terça-feira, 3 de agosto de 2010

Guiné 63/74 - P6821: Efemérides (47): Acontecimentos de 3 de Agosto de 1959 no cais do Pindjiguiti, Bissau (1) (Leopoldo Amado)

1. Hoje, dia 3 de Agosto de 2010, completa-se mais um ano sobre os trágicos acontecimentos do Pidjiguiti, ocorridos no já longínquo ano de 1959. 

Lembrando essa data, vamos republicar os Postes DLXXV de 22 de Fevereiro, DLXXXVI de 25 de Fevereiro e DLXXXVIII de 26 de Fevereiro de 2006, da nossa I Série, de autoria do nosso tertuliano Leopoldo Amado, lusoguineense, de quem aliás não temos notícias há já algum tempo. Presume-se que continue a viver e a trabalhar em Cabo Verde


Guiné > Canjadude > 1974 > Posto de controlo do PAIGC, vendo-se um grupo de guerrilheiros aramados de kalash e de RPG-7.

Fonte: João Carvalho / Wikipédia > Guerra do Ultramar (2006) . O João Carvalho, ex-furriel miliciano enfermeiro da CCAÇ 5 (1973/74), é hoje farmacêutico e membro da nossa tertúlia.


Os graves acontecimentos do Pidjiguiti em 3 de Agosto de 1959

Iniciamos hoje a publicação de um importante texto, inédito, do historiador guineense, Leopoldo Amado, doutorando em história contemporânea pela Universidade Clássica de Lisboa e membro da nossa tertúlia, sobre o significado dos acontecimentos de 3 de Agosto de 1959, na perspectiva da luta, mais recente, de libertação nacional, liderada pelo PAIGC, e da tradição, mais antiga, de resistência dos guinéus à colonização europeia (incluindo a portuguesa).

Devido à sua extensão, o texto teve de ser repartido em várias partes. Apesar de assoberbado com os preparativos para a defesa da sua tese de doutoramento, o nosso amigo Leopoldo quis ter connosco uma especial atenção, o que muito nos honra.

Não temos dúvida, que este seu paper, alicerçado em minuciosa investigação empírica, baseada em documentação de arquivo (incluindo os ficheiros da PIDE/DGS) e em entrevistas a actores-chaves, vem fazer luz sobre uma parte da nossa história comum recente assim muito mal conhecida, contada, analisada e explicada. Obrigado, Leopoldo! (LG).
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Caro Mário Dias,
Caro Luís Graça,
Restantes tertulianos,
Amigos e camaradas,

Como prometi, segue em anexo o meu comentário sobre o testemunho presencial de Mário Dias, à propósito de Pindjiguiti. Estou aberto a qualquer reparo, chamada de atenção, troca de ideias e experiências, caso houverem.

Seguem também, igualmente em anexo, duas ou três fotos (bom, mais imagens que fotos) que se reportam ao Pindjiguiti. Infelizmente, todos em ficheiros Word, mas o Luís Graça (ou alguém da Tertúlia) certamente saberá os converter em ficheiros normais de imagem, se se entender publicar o meu texto, apesar do seu desmedido tamanho. Uma sugestão: talvez se deva publica-lo no Blogue, mas em formato PDF, devido aos itálicos, palavras entre comas/aspas e sobretudo devido as notas de rodapé.

Peço entretanto ao Luís que me faça o favor enviar o texto de volta, depois de composto e introduzido as imagens que não consigo converter em ficheiros normais de imagem, a fim de que o possa publicar nos meus blogues:

Lamparam I

Lamparam II

Um abraço e boa semana de trabalho a todos
Leopoldo Amado


Simbologia de Pindjiguiti na óptica libertária da Guiné-Bissau (Leopoldo Amado) - I Parte

O testemunho presencial de Mário Dias é sem dúvida uma peça imprescindível para um melhor enquadramento da historiografia da guerra colonial “versus” guerra de libertação, de resto, algo que enquadra perfeitamente no significativo esforço que a Tertúlia tem vindo a desenvolver de forma empenhada, entre outras plausíveis razões, porque todos estão profundamente conscientes – penso eu – de que os povos sobrevivem sempre às turbulências próprias de uma guerra, qualquer que ela seja, donde a importância do estabelecimento da necessária ponte de ligação com as novas gerações, através da memória histórica.

Porém, apesar de muito limitada no tempo (11 anos) e no espaço (cerca de pouco mais de 30.000 Km2), as malhas históricas em que se processou e se desenvolveu a guerra colonial e/ou guerra de libertação, conforme o lado dos contendores onde nos posicionamos, a mesma revela-se de uma profunda complexidade, tanto pelo potencial de estandardização factual que a sua evolução comporta, como pelas intrincadas conexões que os acontecimentos ou episódios inerentes apresentam, aconselhando este estado actual dos conhecimentos a espécie de humilde resignação metodológica ante a evidência, de resto compreensível, das eventuais ou prováveis obliterações decorrentes do eventual défice de objectividade ou não com que a temática é aqui e acolá aflorada, contanto nos convençamos de que tanto as abordagens que procurem explanar uma visão de conjunto (aparentemente, a mais cómoda) como as parcelares (aparentemente, a mais trabalhosa) afiguram-se por um lado autonomamente importantes e, por outro, altamente complementares aos esforços tendentes a uma mais cabal e bem sucedida reconstituição histórica.

Assim, o justamente ou o impropriamente denominado Massacre de Pindjiguiti (abstemo-nos metodicamente, pelo menos por agora, a tecer juízos de valor), apresenta-nos como bom exemplo para se ilustrar a complexidade referida, na medida em que, não obstante inéditos e importantes, os factos relatados como fazendo parte da sua decorrência apresenta-se-nos também, à jusante e montante da ocorrência, como factores limitativos à uma abordagem com horizontes mais abrangentes.


Guiné-Bissau > Luís Cabral, o primeiro presidente da República da Guiné-Bissau (1974-1980).

Efectivamente, à jusante de todo o processo que o antecedeu, por um lado, Pindjiguiti não foi senão um marco, uma referência e, muito provavelmente, o cumulativo e o auge de um sentimento que se expressou como se expressou – violentamente é certo –, pese embora a fuzilaria e o derramamento de sangue que lamentavelmente resultou em mortes, mas em cujos acontecimentos, tanto à jusante como a montante, apresentam suficientes elementos que nos permitem, tanto quanto possível, conferir uma interpretação histórica a fenomenologia que, por comodidade, designaremos Pindjiguiti. Eis o percurso que iremos tentar delinear para doravante para situarmos a contextualização histórica de Pindjiguiti.

Convenham-nos então que Pindjiguiti, isto é, o fenómeno considerado enquanto tal, é deveras tributário de inúmeros acontecimentos que o antecederam, desde os mais longínquos aos mais próximos, uns e outros dependendo da longevidade, intensidade e/ou projecção que tiveram no imaginário colectivo guineense.

Assim, independentemente das influências exteriores e dos ulteriores desenvolvimentos no plano internacional que directa ou indirectamente desembocaram no boom das independências africanas em 1960, o povo guineense sempre resistiu à colonização. Atestam-no, entre outros aspectos, a denodada resistência oferecida a ocupação colonial portuguesa que, iniciada nos finais do século XIX, prolongaram-se praticamente até a ao início da segunda metade do século XX, mediando assim pouquíssimo espaço de tempo o final do período da resistência à ocupação e o da emergência do embrionário nacionalismo guineense que, coincidente e curiosamente, surge concomitantemente no preciso momento em que o poder colonial também tinha acabado de criar as condições para a implantação da administração e o seu domínio sobre o território.

É certo, outrossim, que acontecimentos tal como a segunda Grande Guerra e suas ressonâncias na Guiné, diminutas que sejam, contribuíram igualmente com a sua quota-parte para que o povo guineense começasse a questionar o seu papel e o seu lugar.

Aliás, Rafael Barbosa lembra-se (1) de, durante a segunda guerra mundial, os jovens em Bissau se terem se posicionado do lado dos Aliados contra a Alemanha de Hitler, seguindo com entusiasmo e acrescido interesse (sobretudo pela BBC e outras rádios internacionais) o evoluir dos acontecimentos no teatro das operações, tal a convicção da que tinham os jovens guineenses da adopção, por parte de Portugal, de uma espécie de neutralidade dúbia, apoiando subtilmente a Alemanha de Hitler, pelo que não se pode a partir destes aspectos aferir-se da crença ou da antevisão, por parte desses (ainda) imberbes nacionalistas, de que na II Grande Guerra jogava-se, de certo modo, o futuro dos povos das colónias africanas.

Estava-se na Guiné, isso sim, perante manifestações libertárias, mas algo difuso, tanto mais que junto aos grumetes e elementos da pequena burguesia local, independentemente do grau da sua justeza ou de qualquer outro juízo de valor que elas se possam fazer, pelo menos por parte de alguns desses africanos, bifurcavam-se também na vontade oculta de ascensão na sociedade e estruturas de poder coloniais.

Vivia-se, convenhamo-nos, naquilo a que hoje se convencionou de certa maneira denominar de protonacionalismo, mas de per si este facto não deixa de ser demonstrativo de que, na década de 40 do século XX, essas aspirações libertárias quase que apenas se manifestavam como contraponto da exploração imposta pelo desumano e repressivo aparelho colonial e só de forma subsidiária e residual como resultante de uma hipotética influência ou impulso importados do movimento das ideias e aspirações libertárias que já se fazia sentir no plano africano e até internacional, mormente através do movimento pan-africanista cujas ressonâncias – não obstante terem a chegado a Guiné em 1910 com a fundação da Liga Guineense –, não tiveram nem continuidade e nem expressão assinalável, tal a repressão que o temerário Teixeira Pinto (autrement conhecido pelo epíteto de “Pacificador”) engendrou contra os seus membros mais activos e que conduziu posteriormente a sua proibição em 1915.

Para lá do ambiente gerado pela longa e penosa guerra de ocupação colonial (“pacificação”) versus resistência à ocupação – que durou oficialmente até 1936 (apesar de que várias importantes revoltas foram aqui e acolá assinaladas até aproximadamente 1950), o relacionamento entre o aparelho colonial e as populações guineenses era, em geral, bastante hostil. Inclusivamente, em 1942, toda a estrada de Plubá foi aberta pelos prisioneiros que, na maior parte dos casos, eram presos porque não quiseram ou não puderam pagar a daxa ou o imposto de palhota.

Guiné > Amílcar Cabral e Nino Vieira, na época da guerrilha. Amílcar viria a ser assassinado em 1973. Nino, por sua vez, derrubará o sucessor de Amílcar, o seu meio-irmão Luís Cabral, através de um golpe de estado militar (1980).

Fonte: desconhecida.

Durante todo o período que durou a II Guerra Mundial, no tempo do Governador Vaz Monteiro, havia em Bissau, Safim e Quinhamel algo que em muito imitava os campos de concentração na Alemanha do Hitler. O maior assassino era o administrador de Bissau, António Pereira Cardoso, que veio a ter aqui preso o Benjamim Correia. A partir daí, o filho da Guiné tomou consciência de que havia que lutar pela sua causa (2)".

No início, a pequena burguesia organiza-se num quadro africano, mas cujo fim não é ainda a independência nacional. Trata-se de mais um desejo confuso de encontrar o seu lugar, de emergir socialmente. Mas a dominação portuguesa não é ainda contestada, a aspiração a assimilação mantém-se, nesta etapa, largamente espalhada. Isto apesar de alguns elementos da elite guineense são já serem sensíveis a uma “reafricanização”.

A prova eloquente do acima dito é o facto de a maior parte dos "notáveis" guineenses da sociedade colonial pertencerem ao Conselho Legislativo do governo da Guiné, tais como Mário Lima Whanon (comerciante), Dr. Augusto Silva, Joaquim Viegas Graça do Espírito Santo (aposentado e comerciante residente em Bafatá), Dr. Armando Pereira (advogado), Benjamim Correia (comerciante), Carlos Domingos Gomes (comerciante) e Dr. Severino de Pina (advogado) (3).

A estes juntaram-se outros guineenses pertencentes à pequena burguesia, sendo de reparar a participação de cabo-verdianos e de portugueses que na altura eram claramente anti-situacionistas. Este grupo, que não escondia igualmente as suas pretensões de ascensão na sociedade colonial, dava também, paradoxalmente, o seu inequívoco apoio ao emergente nacionalismo guineense.

Portugal > Lisboa > s/d > Cartaz de propaganda de apoio à luta dos povos das colónias africanas portuguesas. Cartaz da UAC - Unidade Anti-Colonial.

Imagem gentilmente cedida por Jorge Santos, membro da nossa tertúlia (2005).

Os notáveis desse grupo que se destacaram, tendo por isso merecido um registo das suas actividades pela PIDE, foram Eugênio Rosado Peralta (industrial de pesca), Manuel Spencer “Tuboca” (comerciante) e Fernando Lima ( comerciante). Estes membros da pequena burguesia foram acusados de fomentarem a rebeldia entre os guineenses considerados indígenas, chegando mesmo alguns deles mais tarde a aderir aos ideais de libertação, embora sem nela tomarem parte activa (4).

Com efeito, a maior parte dos povos da Ásia tornou-se independente após a II Guerra Mundial. Em Outubro de 1946, com o fim de realizar a união de todos os africanos, realizou-se lugar em Bamako (Mali) uma reunião em que se fixaram os princípios do Rassemblement Démocratique Africain (RDA), propondo-se a fusão de todos os agrupamentos e partidos democráticos de cada território num partido democrático unificado, passando o RDA a ser inicialmente dirigido por um Comité de Coordenação, apesar de que sempre se debateu ao longo dos anos com a unidade proclamada.

No decorrer deste período a acção das massas africanas, as organizações políticas e os seus dirigentes impuseram nos territórios vizinhos, sobretudo nas colónias francesas, um certo número de realizações no campo económico e social que eles próprios que eles próprios consideraram positivas, pelo que a ideia da unidade das organizações políticas africanas na luta pró-independência ganha novamente vulto entre essas mesmas massas e nas organizações não aderentes ao RDA.

As organizações que não aderiram ao RDA agrupam-se no MAS (Movimento Socialista Africano) e na Convenção Africana, esta animada por Leopoldo Sédar Senghor. Em 1957, foi criado o PAI, o qual lança a ideia da independência africana. Em Julho de 1958, verifica-se uma reunião em Paris dos principais dirigentes africanos, onde se reafirmou o principio da unidade com vista à independência. Em Maio-Junho de 1958 a França atravessou uma grande crise, retomando o destinos do país o General De Gaulle. Este desloca-se a Conakry e no decurso da sua visita declara que os povos da África sob dominação francesa podiam escolher entre responder “sim” e aceitar a sua Constituição que sob o nome da “Comunidade” substitua a chamada “União Francesa” ou responder “não” caso em que o território se tornaria independente.

A maior parte dos territórios, confiantes nas promessas feitas, votou “sim”. Só a Guiné por votação popular realizada pelo PDG respondeu “não” em 28 de Setembro de 1958 à Constituição do general De Gaulle e em 2 de Outubro a sua independência era proclamada.

Esse feito deveu-se sobretudo a acção do PDG (criado em Maio de 1947), sete meses depois do Congresso de Bamako, o qual resultou da fusão étnica das associações que na Guiné Conakry e especialmente à acção de Sékou Touré que dirigia o sindicato e era o Secretário Político do Partido.

Repúlica da Guiné-Conacri > Bandeira nacional > A simbologia das cores...
Fonte: Wikipedia (2006)

A República da Guiné adoptou uma bandeira tricolor – vermelho, amarelo e verde em que o vermelho simboliza a determinação do povo em aceitar todos os sacrifícios até ao derramamento do sangue, o amarelo a cor do sol e das areias de África e o verde a cor da esperança e da vegetação africana, cores estas que se encontram nas bandeiras de quase todos os países do Oeste africano, diferindo apenas a disposição.



Em Março de 1952, Cabral subscreveu com outros uma exposição a Sua Excelência o Presidente da República, em que entre outras coisas, reclamavam a retirada de Portugal do Pacto do Atlântico.

Cabral desembarcou em Bissau a 20.9.52, no navio Ana Mafalda, tinha ele 34 anos. Chegou a Bissau a sua mulher a 2.11.52. Cabral foi contratado pelo Ministério do Ultramar como Adjunto dos Serviços Agrícolas e Florestais da Guiné até 18.3.55, data em que regressou à Metrópole. Em 1952, Amílcar Cabral rumou para a Guiné colonial, após ter estado em Cabo Verde (1949), onde, segundo o próprio, fez "todas tentativas de acordar a opinião pública contra o colonialismo".

Nessa época, Portugal tinha o compromisso internacional de apresentar o Recenseamento Agrícola da Guiné e até então este trabalho não fora sequer iniciado. Depois de vários contactos de trabalho, particularmente nos momentos em que o Amílcar exercia interinamente as funções de chefe de serviço, o Governador decidiu confiar-lhe a execução daquela importante tarefa, na qual veio a ser secundado pela engenheira Maria Helena Rodrigues, sua esposa. "Em cada tabanca deixava uma palavra como ele a sabia dizer, embora o povo só viesse a interpretá-la devidamente quando lá chegasse a palavra de ordem do Partido para a luta (6)”.

O Recenseamento Agrícola acabou por permitiu a Cabral conhecer mais de perto as populações e os seus problemas, constituiu-se assim na antecâmara da mobilização urbana que se lhe seguiu.

Em 1952, Amílcar Cabral sugeriu a formação de um Clube de Futebol apenas reservado aos naturais da Guiné opinando que dentro do mesmo devia existir uma biblioteca para a elevação do nível cultural dos associados. Várias reuniões foram realizadas tendo também para a arrecadação de fundos sido efectuado um baile no bairro Chão de Papel.

Nessa altura, tentou, aparentemente sem sucesso, Amílcar Cabral quis disfarçar as actividades políticas com a criação de um clube desportivo e recreativo cujos subscritores da petição foram: o próprio Amílcar Cabral, Carlos António da Silva Júnior, João Vaz, Ricardo Teixeira, Pedro Mendes Pereira, Inácio Carvalho Alvarenga, Paulo Martins, Julião Júlio Correia, Martinho Gomes Ramos, Víctor Fernandes, Bernardo Máximo Vieira.

O aparente insucesso acabou todavia acabou por insuflar a ideia de associativismo. Segundo Luís Cabral, " (…) o projecto de associação começava a tomar corpo e a ter aceitação, enquanto o Amílcar provava não estar disposto a recuar diante das dificuldades. E a denúncia surgiu (…) (6)”.

A não admissão, neste clube, de europeus acabou por gerar dissidências deixando os propósitos do seu mentor bem à vista: lançar as bases duma organização de nativos irmanando-os na mesma fé e nos mesmos destinos. O clube não chegou a ser autorizado, mas o certo é que ficou entre os nativos a ideia duma união entre todos.

Com efeito, durante a sua permanência nesta cidade, diz uma notada PIDE, “o Eng.º Amílcar Cabral e a sua mulher comportaram-se de maneira a levantar suspeitas de actividades contra a nossa presença nos territórios de África com exaltação de prioridade de direitos dos nativos e, como método de difundir as suas ideias por meios legalizados, o Eng.º pretendeu e chegou a requerer juntamente com outros nativos, a fundação de uma agremiação desportiva e Recreativa de Bissau, não tendo o Governo autorizado (7)”.

A mesma nota dava ainda conta de que “(...) eram anti-situacionistas o João Vaz, ajudante de mecânico, de 33 anos, natural de S. Tomé, Carlos António da Silva Semedo Júnior, de 21 anos, estudante, a estudar em Lisboa; Pedro Mendes Pereira, enfermeiro de 1ª classe de 52 anos, Inácio Carvalho Alvarenga, 42 anos; Julião Júlio Correia, de 50 anos de idade, Martinho Gomes Ramos de 35 anos, Víctor Fernandes, de 30 anos Bernardo Máximo Vieira, de 33 anos, tendo esses mesmos indivíduos assinado uma petição no sentido da criação de um clube denominado Clube Desportivo e Recreativo de Bissau, destinado ao desenvolvimento de actividades nativistas, superiormente orientadas pelo engenheiro Amílcar Cabral.

As reuniões, presididas por Cabral para esse fim realizavam-se clandestinamente na casa de João da Silva Rosa (guarda livros da NOSOCO). Tomaram parte nessas reuniões o Isidoro Ramos, João Rosa, Víctor Robalo (agricultor em Bigimita), Martinho Ramos (empregado da Gouveia), José Maria Dayves, Elisée Turpin (empregado ao tempo da SCOA), Godofredo Vermão de Sousa (professor primário), Crates Nunes (carpinteiro). Para essas actividades, chegaram até de organizar um baile muito frequentado no Chão de Papel, tendo Estevão da Silva (Alfaiate), na altura nomeado tesoureiro.

Um cartoon histórico alusivo ao reconhecimento, por parte do Portugal democrático, da independência da Guiné Bissau, em 10 de Setembro de 1974. Fonte: Gaiola Aberta. nº8 (1 de Outubro de 1974) © José Vilhena (1974) (com a devida vénia).

Imagem gentilmente cedida por Jorge Santos, membro da nossa tertúlia (2005).

Foi com estes fundos que se financiaram as cópias dos Estatutos que Cabral elaborou e que depois o levou a uma reunião para ser apreciado e na qual foram aprovados, secundando este acto a constituição de uma Comissão que os deveriam levar a aprovação do Governador, porquanto foram inicialmente entregues e esta entidade não o submeteu a despacho com a brevidade que os interessados então pretendiam. Que essa Comissão foi então constituída por João Rosa, Víctor Robalo e João Vaz (alfaiate) que igualmente não conseguiu aprovação do Governo, exactamente porque uma das cláusulas dos Estatutos aludia ao facto de que nesta agremiação que não podiam tomar parte os europeus e caboverdianos, razão pela qual passou-se a dizer que Cabral estava feito com os grumetes.

Depois de 1954, alguns povos de África tornaram-se independente. No Sul da Guiné, mais concretamente em 1956, registaram-se no Sul da Guiné certas actividades dos nativos, nas áreas de Cacine e Bedanda a favor do chamado Rassemblement Democratique Africain, tendo-se mesmo formado o que apelidaram de “clubes de trabalho”, em quase todas as povoações vizinhas. Prenderam-se alguns responsáveis e deu-se a fuga de outros, pelo que estas acções foram desmanteladas.

Em 1955, José Ferreira de Lacerda (9), futuro patriarca e líder lendário do MLG, redigiu, a pedido de César Mário Fernandes e José Francisco Gomes (assinada por várias pessoas) uma “Representação” que foi entregue ao Presidente da República de Portugal aquando da visita deste a Província da Guiné, documento esse onde se condensava, segundo os seus subscritores, o essencial das aspirações da Guiné.

Paralelamente, nas eleições para membros do Conselho do Governo da Província da Guiné faziam parte dos elementos favoráveis aos candidatos da “oposição”, os seguintes guineenses: Benjamim Correia, Armando António Pereira (advogado de 54 anos e candidato a membro do Conselho do Governo da Província, proposto pelo grupo de Benjamim constituído pelo branco Luís Mata-Mouros Resende Costa, 36 anos de idade, natural de Bissau, que nesse processo encarregou-se de expedir circulares, em colaboração Gastão Seguy Júnior (9), 36 anos, oficial de diligências do Juízo de Direito da Comarca, natural de Bolama (10).

É igualmente digna de registo a existência, mais ou menos paralela, de outro grupo de nacionalistas que actuava sob a coordenação de Mário Lima Wanon e do qual faziam parte o Dr. Artur Augusto Silva (11), o Dr. Severino de Pina, Godofredo Vermão de Sousa, Víctor Robalo, Armando António Pereira, Manuel Spencer e Crates Nunes. Embora as acções desenvolvidas nesta fase da luta fossem poucas, devido à feroz repressão e apertada vigilância da PIDE, o certo é que contribuíram para a mobilização em Bissau, particularmente nas camadas ligadas à pequena burguesia local.

Leopoldo Amado
Fevereiro de 2005

(Continua)
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Notas do autor  (LA):

(1) Entrevista de Rafael Barbosa a Leopoldo Amado em Bissau.

(2) Entrevista de Elisée Turpin a Leopoldo Amado.

(3) Cf. Proc. 4415 - CI (2), Arquivos da PIDE, Torre do Tombo, fls. 34

(4) Cf. Proc (Proc. 5466 - CI(2), , Arquivos da PIDE, Torre do Tombo, fls. 307

(5) Cabral, Luís, Crónica da Libertação, Edições "O Jornal", 1984, p.36

(6) Segundo Víctor Robalo (Entrevista concedida a Leopoldo Amado em Bissau) "(…)aquilo morreu mas, o Amílcar não parou. Depois, veio a ideia da criação da cooperativa, cujo nome já não me lembro. Era uma cooperativa cuja sede havia de ser na minha ponta. Foi a última tentativa para a criação de uma cooperativa agro-pecuária... Era uma cooperativa de sociedade por quotas de 500 escudos na altura. Cada cooperativista entrava com o que tivesse até completar aquilo, que era para ver se as coisas marchavam"

(7) Nota datada de 3.5.55, Proc. N.º 3589 – CI (2)9.

(8) Segundo Rafael Barbosa (entrevista de Rafael Barbosa a Leopoldo Amado), José Ferreira de Lacerda estudou em Coimbra e teria sido aluno de Salazar.

(9) Gastão Seguy Júnior , como oficial de Justiça, foi acusado de propagandista quando sempre que os assuntos indígenas subiam ao poder judicial, observando-se este facto com maior clareza aquando julgamento do administrador aposentado, António Pereira Cardoso, acusado de ter praticado carnificina junto as populações indígenas.

(10) Proc. PC5519 - CI(2), 1956, fls.119-120

(11) O Dr. Artur Augusto Silva (*), pai do nosso amigo e conhecido PEPITO, foi advogado de muitos nacionalistas guineenses acusados de "subversão” e "terrorismo". Correligionário político e colega de Álvaro Cunhal durante o período de estudos em Coimbra, desempenhou um papel importantíssimo no processo de defesa e consciencialização dos guineenses.
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Notas de CV:

Sobre os acontecimentos do Pindjiguiti ver postes de:

15 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXXXV: Pidjiguiti, 3 de Agosto de 1959: eu estive lá (Mário Dias)

18 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLVII: Antologia (36): o massacre do Pidjiguiti (Luís Cabral)

21 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLXXIII: Pidjiguiti: comentando a versão do Luís Cabral (Mário Dias)

22 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLXXV: Simbologia de Pindjiguiti na óptica libertária da Guiné-Bissau (Leopoldo Amado) - I Parte

25 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLXXXVI: Simbologia de Pindjiguiti na óptica libertária da Guiné-Bissau (Leopoldo Amado) - II Parte

26 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLXXXVIII: Simbologia de Pindjiguiti na óptica libertária da Guiné-Bissau (Leopoldo Amado) - III (e última) Parte

26 de Fevereiro de 2006 >Guiné 63/74 - DLXXXIX: Pidjiguiti: resposta do Mário Dias ao Leopoldo Amado

2 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4452: Controvérsias (15): O 'massacre do Pidjiguiti', em 3 de Agosto de 1959: o testemunho de Mário Dias

27 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6793: Notas de leitura (136): Invenção e Construção da Guiné-Bissau, de António Duarte Silva (2) (Mário Beja Santos)

Vd. último poste da série Efemérides de 16 de Junho de 2010 > Guiné 63/74 – P6599: Efemérides (45): Inauguração do Monumento aos Combatentes da Guerra do Ultramar, em Vila do Conde (Vasco Santos, ex-1º Cabo Cripto, CCAÇ 6, Bedanda, 1972/73)

Guiné 63/74 - P6820: Tabanca Grande (235): António Inverno, ex-Alf Mil Op Esp/RANGER da 1.ª e 2.ª Companhias do BART 6522 e Pel Caç Nat 60 – S. Domingos - 1972/74

1. Mais um Camarada se apresenta nesta Tabanca Grande, o António Inverno (ex-Alf Mil Op Esp/RANGER da 1.ª e 2.ª Companhias do BART 6522 e Pel Caç Nat 60 – S. Domingos -, 1972/74, que nesta sua primeira mensagem enviou um resumo do seu “passeio” pela Guiné, acompanhado de cinco fotografias do seu álbum de memórias, deixando-nos na expectativa de que, brevemente, voltará com mais literatura da evolução operacional da sua Companhia e do seu Pelotão Nativo durante a sua comissão:



Apresenta-se o Ranger António Inverno
Aceitando o desafio que o Luís Graça me lançou, para me apresentar nesta Grande Tabanca, aqui estou, começando por descrever o meu Serviço Militar que se iniciou em 4 de janeiro de 1972, tendo assentado praça na Escola Prática de Cavalaria, em Santarém, onde completei a Recruta.

Dado o bom desempenho ao longo da Recruta, fui enviado para o C.I.O.E., em Lamego, mais concretamente para o Quartel de Penude, em Abril desse mesmo ano, onde concluí com aproveitamento o 2.º curso de Operações Especiais/RANGER de 1972.


Era hábito naquela Unidade, nesse tempo, os primeiros classificados serem convidados a ficarem por lá a prestar instrução e monitoragem, pelo menos ao curso seguinte.


Como a minha classificação final foi alta, aceitei o convite do Comandante de Instrução e fiquei por lá mais 3 meses a ajudar a “massacrar” o pessoal do 3.º curso de 1972.


Em Outubro fui integrado no Batalhão de Artilharia 6522, que embarcou para a Guiné em 6 de Dezembro de 1972.


Chegado a Bissau embarcamos numa LDG para Bolama, onde realizamos o I.A.O. e onde conheci o Marcelino da Mata, que, com o seu Grupo de Combate, nos presenteou com algumas demonstrações e nos intruiu com várias dicas sobre os modos como se devia andar no mato, bem como sobre os cuidados a ter em relação ao IN.


Logo no segundo dia em Bolama travamos o primeiro contacto com o IN.


Eles sabiam que tinham chegado os piras e resolveram flagelar Bolama a partir da ilha de S. João, digamos que a darem-nos as “boas-vindas”.


Acabado o I.A.O., o Batalhão foi colocado em Ingoré e procedeu-se à distribuição das Companhias pelo Sedengal, S. Domingos, Susana e Ponta Varela.


Em S.domingos, como um pouco por todo o território continuaram os ataques do P.A.I.G.C., com canhões sem recuo, morteiros de 82 mm e foguetes de 122 mm.


Obviamente era costume manter a tropa frequentemente no mato, para tentar evitar que o IN se aproximasse muito dos aquartelamentos, segurança às colunas de viaturas, colocação de minas nos locais mais suspeitos, etc.


Seria escusado dizer que todas as acções passíveis de maior perigo sobraram sempre aqui para este RANGER e, por isso, passei a comandar simultaneamente o meu grupo de combate e o Pel Caç Nat 60, já referenciado em anteriores mensagens neste blogue.


Assim acabei por percorrer várias áreas do Batalhão com o mencionado Pelotão Nativo.


Mais tarde apareceu para comamdar o Pel Caç Nat 60, o Alferes João Uloma (dos Comandos Africanos), de quem fiquei amigo e com quem fiz algumas incursões, por vezes dentro do Senegal e foi aqui que teve início a história da “Kalash”, que me foi trazida por ele juntamente com 5 carregadores cheios, experimentei-a, gostei dela e adoptei-a, e que passei a usar, não por ter algo contra a G3, mas porque era mais “maneirinha” e me dava mais mobilidade, além de ser útil porque confundia o IN.


Soube mais tarde que o Alferes Uloma foi fuzilado pelo PAIGC, como aliás tantos outros.


Em Setembro de 1974, fui eu que executei a cerimónia do arriar da última Bandeira Nacional em S. Domingos e testemunhei o acto de içamento da primeira Bandeira da Guiné-Bissau naquela localidade, antes de partir para o porto local onde me esperava uma LDM que me transportou para Bissau.


Jamais esquecerei a tristeza que vi estampada nos rostos dos Felupes do Pelotão de Caçadores Nativos 60, quando me vim embora. Pareceu-me que aqueles Homens já adivinhavam o que os esperava, principalmente a do 1.º Cabo Agostinho que muitas vezes me dava conselhos sobre a arte de montar emboscadas nos supostos percursos por onde o IN movimentava o seu material de guerra, a partir do Senegal para dentro da Guiné e nos locais de cambança.


Nunca me arrependi de ter aceitado as suas sugestões.


Por ultimo quero só dizer que jamais esquecerei a Guiné por todos os motivos já conhecidos e sentidos por todos nós e um, em especial, que não posso deixar de referenciar, que era o cheiro/odor da mata e da bolanha às 07h00 da manhã, que me entrou no sangue e perdurará para sempre.



Em cima de um dos obuses de 10,5 cm que tanto auxílio nos prestaram

Um aspecto das trincheiras no quartel

Instalações atingidas pelos foguetões 122 do inimigo

Posando para a foto junto de um morteiro de 80 mm

Restos de foguetões de 122 mm
Um abraço, António Inverno Alf Mil Op Esp/RANGER do BART 6522 e Pel Caç Nat 60 2. O António Inverno é o segundo elemento do BART 6522/72 a dar notícias suas nesta tertúlia “bloguista”, existindo no poste P6004 informação sobre o Cap Mil Inf Sérgio Matos Marinho de Faria, de que o António Inverno é amigo pessoal, que foi o comandante da 3.ª Companhia do BART 6522/72, mobilizada pelo RAL 5. Partiu para a Guiné em 7/12/1972 e regressou à Metrópole em 3/9/1974 - Ingoré e Sedengal, na região do Cacheu, a leste de Farim.
3. Amigo e Camarada António Inverno, é da praxe (bem mais suave que a do C.I.O.E.), que em nome do Luís Graça, Carlos Vinhal, Virgínio Briote e demais tertulianos deste blogue, te diga aqui que é sempre com alegria que recebemos notícias de mais um Camarada-de-armas, especialmente, se o mesmo andou fardado por terras da Guiné, entre 1962 e 1974, tenha ele estado no malfadado “ar condicionado” de Bissau, ou no mais recôndito e “confortável” bura… ko de uma bolanha.

Tal como o Luís Graça já referiu inúmeras vezes, em anteriores textos colocados ao longo de seis mil e tal postes no blogue, que todos aqueles que constituíram a geração dos “Últimos Guerreiros do Império”, têm alguma coisa a contar da sua passagem da Guerra do Ultramar, que permaneça para memória futura e colectiva, deste violento e sangrento período da História de Portugal, de que nós fomos protagonistas no terreno, em alguns casos só Deus sabe em que condições o fomos.

Foram 12 anos de manutenção de um legado histórico que muitos ignoram e, ou, ostracizam por motivos diversos (cerca de 500 anos de permanência), à custa de muito sacrifício, privação de toda a ordem, dor, sangue, sofrimento, morte… que envolveu a movimentação de mais de meio milhão de portugueses em armas.

Como se não tivesse bastado, muitos de nós continuam a sofrer, pelo menos psicologicamente, nos últimos 36 anos com o modo ostracista e laxista como os políticos portugueses nos tratam. Nós que, nos nossos 21/22/23 anos, demos o nosso melhor, como podíamos e sabíamos, muitas vezes mal treinados e armados, sabe Deus como alimentados e enfiados em autênticos buracos, construídos no lodo, embebidos em pó, lama, suor, mosquitos, etc., completamente hostis e perigosíssimos, sob vários aspectos, onde, além dos combates com o IN, enfrentávamos as traiçoeiras minas e armadilhas, as doenças a apoquentar-nos (paludismos, disenterias, micoses, etc.) e as nossas naturais angústias e temores, próprios das nossas tenras idades.

Nós até nem temos pedido muito, além de respeito e dignidade, que todos nós merecemos pelo que demos a esta Pátria, queríamos, e continuamos a querer, no mínimo, que os nossos doentes, física e psicologicamente, sejam tratados condigna e adequadamente, e o tratamento e acompanhamento dos mais carenciados e abandonados pela desgraçada “sorte” da vida.

Oferecendo-te então aqui as nossas melhores boas-vindas e ficamos a aguardar que nos contes episódios da tua estadia na Guiné, que ainda recordes (dos locais, das pessoas, seus hábitos e costumes, dos combates, dos convívios, etc.) e, se tiveres mais fotografias daquele tempo, que nos as envies, para as publicarmos.

Recebe pois, para já, o nosso virtual abraço colectivo de boas vindas.

Emblema de colecção: © Carlos Coutinho (2010). Direitos reservados. Fotos: © António Inverno (2010). Direitos reservados. _____________ Nota de M.R.: Vd. último poste desta série em:
31 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6813: Tabanca Grande (234): Tina Kramer, 27 anos, etnóloga, da Universidade de Frankfurt, Alemanha

Guiné 63/74 - P6819: Blogpoesia (78): Saudades daquele tempo, ou Quisera eu... (5) (Manuel Maia)

1. Do nosso camarada Manuel Maia  foi Fur Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4610, Bissum Naga, Cafal Balanta e Cafine, 1972/74, mais um poema da série Quisera eu..., enviado em mensagem do dia 30 de Julho de 2010.  


QUISERA EU... (5)

Quisera à terra eu ver suas entranhas,
em campos bem tratados por gadanhas,
tractores, boas enxadas, laborando...
Quisera eu ver searas feitas pão,
centeio, trigo, milho, neste chão
parado, improdutivo,descansando...


Quisera ver espelhado na criança,
sorriso reflector de uma mudança,
sem vítreos olhos, ventres dilatados...
Quisera ver na escola a refeição,
perpetuar-se em uso, pois então
melhores serão, por certo, os resultados...


Quisera ter de artista a mão sagrada
que grava, que regista, imaculada,
a imagem que da alma traz a esp`rança...
Quisera p`ra Guiné ter garantia,
de um deus, Eolo ou Zeus, que um qualquer dia
trocasse a tempestade p`la bonança...


Quisera ver feliz aquele povo
acreditando, firme, em mudo novo,
na senda do sucesso feito paz...
Quisera ver progresso, ali à porta,
entrando, sem bater, porque o que importa
é férrea vontade  e ser audaz...


Nascido sob a sina do azar
sofrido por contínuo penar,
rendido à malapata do destino...
Guinéu, povo credor do meu respeito,
às malhas da desdita, sempre atreito,
carece de amor próprio, intestino...


Num espatulado pau, ponta é rasgada,
p`ra atar lata/conserva, bem espalmada,
e conseguir alfaia artesanal...
Cingida ao pano, às costas, traz criança,
mulher sustento activo da morança,
em sociedade arcaica, algo imoral...


A "enxada" da Balanta evidencia,
que a terra que esta "alfaia" acaricia,
é fácil de domar e generosa...
Se houvera um bom tractor como instrumento,
melhor seria a safra e o sustento,
erradicando a fome, indecorosa...


Se eu fosse o deus Plutão, rei dos infernos,
com Júpiter, Saturno, bem fraternos,
familiares laços me ligando...
Às chamas condenava alguns algozes,
carrascos deste povo, tão ferozes,
tão logo a "foice" os fosse "libertando"...

__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 29 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 > P6804: Blogpoesia (77): Saudades daquele tempo, ou Quisera eu... (4) (Manuel Maia)

Guiné 63/74 - P6818: Notas de leitura (141): Corte Geral, de Carlos Lopes (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Julho de 2010:

Queridos amigos,
Despeço-me até 10 de Agosto.
Estejam descansados, levo livros sobre a Guiné, prometo mais recensões. Depois, tenho que dirigir mais a minha atenção para A Viagem do Tangomau que tem andado tão mal tratada.

Um abraço a todos,
Mário


Estórias da crioulidade, entre a mordacidade e a profunda decepção

por Beja Santos

Carlos Lopes é um nome sonante e prestigiado de um guineense que serve as Nações Unidas. Nasceu em Canchungo (antiga Teixeira Pinto) em 1960. Doutorou-se em Estudos Africanos em Paris; tem igualmente graus académicos em Sociologia, História e Planificação Estratégica. Intelectual prodígio, foi director-geral aos 24 anos do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa. Repartiu a sua actividade académica em universidades como Zurique, Uppsala, México e Coimbra. A partir de 1988 trabalhou no PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Foi assessor de Kofi Anan, o anterior secretário-geral das Nações Unidas. O actual secretário-geral, Ban Ki-moon, nomeou Carlos Lopes como director executivo do Instituto das Nações Unidas para a Formação e Investigação. Anteriormente Carlos Lopes ocupara as funções de director de assuntos políticos do gabinete executivo do secretário-geral.

Corte Geral é a primeira obra de ficção de Carlos Lopes (Editorial Caminho, 1997).

Ele apelida o conjunto de crónicas de “deambulações no surrealismo guineense”. É um livro assombroso, de uma grande coragem, pintalgado de humor e de uma crueldade bastante sofrida. É, acima de tudo, um retrato da Guiné-Bissau após a independência, os seus traumas sociais e económicos, os permanentes choques culturais, a África dos curandeiros e dos irãs, a reminiscência do período colonial em que as coisas funcionavam e incompreensivelmente se tornaram disfuncionais. De igual modo, um olhar arguto, matreiro, sobre as falsas mudanças, as medidas pseudo-revolucionárias que a carapaça tradicionalista acaba por atirar ao lixo. E também uma crítica aos falhanços políticos, numa perspectiva anterior à guerra civil que chegou pouco tempo depois de publicado este livro.

O ambiente geral que envolve estas estórias é o tempo da liberalização, o ajustamento estrutural em que, uma vez mais, se prometia o fim do túnel para os sofrimentos guineenses. Ele escreve: “A tendência para a regressão económica em África não é apenas o resultado de má gestão interna. É também a prova factual, translúcida e vibrante do falhanço da ajuda internacional como mecanismo de desenvolvimento. Uma realidade reconhecida, mas que não tem sido alterada por conveniência de muitos”.

Neste ambiente geral cabem os problemas estatutários dos agentes coloniais, o uso de expressões como “mufunesa” (uma associação entre o estranho e o sobrenatural para anunciar o advento de um desastre ou o fatalismo de um azar), a corrupção e o arrivismo, o sentimento de que o peso do clã se sobrepõe à vontade individual, o uso do amor ácido em torno de datas ou acontecimentos ícone. A tal propósito, a crónica “Aos mártires do Pindjiquiti” é elucidativa. Há um descrente e um desgraçado sobrevivente, um antigo combatente da liberdade da pátria, Mbunhe, que encontra o refúgio na estátua dedicada aos mártires do Pindjiquiti. O ambiente é de caos, o Pindjiquiti é um estaleiro permanente de obras inacabadas. O monumento é um punho preto estilizado “que qualquer peão menos avisado da história recente do país confundirá com toda uma série de formas”. A prova aprovada de que os guineenses vivem indiferentes a este punho erguido é que ele vive na base do monumento e ninguém o incomoda. O autor observa: “Já ninguém se lembra dos mártires do Pindjiquiti. Agora estamos em democracia. O que conta é quem é que vai ter mais casas ou carros. Mbunhe não tem nem uma coisa nem outra e ainda por cima começaram as chuvas. Nos primeiros dias de Agosto chove sempre torrencialmente e o punho erguido não poderá servir de refúgio senão aos grilos que invadem Bissau”.

São histórias que desvelam até os triunfos que se transformaram em desastres. É o caso da Cicer, a cerveja que os guineenses se orgulhavam: “Os cooperantes gabavam a nossa cerveja, e nós, em coro, dizíamos que era feita a partir de arroz – como tudo na Guiné-Bissau – e tinha uma água de qualidade superior, a do Alto Bandim, onde a fábrica está instalada. Na altura, a Cicer tinha tudo: a melhor oficina do país, o melhor serviço de pessoal, o melhor jardim da cidade, a melhor contabilidade… a Cicer começou a perder influência quando se abriram mais fábricas, até uma de montagem de automóveis Citröen. De repente, já não eram só os produtos da Cicer que nos faziam orgulhosos, era uma série de outras coisas que contribuíram para que a nossa dívida externa passasse de zero a três vezes o produto nacional bruto. Uma dívida também ela revolucionária, já que só há três ou quatro países no mundo que se atreveram a chegar tão alto”. Por vezes é iconoclasta, como quando fala da praça principal dedicada aos heróis nacionais. Ridiculariza os falsos políticos democráticos que não têm substância nem visão. Não tem clemência ao apresentar jovens sonhadores cujas esperanças estão traídas pelo lado mais negro da sociedade de consumo. Bissau aparece suja ou encardida, tudo ao abandono, desapareceu a iluminação, os escroques vivem impunes. O choque cultural tem amplas dimensões, ele estiliza um Chico mulato, de cabelo fininho que cultivava a sua identidade como mulato assumido, deste modo: “Se lhe perguntavam sobre a sua nacionalidade dizia ser guineo-luso, se o interrogavam sobre a sua música preferida, era o afro-new-age e quanto à roupa usava um par de jeans com feitio de calças de bu-bu, com fundinho, feito por um costureiro do Cupelon de Baixo. O seu sonho era abrir um café-concerto no Pilun, zona quente de Bissau, onde os fast-foods de carne de cabra assada, na berma da estrada, abundam. Tinha também decidido introduzir um cocktail de rum de cana-de-açúcar com sumo de mandiple, fruto exótico até em Bissau. Quanto a aperitivos, incluía, entre outros, um pastel feito como o de bacalhau, mas com a variedade local de peixe seco”.

O leitor agora faça o resto, este prodigioso livro “Corte Geral” ainda se pode obter nas livrarias. Carlos Lopes não é só uma figura de proa das Nações Unidas, é um grande escritor da língua portuguesa. Percebe-se o seu desalento, o seu chiste, a sua toada ácida. Homem cultíssimo, sabe muito bem que a Guiné foi a primeira colónia moderna do mundo. Aqui aconteceu uma guerra que levou ao arrasamento do último império colonial e que sufragou a democracia e a liberdade em Portugal.

Nessa Guiné, o comportamento dos combatentes foi heróico, em 1974 ninguém esperava que tantos sonhos fossem levados pela torrente das lamas que acodem na época das chuvas. Sim, é muito importante ler Carlos Lopes para perceber quais são os caminhos, as práticas, os procedimentos que urge corrigir. A Guiné merece mais pelo que ajudou a mudar Portugal.
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 31 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6811: Notas de leitura (139): Contos Mandingas, de Manuel Belchior (Mário Beja Santos)

Vd. último poste da série de 1 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6814: Notas de leitura (140): As elites militares e as guerras de África (Manuel Rebocho)

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Guiné 63/74 - P6817: Os nossos médicos (20): O atentado contra o Cap Mil Med José Joaquim Magalhães de Oliveira, de que eu fui testemunha (Augusto Inácio Ferreira, 1º Cabo Op Cripto CCAV 2482, Fulacunda, 1969/70)








Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > BCAV 2867 / CCAV 2482 (1969/71) >  "Caro Camarada Luis Graça: Tal como prometi aqui vão 2 fotos 'iguais', sendo que uma mostra um circulo, que é o local exacto onde o Capitão Médico Oliveira estava sentado a ler antes do incidente"...

Fotos (e legendas): © Augusto Inácio Ferreira (2010). Direitos reservados


1. Mensagem do Augusto Inácio Ferreira (ou Augusto Ferreira):

Data: 1 de Agosto de 2010 16:08
Assunto: GUINÉ 63/74 - Os nossos médicos - O malogrado Cap José Joaquim Magalhães de Oliveira. (Augusto Inácio Ferreira, 1º Cabo Op Cripto CCAV 2482, Boinas Negras de Fulacunda 1969/70) (*)

Caro Camarada Luis Graça

Um destes dias fui alertado por um camarada que tal como eu pertenceu ao BCAV 2867 e à CCAV 2482, para a existência do teu blogue.
Antes de mais quero deixar aqui o meu reconhecimento pela tua dedicação na elaboração deste blogue. Camaradas como tu merecem-me todo o respeito e admiração, e nós só poderemos estar gratos por ver que NÓS não nos esquecemos de NÓS.

Agora vamos ao que me trouxe aqui.

Ao consultar os registos sobre o BCAV 2867, sou levado a concordar que os mesmos não são famosos.

Chamou-me a atenção um facto ali descrito que continua a envolver algum "mistério" por parte de quem procura dar uma notícia correcta e não possui dados. Espero que ainda vá a tempo de poder dar uma ajuda, e tentar esclarecer este triste acontecimento, de que fui testemunha. Tem a ver com o incidente verificado com o Capitão Médico OLIVEIRA. Assim o referencio, pois era assim que o conhecia. Tudo o que já foi descrito sobre ele "penso" que está correctamente feito. Apenas aqui estou para esclarecer o que é motivo de "mistério" para quem não teve conhecimento dos factos e para que conste como verdadeiro, evitando especulação sobre o caso.

Vou começar por descrever o que nesse mesmo dia anotei no meu diário: (6.9.1969) 


 EVACUADO CAPITÃO-MÉDICO DO BATALHÃO QUE AQUI SE ENCONTRAVA,  MOTIVADO POR ATENTADO DE MORTE. UM FURRIEL PERTENCENTE À CCAV 2483 DE NOVA SINTRA QUE AQUI SE ENCONTRA COM O SEU GRUPO DE COMBATE, DISPAROU SOBRE ELE, QUANDO SE ENCONTRAVA SENTADO NUMA CADEIRA DE BRAÇOS A LER. FORAM DISPARADOS TRÊS TIROS, MAS APENAS UM O ATINGIU NA PERNA DIREITA NA REGIÃO DA COXA. O CASO PARECIA BASTANTE GRAVE.
Isto foi o que escrevi nesse mesmo dia. Agora vou procurar relatar o que se passou.

À data a região de Fulacunda estava envolvida em operações, o  que exigiu o reforço de outras forças além das pertencentes à CCAV 2482, tendo inclusive  motivado a deslocação do COMANDO liderado pelo então Ten Coronel Trinité Rosa.

 Além do pelotão a que pertencia o Fur Moreira, estava a 15ª CCOMANDOS comandada pelo então Major ROBLES. No dia 30.8.69, - (8 dias antes do incidente com o Cap Oliveira), quando os Camaradas pertencentes aos Comandos faziam o percurso entre Fulacunda e o rio onde iriam "tomar" a LDM que os conduziriam a BISSAU (em final de comissão), uma das viaturas UNIMOG accionou uma mina anti-carro. Daí resultou a morte imediata de 5 camaradas, tendo vindo a falecer mais 2 em Bissau passado algum tempo. 

No dia 1.9.69, perto do local onde se dera este incidente,  outro aconteceu. Um Camarada da CCAV 2482 pisou uma mina anti-pessoal. Resultado que todos nós infelizmente conhecemos.

O ambiente não era o mais favorável e o moral de alguns camaradas começava a dar sinais de fraqueza. Tenho relatos impressionantes, mas que não vou relatar. Apenas vou procurar esclarecer o "caso do Furriel Moreira e o Cap Médico Oliveira".

Nessa manhã o Furriel Moreira, "GUIMARÃES" para os seus camaradas, havia estado na Enfermaria (mesmo ao lado estava o Posto Rádio e o Centro Cripto), pequenos edificios mesmo no centro da parada. Segundo relato dos enfermeiros, o Furriel Moreira apresentava um ar doentio (muito amarelo). Segundo os seus camaradas, tinha problemas físicos, e era ajudado com frequência pelos mesmos. 

Naquela manhã (segundo versão dos enfermeiros), relatou isso mesmo ao Capitão-Médico, e após algum diálogo este lhe terá dito: 
- A SUA DOENÇA É FALTA DE MATO!

 O Furriel saiu da enfermaria com um: 
- Então até logo. 

Premeditação para o que vem a seguir?

Ao meio da tarde, estava eu no Centro Cripto quando sou despertado por um tiro ali bem perto, .... seguido de outro ... e mais outro. Foi tudo muito rápido, mas quando soou o terceiro tiro já estava fora do centro. A primeira imagem que tenho é que na minha frente vejo um corpo tombar de bruços, ali a cerca de 40 metros. Corri com alguns camaradas nessa direcção. Verificamos que era o Cap Médico que antes se encontrava sentado numa cadeira de braços a ler. 

O edificio de comando ficava mesmo ao lado das instalações reservadas aos furriéis. Afim de nivelar o terreno havia um muro que se elevava do chão cerca de 50 cm naquele local, fazendo um pequeno passeio de cerca de um metro de largo que circundava todo o edíficio. Era ali que o Cap Médico se encontrava sentado numa cadeira de braços com fundo em lona,  segundo creio. 

O Furriel Moreira "deve" ter feito tiro instintivo e a primeira bala atingiu o solo a pouco mais de 10 metros do local onde se encontrava. O objectivo estaria a cerca de 20/30 metros. A segunda bala atingiu o parapeito do tal muro que foi feito para nivelar o terreno aquando da construção do edifício, e que naquele local teria cerca 80/100 cm de altura. A terceira bala atingiu a perna direita na região da coxa. A bala no local onde entrou, "deve" ter provocado danos graves na zona do "baixo ventre". 

Não houve rajada alguma. Foi tiro a tiro. 

Foi feita uma mensagem a pedir a evacuação, que foi muito rápida. Acompanhei-o sempre desde o ínicio, tal como o Cap Morais até à pista. Durante os preparativos médicos, ainda recordo que foi difícil à enfermeira que o assistiu junto ao Heli, "encontrar" a veia para lhe pôr o soro. Registei estas últimas palavras antes do Heli partir.
-  Ó Morais ... estou a sofrer muito. 

E é com "elas" que termino este relato. TODOS NÓS SOFREMOS MUITO. Que a camaradagem que ainda hoje nos une, sirva para aliviar os traumas porque todos nós passámos.

Camarada Luis Graça.

Eu sou um dos responsáveis por anualmente reunir a CCAV 2482. Estivemos 26 anos sem o fazer, mas enquanto eu por cá andar, nenhum dos meus camaradas será privado desse convívio anual. Todos os anos o faremos no último sábado de Maio. O ano passado (2009) reunimos o BCAV 2867 na Quinta do Paul na ORTIGOSA. 

 Apesar das poucas notícias sobre o BCAV 2867 ainda há registos. Não morremos. Há um site,  "RUMO A FULACUNDA", via GOOGLE, que poderás consultar,  caso não conheças. A semana passada estive a falar com a minha lavadeira (via telefone) para FULACUNDA, ao fim de 40 anos. Uma ansiã com 85 anos. Foi bonito.

Irei (ainda hoje), enviar uma foto de FULACUNDA sobre o edifício de comando onde estava sentado naquela tarde o malogrado Capitão Médico Oliveira.

Com os meus respeitosos cumprimentos

Um forte abraço de amizade

Augusto Inácio Ferreira (**)

Ex-1º Cabo Op  Cripo da CCAV  2482 / BCAV 2867

GUINÉ /FULACUNDA,  1969 / 70

2. Comentário de L.G.:

Obrigado pela tua generosa intervenção, disponibilizando no nosso blogue a versão do teu testemunho. Foste testemunha ocular deste atentado. Mereces todo o nosso crédito. Mesmo de férias, aproveito a circunstância para te convidar a integrar a nossa Tabanca Grande... Do alto do seu poilão podes, com o nosso "megafone", fazer chegar mais longe o teu "toque a reunir" dado à rapaziada do BCAV 2867... Manda-me também duas fotos tuas, que é para poderes ser apresentado, condignamente, aos demais "tabanqueiros"... Um Alfa Bravo. Luis.
________________

Notas de L.G.:




Guiné 63/74 - P6816: Recordações do Hoss (sold Sílvio Abrantes, CCP 121 / BCP 12, 1969/71) (4): A cabra do PIDE de Nova Lamego

1. Mais uma história do Hoss, : Slvio Fagundes de Abrantes (*)

Data: 1 de Agosto de 2010 20:56
Assunto: A cabra do Berguinhas


Antes de mais devo dizer aos nossos interlocutores que foram uns cagados  da maneira como trataram a vossa querida amiga, ou dizendo de outra maneira mais abrasileirada que se confunde cágados com cagados, não sei o que vos chamar, mas  a verdade é que eu sinceramente não fazia isso a um amigo, mas fome é fome, e eu até comi a carne mais horrível que pode existir (ai fome onde andas!)...   ABUTRE!!!

Esta estória faz-me lembrar o cabrito do PIDE de  Nova Lamego. O tipo da PIDE tinha um cabrito de estimação que um dia teve a infeliz, dele, sorte (feliz nossa...), de ir parar ao nosso quartel que era junto à igreja e à administração. Entrar entrou, saír também saíu, só que de outra maneira.

Mata-se o cabrito,  passado pouco tempo o tinhoso entra no quartel aos berros pelo cabrito. O nosso bom Capitão Mira Vaz não sabia o que responder ao PIDE. Sorte a nossa que os abutres em poucos minutos desapareceram com os restos mortais... de identificação. Então vou ter com o Nogueira que estava no bar, conto a situação e só havia uma saída.Tiramos toda a cerveja que estava na arca congeladora, espalmámos o casbrito que fica no fundo da arca, e enchemos esta até ao cimo com loirinhas à espera de melhores dias.

Ninguém vai mandar tirar a cerveja da arca, pensei eu. O meu afoito Capitão Mira Vaz não sabia onde se meter. Primeira pessoa a ser chamada, o Hoss... que jura a pés juntos nada saber.
-  Juro por estes dois,  meu capitão, que a terra há-de comer,  em como não sei de nada.

Tão parvo... Passado pouco tempo aparece um nativo muito aflito que a mulher estava para dar à luz e o bébé não nascia. Por uma questão de respeito não vou escrever como eles falavam. Lá fui eu e o Vicente. Nunca na nossa vida tinha-mos visto tal coisa. Eu sou da aldeia, com muito orgulho, já tinha visto muitos animais parirem e lembrei-me que de vez em quando os filhotes vinham atravessados e era preciso meter a mão lá dentro e colocar cabeça do dito cujo para a saída.

Fez-se  luz. Meto a mão dentro da senhora e ajeitei a cabeça do bébé para a saída, o tipo salta cá para fora sem problema. O pior foi quando eu cortei a umbímia [, cordão umbilical ?]. Não era para cortar à nossa maneira, mas depois da explicação tudo bem. Fomos presenteados com DOIS, DOIS cabritos!... Fui ter com o comandante de pelotão expliquei a situação, para que não pensassem que era o cabrito do PIDE  e o resto para bom entendedor meia palavra basta.

Mas o Sr Mira Vaz não lhe enterrou os dentes. Não tinha tempo para essas coisas banais,  preocupava-se com outras de maior interesse para a carreira militar que tinha pela frente. E assim foi. Ai, FOME,  onde é que andavas, FARTURA  ?

Atenção,  nos Pára-quedistas,  não passávamos fome, às vezes o vago mestre esquecia-se e nós lembrávamos que o dinheiro não era só para eles. Muito se roubava, não digas isso parvo, ainda vais parar à pildra. Eu que fazia a escrita da companhia,  estou proíbido de falar, por estes dois que a terra há-de comer.

 Hoss

__________________

Nota de L.G.:


Guiné 63/74 - P6815: Memórias de um Combatente da Liberdade da Pátria, Carlos Domingos Gomes, Cadogo Pai (2): A elite guineense, nos anos 50



Lisboa > c. 1947 > Subindo o Chiado, Artur Augusto da Silva e Clara Schwarz da Silva... Futuros pais do nosso muito querido Pepito (Carlos Schwarz da Silva).

Artur Silva,  nascido em Cabo Verde, em 1912, viveu os primeiros anos em Farim, na Guiné, e depois em Lisboa onde se licenciou em Direito e conheceu Clara (n. em Lisboa, em 1915). Teve uma vida intelectual intensa enquanto estudante, frequentando as tertúlias literárias da Baixa. Ainda conheceu Fernando Pessoa (que morreu em Novembro de 1935), e privou com intelectuais com o poeta António Botto, o romancista Ferreira de Castro, o músico Luís Freitas Branco, o pintor Eduardo Malta. Esteve de 1939 a 1941 em Angola, como secretário do Governador Geral; de regresso a Portugal exerceu advocacia em Lisboa, Alcobaça e Porto de Mós)..Em 1949, o casal partiria para a Guiné, onde o Artur foi, até 1966, advogado, notário e até substituto do Delegado do Procurador da República. Morreu em Bissau, em 1983.

Por sua vez, Clara Schwarz, de pais judeus (o pai polaco e a mãe russa), licença em letras, e diplomado em volino pelo Conservatório de Música de Lisboa, foi uma notável pedagoga, tendo sido professora, no Liceu Honófrio Barreto, em Bissau, de alguns dos futuros dirigentes e quadros do PAIGC. Membro do nosso blogue, faz em Fevereiro passado a bonita idade de... 95 anos!

Fotos: © Mikael Levin (com a devina vénia...)




Excerto do documento policopiado, "Memórias de Carlos Domingos Gomes"... (ª1 Parte, p.5).


Continuação da publicação das memórias de Cadogo Pai (*)... O documento, de 26 páginas, tem por título: Memória de Carlos Domingos Gomes, Combatente da Liberdade da Pátria: Registos da História da Mobilização e Luta da Libertação Nacional. Recordar Guiledje, Simposium Internacional, Bissau, 1 a 7 de Março de 2008.

O texto, que foi entregue em Março de 2008, em Bissau, pelo próprio autor,está dividido em duas partes, com numeração autónoma: 1ª parte (9 pp.): Memórias de Carlos Domingos Gomes, Cadogo Pai, Galardoado com a Medalha de Combatente da Liberdade da Pátria: Registos da História da Luta de Libertação Nacional. Guiledje, Simpósium Internacional, Bissau, 1 a 7 de Março de 2008; a II parte (17 pp): Simpósium Internacional, História da Mobilização da Luta da Libertação Nacional: Memórias de Carlos Domingos Gomes, Cadogo Pai.

No poste anterior, vamos encontrá-lo em Bolama, em1951, como encarregado de uma empresa francesa, a SCOA, a mesma onde trabalharia, até 1956, Elisée Turpin, um dos históricos do PAIGC. Em Bolama, convive de muito perto com Aristides Pereira, outro histórico do PAIGC.




Na pág. 5, Parte I, o autor refere o nome de diversas personalidades que, ainda antes da chegada de Amílcar Cabral, foram influentes na vida pública, social, cívica e cultural, da cidade de Bissau, devendo ser tidas em conta no estudo da génese do nacionalismo guineense... Entre esses nomes (vd. recorte acima, ponto 13), o autor cita os dos pais do nosso amigo Pepito, o Dr. Artur Augusto Silva [, 1912-1983, ] "advogado, defensor dos arguidos políticos", e a Dra. Clara Schwarz da Silva, "esposa do Dr. Artur Silva, mãe dos estudantes", professora do Liceu Honório Barreto, e hoje membro da nossa Tabanca Grande, com a notável idade de... 95 anos, feitos em Fevereiro passado!

O autor justifica a menção destes e doutros nomes influentes, nestes termos: "Antes de se falar do camarada Amílcar Cabral [, que regressa à Guiné, em 1952, vinte anos depois de ter partido para Cabo Verde, terra de seus pais], surgiu o movimento da Associação Recreativa, Cultural e Desportiva, que encobria motivos políticos. Daí que tem de se falar das seguintes, não do movimento, que desempenharam um papel importante na viragem histórica dos pacíficos filhos da Guiné-Bissau" (p. 5, 1ª parte)... Foram homens (e mulheres) que, nas suas diferentes actividades, públicas e profissionais, "souberam incutir discretamente nos guineenses [...] a voz da revolta"...

Não sei exactamente a que associação Cadogo Pai se refere. Sabemos que, na 1ª metade da década de 1950, Amílcar Cabral  tinha redigido os estatutos de um clube recreativo, desportivo e cultural, aberto a todos os guineenses,, independentemenmte da sua condição . Ao que parece, os estatutos foram "chumbados" pelas as autoridades portugueses, sob o pretexto de que a maioria dos signatários não era portadora de bilhete de identidade. Em 1955, o governador Melo e Alvim obriga Cabral a deixar a Guiné, embora lhe permita voltar uma vez por ano, por razões familiares.

Cadogo Pai refere-s à importância que tiveram, no despertar da consciência nacionalista dos guineenses, os "torneios de futebol" que se realizavam nos países limítrofes (Senegal, Gânbia, Guiné-Conacri). "Apareciam médicos, advogados, jornalistas"... Os guineenses olhavam para a sua terra e apercebiam-se do atraso em que se vivia...

Foi no imediato após-guerra, sob o consulado de Sarmento Rodrigues, que Bissau conhece um certo progresso...Surgem "os primeiros agrupamentos sociais da elite guineense, o Club Cila, o Ciem [...], depois o agrupamento desportivo, recreativo e cutural"... Tudo isto "antes de Amílcar Cabral" (p. 6, 1ª Parte).

Apareceram também clubes de futebol como o Sport Lisboa e Benfica. "por iniciativa de alguns nomes conhecidos da sociedade portuguesa, Gama das Construções [Gama] Lda,  Pimenta do Cadastro, Casqueiro, etc." e o Sporting Club de Bissau, "sob a égide de Eugénio Paralta, irmão Zé Paralta, Chico Correia"... 

A UDIB já existia, diz-nos Cadogo Pai. No entanto, o desenvolvimento do futebol, "trouxe mais um bafo de rivalidades, olhando a situação dos jogadores cabo-verdianos , importados pelo Benfica, que, para os atrair,  os adeptos bem colocados, tinham que lhes oferecere bons empreegos. Bons rapazes, no fundo, Antero, os sinais [?] Tcheca, Marcelino Ferreira (Tchalino), etc." (1ª Parte, p. 6).

[ Revisão / fixação  de texto/ excertos / digitalizações / título: L.G.]

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Nota de L.G.:

domingo, 1 de agosto de 2010

Guiné 63/74 - P6814: Notas de leitura (140): As elites militares e as guerras de África (Manuel Rebocho)


1. O nosso Camarada Manuel Godinho Rebocho, ex-2º Sargento Pára-Quedista da CCP123/BCP12, Bissalanca, 1972/74, (hoje Sargento-Mor na reserva), cedeu ao nosso blogue a publicação do seu livro “AS ELITES MILITARES E AS GUERRAS D’ÁFRICA”, o que muito agradecemos em nome dos editores e demais camaradas.
A publicação iniciar-se-á, no presente poste, com o currículo pessoal, os agradecimentos, a constituição do livro, nota do autor e prefácio:

Currículo Pessoal
Manuel Godinho Rebocho nasceu a 4 de Dezembro de 1949, numa aldeia próxima de Évora. Ingressou como voluntário nas Tropas Pára-Quedistas aos 18 anos. Efectuou o antigo 5.º ano dos Liceus durante a sua comissão de serviço na Guiné, entre 1972 e 1974. Preparou-se para os exames do antigo 7.º ano dos Liceus durante a sua prisão, resultante dos acontecimentos de 25 de Novembro de 1975, de cujos actos foi judicialmente ilibado.
Por ordem do então Chefe do Estado-Maior da Força Aérea permaneceu em residência fixa até 1982, o que o impediu de ingressar na Academia Militar, em 1976. Como alternativa à Academia, e com a devida autorização judicial, ingressou na Universidade de Évora, em 1976.
É Eng.º Agrónomo, Mestre em Economia Agrícola e Doutorado em Sociologia (ramo Sociologia da Paz e dos Conflitos). É Sargento-Mor Pára-Quedista, na reserva, à qual passou por limite de tempo no posto (oito anos).

AS ELITES MILITARES
E AS GUERRAS D’ÁFRICA
Aos que, na Guerra de África,
Deram parte de si à Pátria
E a Pátria nada lhe deu
AGRADECIMENTOS
Quero agradecer particularmente à minha mulher, Maria Jacinta, e aos meus filhos Cláudia Leonor e Nuno Miguel, o apoio e incentivo que me expressaram.
À Professora Doutora Maria José Stock, agradeço todo o apoio que me concedeu na estruturação e leitura do texto. Creio mesmo que, sem o seu apoio, não teria alcançado o meu objectivo, nem a qualidade da obra atingiria o patamar que julgo ter conseguido.
À Instituição Militar, particularmente ao Exército, agradeço a permissão para consultar os múltiplos arquivos militares, onde obtive a informação que sustenta a obra; sem essa consulta seria absolutamente impossível efectuar a investigação com a objectividade conseguida.

O livro tem a seguinte estrutura e sequência de anexos:

Título
Dedicatória
Índice
Prefácio (páginas 1 a 6)
I Capítulo (páginas 7 a 82)
II Capítulo (páginas 83 a 240)
III Capítulo - desdobrado em 4 anexos - (páginas 241 a 428)
III I (páginas 241 a 341)
III II (páginas 342 a 369)
III III (páginas 370 a 400)
III IV (páginas 400 a 428)
IV Capítulo (páginas 429 a 506)
V Capítulo (páginas 507 a 532)
VI Posfácio (páginas 533 a 548)
VII Bibliografia (páginas 549 a 596)
Currículo Pessoal

NOTA DO AUTOR
O trabalho de investigação que desenvolvi, ao longo de vários anos, cujo resultado final constitui a presente obra, teve como fontes de informação fundamentais a análise que efectuei sobre diversos documentos militares, a minha própria experiência e um vasto número de entrevistas a Oficiais do Quadro Permanente.
A investigação científica que realizei provou que, no decurso da Guerra de África, os Oficiais do Quadro Permanente foram-se progressivamente afastando do Comando Operacional, para se instalarem nas posições de gestão militar. Desta situação, inusitada, resultaria terem sido os Milicianos quem, de facto, comandou as Unidades de Combate, nos últimos e mais gravosos anos da Guerra.
Reconhecendo esta situação e dado não ter ouvido, na dimensão adequada, os graduados milicianos, nem lhes ter dado o destaque que justamente merecem, entendi, para corrigir este lapso, convidar um miliciano para prefaciar a presente obra, para além de ter igualmente convidado um miliciano de cada uma das suas classes: Capitães, Alferes e Furriéis, para escreverem livremente um depoimento sob a forma de posfácio, enfatizando particularmente a sua experiência enquanto combatentes. Presto, assim, o meu total reconhecimento pelo trabalho desenvolvido pelos Milicianos no seu todo, ao longo da Guerra de África.
PREFÁCIO
O dado fulcral, que faz da obra de Manuel Rebocho um caso singular, escorado basicamente em procedimentos metodológicos da “nova” sociologia, a observação-acção, ou melhor a observação empenhada, como dela disse Adriano Moreira durante a discussão académica, é o ponto de partida do investigador: foi a sua participação e envolvimento directo na guerra que, anos depois, viria a despoletar o seu interesse sociológico no tema, a ponto de a estudar e de apresentar a escrutínio doutoral os resultados a que chegou.
Não espanta, por isso, que, uma vez e muitas, se pressinta alguma dificuldade de “afastamento” e “isenção” do autor face ao real que analisa. Mas isso não menoriza ou empobrece a qualidade científica do trabalho, antes o valoriza: afinal foi feito por quem, com instrumentos da ciência social, se debruça sobre o que viveu e sofreu. Este trabalho, no essencial da obra, deve ser, por isso, entendido como portador de uma parcela autobiográfica, como uma “história de vida”, como sublinhou Maria José Stock, orientadora do novel Doutor.
Se é verdade que a Guerra Colonial demorou alguns anos a tornar-se tema ficcional, já hoje há obras bastantes, particularmente testemunhos pessoais mais ou menos ficcionados, que permitem uma visão global sobre a vida no teatro de operações. O mesmo não pode dizer-se quanto a estudos académicos sobre o interior da instituição que fez a guerra, as Forças Armadas. Este trabalho de Manuel Rebocho vem iluminar zonas das nossas últimas Campanhas em África que até agora se mantinham na sombra.
A radical mudança política operada em Portugal em 1974, protagonizada, aliás, pelas Forças Armadas que triunfando sobre a ditadura abriram, “ipso facto”, caminho à sua “derrota” na Guerra Colonial, não propiciou, por isso, condições facilitadoras do estudo do processo “Guerra Colonial”.
Ao rastrear os “curricula” e a formação dos oficiais, particularmente após 1959 – ano da criação da Academia Militar –, quando se tornara imparável e acelerado o movimento independentista dos territórios africanos administrados por potências coloniais e, face à intransigente política “ultramarina” de Salazar, a guerra era inevitável. Manuel Rebocho concluiu que a Academia Militar passou então a preparar a elite não para o comando operacional, mas sim para funções técnicas e administrativas.
Em vez de comandantes operacionais, os militares do quadro permanente, na sua esmagadora maioria e nos mais diversos escalões, tornaram-se, progressivamente, ao longo dos treze anos que a guerra durou, “administradores” da logística e gestores da estratégia dos três teatros de operações.
A guerra no terreno, na frente de combate, assente numa quadrícula à base da companhia e realizada quotidianamente a nível de meia companhia ou, mesmo, de pelotão, essa, passou a ser feita quase exclusivamente, por capitães e alferes milicianos que enquadravam furriéis milicianos e praças do serviço militar obrigatório – essa foi, de facto, a “guerra” em que eu combati, no norte de Moçambique, e foi a conclusão generalizada a que chegou Manuel Rebocho. Chamou-lhe, ele, a milicianização da guerra.
Sem a triagem quantitativa que este estudo nos aporta, já outros, antes, tinham chamado à atenção para este aspecto da gestão cirúrgica do pessoal; Diniz de Almeida refere que “acentuadas diferenças de colocação dos oficiais, quer do Q. P. (Quadro Permanente) quer do Q. C. (Quadro de Complemento), determinavam ainda a vida particular e profissional dos militares originando, assim, um novo quadro de injustiça a corrigir. Deste modo, em função das mais diversas motivações, eram normalmente colocados em funções burocráticas ou em quartéis de cidade, os oficiais afectos ao regime. Quanto aos restantes, menos identificados com o regime, aguardavam-nos, regra geral, os postos longínquos e incómodos do mato.”
Após dez anos de guerra, no dia-a-dia, os pouquíssimos militares profissionais (Quadro Permanente e Serviço Geral) que estavam na frente de combate “nunca” saíam para o mato, ficando no “arame farpado” em funções de comando, colheita e coordenação de informações, planeamento de operações e apoio logístico; na picada e no mato andavam os capitães, alferes e furriéis milicianos e os cabos e soldados do serviço militar obrigatório. A estes juntavam-se, no mato, mais ou menos regularmente segundo as dificuldades do teatro de operações, companhias de comandos, de fuzileiros e de pára-quedistas, nas quais, aí sim, os soldados eram enquadrados por sargentos e oficiais do quadro permanente.
Foi essa realidade vivida na “frente” que Manuel Rebocho veio, agora, com números “arrasadores”, constatar: no Leste de Angola, de 1971 a 1974, das 68 companhias só 3 tinham capitães oriundos da Academia Militar; em Moçambique, em 1973, das 101 companhias apenas 1 era comandada por um capitão do Quadro Especial de Oficiais, e esse estava lá “por castigo”!
Reflexos dessa forma de administrar sabiamente “os riscos”, colhem-se, ainda hoje, quando se analisam as listagens de sócios da Associação dos Deficientes das Forças Armadas: o padrão médio indica-nos que cerca de 92% eram militares do Serviço Militar Obrigatório.
A gestão do pessoal afecto à guerra, feita pelas chefias militares, em seu benefício e salvaguarda, foi possível, sem escrutínio do poder político, porque o regime não permitia que, sequer, se questionasse a sua existência, nem mesmo na campanha eleitoral da “primavera marcelista”. O Ministro do Ultramar, Silva Cunha, era muito claro quanto a isso, dizendo que “o Governo não ia dizer (...) às Forças Armadas como combater” porque “a questão militar estava à parte do Governo, e a responsabilidade cabia ao Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas”.
Ao considerar a “Guerra do Ultramar” como desígnio patriótico, inevitável e inegociável, porque culpa do “outro” e dos ventos da história, a ditadura remetia, implicitamente o seu êxito ou inêxito para a esfera militar, tanto mais que garantia na Metrópole, na retaguarda, as condições ideais para o êxito das nossas tropas, ao não permitir que a opinião pública a contestasse, a condenasse. Tal situação até dispensou, em última análise, o poder político de apetrechar as frentes com condições logísticas e de material de combate capazes de potenciar as hipóteses de êxito militar.
Até ao fim da Guerra, uma vara ou uma cana de bambu a que se atava uma ponteira de aço afiada, era o nosso detector de minas – o que explica o número “indecoroso” de amputados e de cegos que a guerra produziu.
Por isso, às vezes, ainda acordo a meio da noite, quando não devia, no estertor de um pesadelo.
Manuel Joaquim Calhau Branco
Licenciado e Mestre em História
Ex-Alferes Miliciano; deficiente das Forças Armadas.
Textos, fotos e legendas: © Manuel Rebocho (2010). Direitos reservados
(continua)

2. Nota de Luís Graça, editor principal do blogue:

De férias, esperando um Agosto calmo como as águas da enseada da minha Praia do Paimogo ou suave como a brisa que sopra no planalto das Cesaredas, nos pedrogosos caminhos calcorreados por Pedro e Inês entre Moledo e Serra d'El-Rei, protagonistas da mais trágica paixão de amor da nossa história,  sou surprendido com o início de uma mais uma polémica bloguística, em que dois antigos camaradas da Guiné (o Manuel Rebocho e o Morais da Silva) já estão a ser utilizados, de novo,  como armas de arremesso em guerras que não são as do nosso blogue e para eventuais ajustes de contas que não são da nossa conta.

Comecemos por esclarecer a decisão do editor de serviço, Eduardo Magalhães Ribeiro (EMR), ao publicar este poste. Diz ele que que o nosso camarada Manuel Rebocho, membro de longa data da nossa Tabanca Grande, "cedeu ao nosso blogue a publicação do seu livro 'Elites Militares e a Guerra de África', o que muito agradecemnos em nome dos editores e demais camaradas"... E logo a seguir escreve: "A publicação iniciar-se-á, no presente poste, com o currículo pessoal, os agradecimentos, a constituição do livro, nota do autor e prefácio" (...).

Acontece que eu não tenho conhecimento da mensagem do Manuel Rebocho (que pode ter sido enviada por mail apenas para a caixa do correio do EMR) e, portanto, não posso avaliar os termos e as comdições em que ele autoriza a (re)publicação do seu livro... Como eu sou, legalmente, o responsável do blogue, e esta alegada cedência de direitos de autor tem implicações legais, tenho que esclarecer algumas questões prévias: a) o detentor dos direitos de publicação não é (ou não é apenas) o Manuel Godinho Rebocho: b) o livro foi publicado pela Editora Roma, que tem direitos legais sobre a obra; c) sem uma autorização expressa, por escrito, da Editora Roma, não podemos reproduzir, no nosso blogue, a obra que, de resto,  tem mais de 500 páginas (com anexos).

Por outro lado, por muita estima que eu tenha pelo camarada Manuel Rebocho (e meu confrade da academia) (como tenho por todos os membros deste blogue, meus camaradas da Guiné), não posso compromerter-me a publicar a obra na "íntegra"... Não faz sentido, por várias razões: a) o nosso blogue publica, de preferência, inéditos (o que não é o caso); b) o livro é um trabalho académico, resulta de uma tese de doutoramento em sociologia, a parte teórico-metodológica (Cap I, pp. 45-85) só pode interessar uma público mais restrito; c) Apenas o Cap III (A guerra de África e o desempenho das elites militares, pp. 220-375) tem mais directamente a ver com o 'core business' do nosso blogue; d) Tal não quer dizer que o Cap II (A formação base das elites militares, pp. 87-213) não seja importante para o debate oficiais QP/Milicianos; e) Quanto ao Cap IV (As elites militares no pós-marcelismo, pp. 375-440), é matéria que extravasa, em muito, o âmbito do nosso blogue; f) Por fim, e não menos, importante a publicação integral do livro "Elites Militares e a Guerra de África"  teria um efeito de "Caixa de Pandora": de futuro, ficaríamos comprometidos a reproduzir, no blogue, todos os livros de todos os nossos camaradas, escritores, o que não me parece razoável e, sobretudo, significaria a morte (já tantas vezes anunciada...) do nosso blogue que deve ser de todos e para todos...

O livro do nosso camarada Manuel Rebocho pode e deve merecer um lugar de destaque na literatura da guerra colonial, no domínio das obras de ensaio, de investigação académica ou outra.  Como aliás, já teve, na devida altura, na sessão de lançamento do livro. Eu próprio me comprometi a fazer uma recensão crítica do livro, prometida para as leituras de férias... Terei então a oportunidade, agora em Agosto,.  de usar excertos, mais extensos, da obra, em nosso poder, em suporte digital... A publicação, não das 500 páginas, mas de algumas das partes mais significativas da obra, terá que ser negociada e acordada  por mim, com o autor (e com o EDITOR!!!, uma vez que não se trata de uma edição de autor).

Falei com o EMR, também a caminho de férias, na Nazaré ("onde vai pôr ao sol o bacalhau"), procurando esclarecer alguns destes pontos... Ele próprio já me tinha tentado contactar, em vão, para me dar conta desta oferta, generosa, do nosso camarada,  e da sua iniciativa (dele, EMR), algo prematura, de "iniciar a publicação de uma obra", correndo (sem se dar conta) do risco de clara violação da lei sobre proprieddae intelectual. Fê-lo, como sempre, com a melhor das intenções de assegurar o pluralismo do blogue e de colmatar alguma falta de materiais nesta altura do ano...

Com votos de boa continuação de férias para os nossos leitores, colaboradores e editores. Cuidado com o stresse térmico! Luís Graça (Lourinhã, 1 de Agosto de 2010, 16h30).

Adenda (2 de Agosto de 2010, 17h):

O EMR acabou de telefonar da Nazaré (onde fazer 15 dias de férias) a explicar as circunstâncias em que se encontrou, em Évora, almoçou com ele e ele teve a gentileza de lhe oferecer um CD com o conteúdo do livro... Não terá posto quaisquer exigências ou pedido contrapartidas (, publicitárias ou outras): "Aqui tens o livro em suporte digital, utiliza-o como quiseres, no blogue"... O EMR agiu, de motu proprio, com a melhor das intenções, mas esquecendo que um livro  é um "produto comercial" e que o autor, quando edita um livro através de uma editora comercial (ou pulica um simples artigo numa publicação periódica, jornal ou revista) , "vende ou cede os seus direitos de autor"...

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Notas de M.R.:
Vd. postes relacionados desta série em:

A investigação desenvolvida e necessária para redigir a presente obra nunca seria possível sem que um elevado número de pessoas e instituições me tivessem concedido o seu apoio. Os dados estão dispersos, uns disponíveis em suporte de papel, outros constando apenas da memória de quem os viveu, deles ainda se recorda e se disponibilizou para os relatar. A todas estas pessoas e instituições, sem qualquer excepção, expresso o meu mais profundo agradecimento.