido porque imagem chapada das virtualidades do blogue e do convívio que nele se desenvolve.
Afinal mais parecemos, então, jogar uma cena de Quixote, sem lança e cavalgando Rocinante imaginário.

Ficou a intenção e no dia seguinte, por correio, lá seguiu o pacotinho de palavras juntas em quase 200 páginas sob o título "Lugares de Passagem".
Na altura, houve camaradas que me abordaram de ar brincalhão e sugerindo que aquilo era apenas um faz de conta e, outros, no sentido de terem acesso também a um exemplar igual, argumentando que tal coisa, datada e autografada, assim, teria um valor simbólico para todos, uma vez que, como se afirmava e confirmo, foi a Tabanca Grande, no seu conjunto que me entusiasmou a voltar à escrita.

Agora, passados estes dias e em contacto com os elementos do grupo, resolvi aceder ao pedido e disponibilizar algumas cópias para entrega aos camaradas que se manifestarem interessados.

O trabalho tem cerca de 200 páginas e compreende:

1 - o texto em si com o título "Lugares de Passagem"
2 - capa e contracapa da autoria de minha filha Cátia Brás
3 - sinopse da trama entregue na editora
4 - prefácio da autoria de António Loja, meu capitão na Guiné, professor, investigador, escritor
5 - cópia do texto/dedicatória que acompanhou a unidade oferecida ao Luís.

O preço deste pacote é de 17,50€ com correio já incluindo e faríamos o mesmo que fizemos com o Vindimas no Capim, se tu estiveres de acordo.

A fim de terem todos uma primeira abordagem ao livro, junto o texto/sinopse e o prefácio, referidos em 3 e 4.

Deste modo coloco-te a questão da oportunidade da colocação de notícia no blogue com a informação do meu próprio endereço electrónico, jasbras1@sapo.pt.

Forte abraço
José Brás


"LUGARES DE PASSAGEM"

SINOPSE

Filipe Bento é o ficcionado narrador de "Vindimas No Capim", livro que deu a José Brás, em 1987, o Prémio Revelação da APE na modalidade de ficção narrativa, editado por Publicações Europa-América em 1988.

Em "Lugares de Passagem", Filipe Bento pretende sair do seu estado ficcional e tornar-se autor de uma série de estórias que terá guardado e amadurecido nos anos que decorreram desde a publicação de "Vindimas".

No sentido de passar ao papel tais estórias, e tendo consciência das suas dificuldades com escrevente narrador, busca a quem lhe possa ajudar na tarefa, e nada mais natural que o fizesse junto de José Brás a quem havia prestado o favor de se assumir como narrador das peripécias no livro anterior.

Porém, Filipe Bento resolve pôr a limpo um facto mal contado então, dando a público a informação de que o verdadeiro autor de "Vindimas no Capim" havia sido um tal Arnaldo, neto de um personagem anterior e ainda presente de memória, José da Bonança, ou José da Venância, ou José de Matos Luís ou Luís de Matos, confusão de nomes que não chegou nunca a apurar-se com certeza certa, nem em "Vindimas no Capim", nem, agora, em "Lugares de Passagem", fenómeno muito presente no convívio quotidiano entre gente de aldeia, inclinando-se mais o narrador para José Luís de Matos, de onde parece vir o sobrenome do Arnaldo, de Matos, seu amigo real desde os bancos da escola primária.

"Lugares de passagem" começou por chamar-se em projecto "Lisboa, lugar de passagem", porque Lisboa sempre o foi para mim, para o Filipe e parece que para o Arnaldo, primeiro, lugar de ir e voltar no comboio de Vila Franca de Xira ou na carreira da Bucelence, depois, caminho da guerra colonial aonde se ia sempre com hipóteses de não voltar, e, mais tarde ainda, nos aviões entre aeroportos do mundo.

Contudo, porque aeroportos sempre foram para nós, cidades, gente, vida para além de lugares de ausência que são quase sempre, apenas partidas e chegadas, no decorrer da escrita apareceu como melhor o actual título.

"Lugares de Passagem" é, assim, uma tentativa de viajar por dentro de gente que habita as cidades dos aeroportos, uma tentativa de visão sobre o comum e global desejo de felicidade das pessoas, através dos anseios individuais e a conflitualidade permanente nesse jogo de aproximar e afastar.

Subitamente, Filipe Bento, o ficcionado narrador de "Vindimas no Capim", resolve também contar histórias e exige trocar de lugar, isto é, que lhas escreva, alguém que descobrirá que tais histórias são restos alterados de outras que lhe teria, em tempos recuados, contado eu, Arnaldo ou José Brás, porque destrinçar entre os dois não tem qualquer interesse.

Não é um livro de contos, não é um romance, não sei se é o que quero que seja, a tal viagem de partidas e chegadas aparentemente desligadas umas das outras mas que o leitor ligará por invisível fio paralelo e exterior, segundo a leitura de cada um, como se insinua nas apresentações iniciais.

Na minha terra os pequenos agricultores, acabada a sementeira, olhavam-na com alguma ansiedade e murmurando "benza-te Deus".

Em princípio, porque agnóstico, não é "politicamente correcto" dizê-lo eu.

Contudo, e ainda assim, digo-o como o dizia o avô José da Bonança, não pelo lucro material que possa ou não vir a dar-me, mas, vindo tempo a feição, pelo lucro espiritual que possa trazer, a mim, semeador, e a outra gente que o colher.

Benza-te Deus!

José Brás

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Prefácio

...ou Carta de um capitão* da Guiné a um furriel da companhia


Com quantas mãos se constrói uma casa? Quantas personalidades deverá assumir o homem que elabora o projecto? E o que rasga os caboucos? E o que lança as fundações? E o que afeiçoa a pedra a mistura o cimento e a areia? E o que abre portas e janelas deixando nela entrar a luz e o calor? E o que a cobre com um telhado, protegendo-a de chuvas e do vento agreste? E o que finalmente a povoa com seres humanos igualmente possuidores de várias personalidades que convivem no mesmo corpo como as notas contrastantes de um concerto de Vivaldi reunidas na perfeita harmonia de uma inquietação tornada unidade?

Com quantas mãos se escreve uma história? Duas personalidades assume o homem que decide fazer aos outros o relato da sua experiência de vida, em seu nome e em nome de outro, neste caso outros, que são também ele próprio, num saudável desdobramento que permite a José Brás, e aos seus amigos Arnaldo e Filipe Bento escreverem "Lugares de Passagem", numa cumplicidade criativa que faz reviver neles os companheiros mortos na guerra em que os três participaram na Guiné e outros com quem se cruzaram em "lugares de passagem", multiplicando assim a sobreposição enriquecedora de experiências vividas e de personalidades directa ou indirectamente envolvidas na dinâmica criativa: o Xico que "sabia muito pouco das leis da física que justificam o voo", mas que podíamos dizer "foi um pioneiro da aviação", Helena, sentada em Copacabana, frente ao mar, o soldado Lixa que fita nos olhos o guerrilheiro do PAIGC, ambos protegidos no mesmo "lugar de passagem" que é o bagabaga, e Rose, e Mominato, e Maura, e Anamaria, e o cabo Calçada, apanhado por uma rajada que lhe arranca um pulmão, e o enfermeiro homossexual que para salvar vidas circula entre as balas como anjo imune ao perigo, e o avô José da Bonança, aliás, José de Matos Luís, e o soldado Dias que deixou de viver nos escassos segundos em que eu mesmo o deixei agarrado ao rádio enquanto para junto dele regressava vindo de outro recanto do mato que estoirava em fogo, e o meu telegrama recebido pelo José Brás durante a festa na aldeia, e o cabo Oliveira, a esvair-se em sangue em Ximxim-Dari mas depois a salvo no hospital da Estrela.

E que há-de fazer, quarenta anos depois de tudo isso, um homem como eu, capitão por acaso de uma companhia de atiradores onde havia um furriel de transmissões chamado José Brás, que tem recordações semelhantes às minhas mas que as guarda como eu porque escreve como eu mesmo tentei escrever quando me encontrava no que pensei ser um "lugar de passagem" entre a vida e a morte? Que há-de fazer um homem acordado do seu meio viver pelo fluxo das suas recordações, José Brás, escriba de si mesmo e dos seus amigos Filipe Bento e Arnaldo, senão caminhar a seu lado, tentando recordar também, sem ter a pretensão de distinguir entre verdades e mentiras, difíceis por vezes de separar na neblina dos anos que separam a realidade vivida do que dela resta como resíduo.

Mas você o diz, José Brás, "verdades e mentiras são sempre / meias verdades e meias mentiras / quem com loas perde tempo / mentiras lhe parecem verdade / e verdades lhe parecem mentira".

Repito a minha pergunta inicial, agora com outras palavras. Como se constrói uma casa? Se eu entregar a quarenta homens um punhado de tijolos e lhes disser "construam uma casa" é mais que certo que surgirão quarenta casas diferentes, ao modo das necessidades e das aptidões de cada construtor. E nunca poderei dizer que uns constroem verdade e que outros constroem mentira. Do mesmo modo as nossas comuns experiências são necessariamente vividas de modo diverso, mesmo que outros possam querer chamar-lhes verdades e mentiras (ou meias verdades e meias mentiras).

Mas é com essas verdades que vivem em nós que conseguimos ser fiéis a nós mesmos e fiéis à memória que guardamos dos amigos mortos que encontrámos nesses "lugares de passagem" chamados Aldeia Formosa, aliás, Quebo, e Medjo e Guiledje e Cumbijã e Missirã e Ximxi-Dari e Darsalame e Nhala e Buba e Contabane. E todos esses lugares se confundem por vezes com o Rio de Janeiro e com São Salvador da Baía e com Montreal, porque uma curva de estrada faz recordar outra curva de estrada onde homens emboscados tentavam derrubar-nos e onde emboscados nós tentávamos derrubar outros combatentes, homens como nós que por uma acaso da vida se cruzavam nos mesmos lugares de passagem e que por isso ganharam um lugar tão indelével nas nossas memórias. Essas recordações não são mentiras, nem mesmo meias mentiras. São as nossas verdades, com que temos vivido desde a guerra, que passou por nós com a força de uma tempestade e que em nós deixou marcas que não queremos que desapareçam, porque sem elas as nossas vidas seriam menores e nós não seríamos nós mas outros.

Mas somos nós e, deixe-me agora transcrevê-lo de novo "outros e os mesmos porque todos nascemos de ventre de mãe, todos sonhámos outros eus, todos lutámos, todos matámos de bala ou de imaginação, e matando nos matámos a nós próprios antes que a morte morte nos venha buscar".

António Loja

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António Loja
Funchal - Madeira
Professor de história e filosofia e investigador
Escritor - "As Ausências de Deus" (Notícias); "A Luta do poder contra a maçonaria" (Imprensa Nacional-Casa da Moeda); "como um rio invisível" (Notícias).
Candidato pela Oposição nas eleições de 1969
Presidente da Junta Geral do Funchal entre Abril de 74 e as primeiras eleições democráticas
Deputado à Assembleia da República entre 1976 e 1979
Deputado à Assembleia Regional da Madeira entre 1980 e 1984
Capitão Miliciano na Guiné, Quebo, Mejo e Jolmete de 1966/68

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2. Comentário de CV:

Os camaradas que participaram no último Encontro de Monte Real compreenderão melhor esta iniciativa do José Brás, no entanto quem já teve a oportunidade de ler o "Vindimas no Capim" não irão perder este "Lugares de Passagem" (benza-o Deus).

Os interessados deverão, preferencialmente, pedir o seu exemplar ao José Brás, mail: jasbras1@sapo.pt.

Já agora aproveito este tempo de antena para dizer que estou a ler o "Vindimas no Capim", e apesar de não ter arte para crítico literário, aconselho-o vivamente. É um livro onde se misturam, o humor, a ironia, o drama, e a realidade que nós vivemos na guerra colonial. José Brás caracteriza com muita clareza a vida do campo no Alentejo profundo dos anos sessenta, quando muitos tinham tão pouco e poucos tinham demais. A não perder.
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Nota de CV:

(*) Vd. poste de 6 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6678: Controvérsias (91): Mário Cláudio e o debate, Açordas! (José Brás)

Guiné 63/74 - P6784: Tabanca Grande (232): Fernandino Leite, Soldado de Transmissões da CAÇ1499/BCAÇ 1877 – Pelundo, Bolama, Pirada e Piche -, 1966/67

Mais um Camarada se apresenta nesta Tabanca Grande, o Fernandino Leite (ex-Soldado de Transmissões da CAÇ1499 / BCAÇ 1877 – Pelundo, Bolama, Teixeira Pinto, Pirada e Piche -, 1966/67, que é um cliente habitual da Tabanca de Matosinhos e grande amigo pessoal do Casimiro Carvalho (CCAV 8350 - Piratas de Guileje), nesta sua primeira mensagem apenas enviou uma reportagem fotográfica do seu álbum de memórias, mas deixando a promessa de que, brevemente, voltará com a descrição da evolução operacional da sua Companhia por terras da Guiné:



Um aspecto da tabanca de Pirada


Eu no meu posto de "trabalho"

Eu, os júbis e, ao fundo, uma
dornier

Eu posando na
Sofia

Aqui posando numa
Vespa


Aqui com um pequeno júbi


Helicóptero capturado ao P.A.I.G.C.


Eu "bem acompanhado"

Um abraço,
Fernandino Leite
Sold Trms da CAÇ1499/BCAÇ 1877


2. O Fernandino Leite é o primeiro elemento, quer da CCAÇ 1499, quer do BCAÇ 1877 a dizer presente nesta nossa tertúlia, ficando a aguardar que outros seus camaradas da Unidade lhe sigam aqui o exemplo.



3. Amigo e Camarada Fernandino Leite, é da praxe que em nome do Luís Graça, Carlos Vinhal, Virgínio Briote e demais tertulianos deste blogue, te diga aqui que é sempre com alegria que recebemos notícias de mais um Camarada-de-armas, especialmente, se o mesmo andou fardado por terras da Guiné, entre 1962 e 1974, tenha ele estado no malfadado “ar condicionado” de Bissau, ou no mais recôndito e “confortável” bura… ko de uma bolanha.
Tal como o Luís Graça já referiu inúmeras vezes, em anteriores textos colocados em postes no blogue, todos aqueles que constituíram a geração dos “Últimos Guerreiros do Império”, têm alguma coisa a contar da sua passagem da Guerra do Ultramar, que permaneça para memória futura e colectiva, deste violento e sangrento período da História de Portugal.
Foram 12 anos de manutenção de um legado histórico (cerca de 500 anos de permanência), à custa de muito sacrifício, privação de toda a ordem, dor, sangue, sofrimento, morte… que envolveu a movimentação de mais de meio milhão de portugueses em armas.
Como se não tivesse bastado, continuamos a sofrer, pelo menos psicologicamente, nos últimos 36 anos com o modo ostracista e laxista como os políticos portugueses nos tratam.
Nós que, nos nossos 21/22/23 anos, demos o nosso melhor, como podíamos e sabíamos, muitas vezes mal treinados e armados, sabe Deus como alimentados e enfiados em autênticos buracos, construídos no lodo, embebidos em pó, lama, suor, mosquitos, etc., completamente hostis e perigosíssimos, sob vários aspectos, onde, além dos combates com o IN, enfrentávamos as traiçoeiras minas e armadilhas, as doenças a apoquentar-nos (paludismos, disenterias, micoses, etc.) e as nossas naturais angústias e temores, próprios das nossas tenras idades.
Nós até nem temos pedido muito, além de respeito e dignidade, que todos nós merecemos pelo que demos a esta Pátria, queríamos, e continuamos a querer, no mínimo, que os nossos doentes, física e psicologicamente, sejam tratados condigna e adequadamente, e o tratamento e acompanhamento dos mais carenciados e abandonados pela desgraçada “sorte” da vida.
Oferecendo-te então aqui as nossas melhores boas-vindas e ficamos a aguardar que nos contes episódios da tua estadia na Guiné, que ainda recordes (dos locais, das pessoas, seus hábitos e costumes, dos combates, dos convívios, etc.) e, se tiveres mais fotografias daquele tempo, que nos as envies, para as publicarmos.Recebe pois, para já, o nosso virtual abraço colectivo de boas vindas.
Emblema de colecção: © Carlos Coutinho (2010). Direitos reservados.
Fotos: © Fernandino Leite (2010). Direitos reservados._____________
Notas de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

18 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6758: Tabanca Grande (231): Eduardo Costa Dias, antropólogo, CEA / ISCTE / IUL

Guiné 63/74 - P6783: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (31): De volta à natureza

1. Mensagem de Luís Faria (ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72), com data de 24 de Julho de 2010:

Mais um troço de “Viagem…” que fecha um pequeno ciclo inesperado e nos leva a um recomeço.

A “Velhice” está mais próxima!

Um abraço e boas férias
Luís Faria



Viagem à volta das minhas memórias (31)

De volta à Natureza


“O que é bom depressa acaba” e assim, a 19 Agosto de 1971 após vinte dias de “férias”, recolhidas as trouxas e montados nas viaturas, os 2.º e 4.º GCOMB da “FORÇA” metem-se à estrada de regresso a Teixeira Pinto, de onde tínhamos saído para ajudar numa “guerra“ na Cidade, que me apercebi não aconteceu e ainda bem. O 1.º GCOMB tem sorte e ficará por aquelas bandas por mais uns dias em férias, até final do mês.

A fita de asfalto que se estendia até João Landim vai ficando para trás, abrindo acesso às pontas das já saudades de Bissau e daqueles dias diferentes que passamos, aproximando-nos da travessia do Mansoa na jangada, o que me levava sempre a uma certa sensação de apreensão, não só pela travessia em si como pela noção adquirida de que, para além do rio… recomeçava de novo a guerra.

No entretanto de embarcar e não embarcar para a travessia, uma cervejola na “barraca de apoio ao sedento” era bem vinda enquanto se apreciavam mais ou menos distraidamente as manobras de acostagem, de descarga e de carga ou se mirava aquele africano idoso ali costumeiro (das poucas vezes que por lá passei) que teria sido guia, com o peito cravejado de caricas e pequenas chapas como se medalhas fossem. Talvez… medalhas da turbulência menos feliz da sua vida?!

Por lá e à altura, paravam elementos da “Pica na Burra” não recordo se em serviço ou não, com quem trocava dois dedos de conversa. Mais tarde tive como companheiro de trabalho um dos que “Picavam a Burra”, o Carlos Ramalho, grande amigo, da Amareleja (terra mais quente e de melhor e mais forte “pinga” cá do nosso Jardim) com quem há já uns anos não contacto e que me traz à lembrança uma cena por que passei num almoço em casa de seus Pais, nessa terra de canícula e que passo a contar, como intervalo na narrativa do nosso regresso a Teixeira Pinto!!

João Landim > Elementos da CCAÇ 2791

João Landim > População aguarga travessia

Pica na Burra

Família e “convidado” (eu) sentam-se nos lugares destinados em redor da mesa . Na frente de cada um e para além dos talheres e pratos estão dois copos de igual desenho mas de diferentes alturas, julguei eu para vinho e o pequenito para licor ou digestivo. Começam a servir o vinho pelo ”convidado” e o néctar jorra para o copo pequeno. Fico “espantado” (minha Mãe, quando ouvia os filhos empregar este termo dizia-nos: ”os cavalos é que se espantam “!!!), quero então dizer surpreso e pergunto se estão a “caçoar” comigo, já que sabem que sou nortenho, bom rapaz e com a tropa feita!!! Riem-se, acham piada e explicam-me ser esse o costume, para que não se consiga beber de “golada”, já que aquele vinho tinha alto teor de álcool, devendo ser bebido gole a gole e assim intervalado com a comida ou água, pelo menos enquanto o copito ficava de novo cheio. Caso contrário seria fácil não nos conseguirmos levantar da cadeira no final da refeição!!! Era bem verdade!!!

Acabado o intervalo (que espero vos tenha sido profícuo (?!) e montado de novo nas asas de memórias mais antigas, regresso à coluna auto da 2791 que parceladamente atravessa o Mansoa na jangada cordada e reagrupa na outra banda, reiniciando depois a corrida que nos leva novamente a Teixeira Pinto, sem qualquer problema.

“Filhos pródigos(?!) a casa tornam” e por lá ficamos retomando logo de seguida, a 22 de Agosto, as nossas andanças pelas matas do Balanguerês e do Burné já vezes sem conta calcorreadas e bem, retomando o “estilo de vida” a que a estadia na grande cidade não deu tempo a nos desabituar!

Assim a vida regressa ao seu ritmo “normal e natural“ e os dias volto-os a viver um a um até à altura em que marchamos para Capó, onde a 25Out71 começa a ser construído um acampamento no meio de nenhures, feito de terra, paus e folhas de palmeira (palmeidur!?) que irá servir de base aos 3 GCOMB da “FORÇA” reforçada com um da CCaç 3308 (que não recordo, mas consta dos apontamentos) e a cerca de cinco centenas de trabalhadores nativos.

Nesse “cú de judas” no meio de nenhures e onde só podíamos contar connosco, iríamos passar cerca de mês e meio em condições mais que precárias e de perigo, obrigando-nos a uma actuação preventiva muito séria e intensa onde o facilitismo podia ser fatal.

Até lá, fizemos dezasseis operações ofensivas, intervaladas como era normal por descansos de trinta e seis ou quarenta e oito horas, por vezes vinte e quatro ou nem tanto. Intervenções problemáticas e muitas vezes difíceis, em que algumas provocaram dor, sangue e morte, frustração e até desejos de vingança (por que não dizê-lo?) que se combatiam com frieza, calma, persuasão e se necessário com autoridade!

“Por uma Guiné melhor” > Teixeira Pinto

Foram anos complicados e difíceis esses, em que dezenas de milhar de Camaradas de Armas vivemos a nossa juventude em defesa do que à altura era ainda “Pedaço de uma Pátria” onde a Bandeira Portuguesa flamejava, ondulando ao sabor dos ventos da História que, sem a grande maioria de nós saber ou aperceber, se encontrariam já em subtil mudança.

Pedaços de vidas guardados bem fundo nos nossos seres, que só a morte irá libertar.

Luís Faria
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 9 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6700: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (30): Bissau, Paraíso na guerra

Guiné 63/74 - P6782: Notas de leitura (134): Invenção e Construção da Guiné-Bissau, de António Duarte Silva (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Julho de 2010:

Queridos amigos,
É uma obra de grande importância, é um trabalho científico, onde o nosso blogue é regularmente citado na bibliografia.
Para se entender o aflitivo presente da Guiné-Bissau, é extremamente útil embarcar nesta viagem, até mesmo conhecer as normas constitucionais do país.


Um abraço do
Mário


A Guiné entre o século XIX e a actualidade:
Para entender melhor estes mais de 2 séculos de esperança adiada


por Beja Santos

Não hesito em dizer que o estudo Invenção e Construção da Guiné-Bissau (por António Duarte Silva, Edições Almedina, 2010) é de leitura obrigatória, mais não seja para os que quiserem perceber quais as raízes e a estrutura do mal-estar da identidade de um país permanentemente desencontrado (e desencantado consigo próprio).

António Duarte Silva é um especialista com créditos firmados. Em 1997, publicou o livro A Independência da Guiné-Bissau e a Descolonização Portuguesa, centrado no período que vai dos primórdios do processo de declaração unilateral de independência até à entrada formal da direcção do PAIGC em Bissau, a 19 de Outubro de 1974.

O presente livro problematiza a fundação e a identificação da Guiné-Bissau. Pegando na bússola do autor, parte-se da instalação da colónia, no princípio do século XX, acompanha-se a mudança da capital para a Bissau e refere-se a nova “escola colonial” promovida por Marcello Caetano e Sarmento Rodrigues, durante a década de 1940. Depois, aprecia-se o alcance da conversão da Guiné em província ultramarina, passam-se em revista as primeiras manifestações nacionalistas bem como as medidas portuguesas para impedir a “subversão” na Guiné, procurando medir as consequências do “massacre do Pindjiquiti” (o autor justifica por que é que se deve dizer Pindjiquiti e não Pidjiquiti, como habitualmente dizemos). É aqui que começa uma nova fase da luta política que irá concluir com o processo da independência.

António Duarte Silva é técnico superior do Tribunal Constitucional e ex-professor da Faculdade de Direito de Bissau. Daí o estudo aprofundado que faz das diferentes Constituições bissau-guineenses desde a Constituição originária (de 24 de Setembro de 1973 ou do Boé) à actual terceira vigência da Constituição dita de “1993”. Vejamos, em síntese, o que nos propõe este admirável estudo.

Primeiro, a herança do século XIX, quando a presença portuguesa na Guiné, embora antiga, se mantinha muito reduzida, circunscrita à Praça de Bissau, aos presídios de Cacheu, Geba, Farim e Ziguinchor, ao posto de Bolor e à ilha de Bolama. O território nem sequer tinha nome próprio (era indiferenciadamente tratado por Costa da Guiné, rios da Guiné do Cabo Verde, Senegâmbia…). A “ocupação efectiva” decorre dos ditames da Conferência de Berlim (1885) e na sua sequência delinearam-se as fronteiras pela Convenção relativa à delimitação das possessões portuguesas e francesas na África Ocidental, assinado em Paris a 12 de Maio de 1886. Portugal perdeu o “chão” do Casamansa incluindo Ziguinchor.

Em 1879, a Guiné passou a província independente, cessando a sua subordinação administrativa e militar relativamente a Cabo Verde. A sede do governo instalou-se em Bolama. O autor dá-nos um quadro da governação da Guiné após o advento da República e os principais traços da organização político-administrativa e a composição da hierarquia colonial. Como é sabido, as “campanhas de pacificação” foram dadas como concluídas na década de 1930. O século XX vê emergir um surto de vida intelectual centrado em Bolama.

Nessas décadas, surgem obras de grande importância para a literatura colonial como Mariazinha em África de Fernanda de Castro e Auá de Fausto Duarte.

A mudança da capital para Bissau, em 1941, imprimirá um novo rumo aos acontecimentos. A cidade de Bissau irá ganhar uma fisionomia ”europeia”, passa a ser sede política, de negócios, será aqui que Sarmento Rodrigues lançará as bases da Guiné como “colónia modelo”. Esta viragem e a obra de Sarmento Rodrigues são analisadas com detalhe pelo autor. O Marcello Caetano ao tempo ministro das Colónias era um africanista convicto, inequivocamente a favor da promoção de autonomia administrativa e do desenvolvimento económico-social das colónias, recomendando aos seus quadros atenção à ascensão das forças anti-colonialistas, especialmente norte-americanas.

Sarmento Rodrigues estará no centro desta grande mudança do sistema colonial. O seu nome aparece associado a dois actos emblemáticos na legitimação da colonização, a saber: o combate à doença do sono na Guiné e às Comemorações do V Centenário da Descoberta da Guiné. Irá crescer o número de “civilizados” face à categoria dos indígenas. No campo cultural, assiste-se à criação do Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, organiza-se o museu da Guiné e surge a publicação Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, a mais importante publicação existente até ao fim do período colonial. Sarmento Rodrigues desenvolveu o aparelho administrativo recorrendo a uma elite metropolitana e a uma administração de cabo-verdianos e mestiços.

Em 1947, Caetano é substituído no Ministério das Colónias e operam-se importantes mudanças na Guiné. António Duarte Silva aborda com meridiana clareza a perda de equilíbrios instalados pela política de Caetano e a inflexão para um tipo de colonialismo mais vocacionado para a gestão e para o comércio. Acerca desta matéria, o autor chama a atenção para a importante reunião extraordinária do Conselho Ultramarino que se realizou em Outubro de 1962, na altura em que Sarmento Rodrigues era governador de Moçambique. O que estava em causa era uma reestruturação político-administrativa que abria as portas ao federalismo. Escusado é dizer que a linha integracionista da política colonial foi quem ganhou.

Por essa época começa a falar-se muito nas teses do luso-tropicalismo, da responsabilidade de Gilberto Freyre. Este ilustre estudioso brasileiro formulara o conceito de luso-tropicalismo a partir de características particulares da colonização portuguesa do Brasil. É Sarmento Rodrigues quem vai convidar Gilberto Freyre a percorrer todo o Império. Parecia que o pensamento deste mestre brasileiro se prestava a ser o pano de fundo da acção reformista empreendida por Adriano Moreira enquanto ministro do Ultramar.

Freyre irá mostrar-se desiludido com debilidade dos estudos portugueses sobre o tropicalismo. Por seu turno, Teixeira da Mota irá dizer que não considerava o luso-tropicalismo adequado ao caso da Guiné já que a população civilizada era mínima (cerca de 0,3 % do total e apenas um quarto dela era constituída por brancos.

Com a chegada da guerra, em 1961, a “política de defesa” levou ao abandono das teses luso-tropicalistas no discurso oficial português. No fundo, segundo Freyre havia uma maneira dos portugueses se comportarem em todo o mundo, adaptando-se, assimilando-se, pondo a cultura e a civilização ao serviço dos outros. Sem descurar do interesse que tais teses podiam ter para a compreensão do colonialismo português, o que se passara na Guiné estava frontalmente em oposição às teses preconizadas luso-tropicalistas quanto à presença portuguesa e o seu intercâmbio com as populações locais.

O nosso blogue tem razões para se sentir orgulhoso com este trabalho: o investigador António Duarte Silva   releva-se profundo conhecedor do que aqui se escreve, cita-nos abundantemente na bibliografia. Somos um blogue que os investigadores acompanham e invocam, tal a originalidade de depoimentos, o ineditismo de fontes e a sinceridade dos testemunhos. Para que conste.

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 23 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6776: Notas de leitura (133): Desertor ou Patriota, de David Costa (Mário Beja Santos)