segunda-feira, 16 de abril de 2012

Guiné 63/74 - P9751: FAP (67): Os meus STRELAs. Factos e opiniões. (António Martins Matos)

1. O nosso Camarada António Martins de Matos (ex-Ten Pilav, BA 12, Bissalanca, 1972/74, hoje Ten Gen Pilav Res), enviou-nos em 5 de Abril a seguinte mensagem. 

Caros amigos 

A revista Mais Alto publicou nos seus números 392 e 393 dois artigos sobre os mísseis STRELA na Guiné e Moçambique. 

Por saber que dentro de 50 ou 100 anos esses textos serão tidos pelos “historiadores” da época como a “verdade” do que efectivamente aconteceu (ou não fossem eles publicados em revista oficial) e porque esses textos contêm falhas, lacunas, omissões, testemunhos de quem nem sequer passou pela Guiné, ou tendo por lá passado não esteve minimamente envolvido no tema, apenas repetindo o que ouviu contar..., por tudo isto.... resolvi escrever o que vivi desde o seu aparecimento em 20MAR73 até 10FEV74, data em que regressei à Metrópole (era assim que então chamávamos a este cantinho à beira mar plantado). 

Refiro apenas o que aconteceu “in loco” durante o período, quanto a dados referentes a decisões de Estado Maior em Lisboa, não confirmo nem desminto, não estava lá para saber o que discutiram ou decidiram, se é que decidiram alguma coisa, já que nunca tivemos qualquer informação do que se passaria nas altas esferas. 

Alguns dos acontecimentos já serão do conhecimento público, inclusive descritos nesta tertúlia, outros nunca terão sido revelados, as minhas desculpas se repito algo que já foi dito é apenas para encandear os acontecimentos numa sequência lógica. 

Um último reparo, em devido tempo e por não concordar com o que foi publicado, escrevi (por duas vezes) ao Director da revista Mais Alto, referindo as falhas do artigo e oferecendo-me para dar a minha modesta contribuição no sentido de dar um maior rigor ao documento... 

Não obtive qualquer reposta, pequenina que fosse. 


Os meus STRELAs 
Factos e opiniões 

No início de 1973 havia alguns rumores que a guerra se iria intensificar, que o PAIGC iria passar a dispor de armas mais sofisticadas, entre elas mísseis terra-ar,…. tão só informações semelhantes a tantas outras, nada de palpável que justificasse pela parte da Força Aérea (FAP) uma conduta diferente do até aí exercido. 

A FAP voava em todo o território da Guiné sem qualquer restrição, passávamos horas a sobrevoar o que “outros” chamavam de “áreas libertadas”, em busca de alvos camuflados debaixo do arvoredo, em voos a baixa altitude e baixa velocidade e, apesar de estarmos ao alcance de qualquer arma ligeira, sempre sem sermos incomodados. 

Ao contrário do apregoado por alguns nossos amigos, não havia (nunca houve) qualquer tabanca libertada e visível do ar, a pouca população controlada pelo PAIGC limitava-se a viver escondida na mata, algumas áreas cultivadas eram o único vestígio da sua presença. 

A área que me tinha sido atribuída para patrulhamento e identificação de eventuais alvos era a zona norte da Guiné, fiz inúmeros voos de DO-27 sobre o Morés e a Caboiana, às voltas e mais voltas à procura das tais “áreas libertadas”, nunca tive qualquer problema. 

A pergunta que desde logo se impõe..., se chegávamos a voar a cerca de 50 metros da copa das árvores, porque razão não nos alvejavam? 

Tínhamos uma regra que, pelos vistos, o PAIGC acatava, se disparassem um tiro contra uma aeronave não demorava mais de vinte minutos até essa área ser completamente bombardeada. 

Era assim em toda a Guiné, fosse no Choquemone, Morés, Caboiana ou Cantanhês. 

A 20Março73 uma parelha de Fiat G-91 que efectuava o patrulhamento ao longo da fronteira norte foi alvejada por algo que os pilotos (Tcor Brito+Ten Pessoa) não conseguiram identificar, tampouco souberam de onde tinha partido o disparo, apenas um rasto de fumo no ar, o assunto acabou por ser esquecido. 

Dois dias depois o Furriel M, pilotando um DO-27 e com a missão de dar o apoio semanal aos quartéis do sector a norte do rio Cacheu, foi alvejado por algo que identificou como tendo sido um disparo de RPG. 

De imediato informou as Operações da BA-12 do sucedido, tendo estas decidido enviar para o local a parelha de alerta dos Fiat G-91. 

Esta parelha era composta por mim e pelo Ten M, os nossos aviões armados com foguetes e metralhadoras. 

Chegados ao local e após uma troca de informações via rádio com o piloto do DO-27, logo se tornou evidente que o disparo não podia ter sido de RPG, tinha sido efectuado da orla da mata e, a acreditar no reporte, o projéctil tinha percorrido uma distancia superior a 1000 metros. 

Decidimos ir disparando alguns foguetes e metralhadoras ao longo dessa orla de mata e na direcção Norte até que, junto da fronteira, fomos subitamente surpreendidos por reacção inimiga com dois disparos bem diferentes dos habituais, dois traços de fumo branco acabaram por passar perto dos nossos aviões. 

Com as munições entretanto esgotadas mas sentindo que havia necessidade de uma maior reacção, solicitámos que Bissau enviasse ao local uma segunda parelha de Fiat´s. 

Apenas um avião acabou por chegar em reforço, pilotado pelo Cap PF. 

Este piloto fez alguns disparos na direcção por nós indicada até que, quando efectuava a recuperação de um passe de metralhamento, nos apercebemos de um novo disparo, algo descrevia uma trajectória em direcção ao Fiat G-91. 

Tornou-se desde logo evidente que o “projéctil” tinha uma trajectória curva, como se procurasse perseguir o avião, só não embatendo na aeronave pela manobra de recurso in extremis efectuada pelo piloto. 

Ainda assim e como fosse sentido um estremecimento fora do normal, o piloto ficou com a ideia de ter sido atingido, regressando a Bissau com a maior das cautelas. 

Já aterrado verificou-se não ter havido qualquer estrago, concluímos que o estremecimento da aeronave teria sido provocado pela velocidade e respectiva “onda de choque” do foguete. 

Desta missão concluímos dois dados de alguma importância, o projéctil seguia em busca do alvo, corrigindo a sua trajectória no ar e a sua velocidade era superior à do som. 

Este terá sido o momento em que, a serem aceites as informações dos pilotos e recordando os rumores de que novo armamento do PAIGC estaria a chegar, tudo poderia ter sido diferente. 

Infelizmente as chefias da altura não aceitaram estas conclusões, insistindo na teoria absurda de um simples “foguete”, um RPG mais potente, com maior alcance mas sem ser direccionável. 

Em 25Março73 o Ten Pessoa foi abatido nas imediações do Guileje. (G-91 nº5413) 

A guerra tinha-se intensificado e era evidente que o apoio aos quartéis com metralhadoras e foguetes já não surtia o efeito desejado, necessitávamos de uma melhoria imediata no armamento, nada de exorbitante, apenas a substituição das metralhadoras 12,7 por canhões de 20 ou30milímetros. 
Enquanto os nossos requisitos não eram atendidos tínhamos encontrado uma solução à portuguesa, os dois pilotos de alerta passavam a dispor de quatro aviões preparados para saírem em 10 minutos, dois na versão normal, foguetes e depósitos de combustível nas asas, e dois em que os depósitos exteriores de combustível e os foguetes eram substituídos por bombas, reduzia-se o tempo em voo de 1:30 para :50 minutos mas aumentava-se o poder de fogo. 

Esses quatro aviões estavam sempre completamente inspeccionados, armados e prontos a descolar, os mecânicos tinham-nos preparado, o piloto só tinha que entrar e pôr em marcha. 

Desta maneira, em função da ameaça esperada e partindo do pressuposto de que o pedido era claro e preciso, os pilotos escolhiam quais os aviões a voar, com a configuração mais adequada.
Em casos omissos ou pouco claros, um dos pilotos seguia no avião com maior autonomia, avaliava a situação e, via rádio, dizia qual o tipo de aeronave que o segundo piloto deveria utilizar. 

O segundo avião chegava à área cerca de 10 minutos depois e podia largar de imediato o seu armamento, a sua menor autonomia era compensada pelo facto de todas as ambiguidades terem entretanto sido resolvidas pelo seu parceiro. 

Naquele dia o pedido do Guileje não era claro, apenas referiam que tinham sido alvejados, não se sabia de onde, nem com que arma, descolou um piloto no avião de maior autonomia, o outro ficou a aguardar para saber qual o avião utilizar. 

À chegada ao Guileje o primeiro piloto contactou o quartel mas nunca chegou a transmitir para Bissalanca o resultado da sua avaliação. 

De inicio ficou a dúvida se o avião se teria despenhado devido a uma eventual avaria ou se teria sido abatido, já que se sabia da existência de antiaéreas posicionadas no território vizinho, mesmo junto à fronteira. 

Durante o resto do dia foram feitos vários voos na região, não houve qualquer reacção IN, a localizaçãodo do piloto ocorreu já ao fim da tarde, razão pela qual a operação de resgate só veio a acontecer na manhã seguinte. 

No dia seguinte aconteceu um facto curioso, uma parelha de T-6 (Furriéis M e F) que patrulhavam a área mais a norte viu-se de repente alvo de alguns disparos da “tal arma”, os disparos feitos de frente para as aeronaves. 

Não intimidado com estes disparos, o Fur F largou todos os seus foguetes no local de onde tinham partido os disparos inimigos, causando eventualmente as primeiras baixas nas equipas Strela. 

Um dos dados que referiu à posteriori foi que “o foguete” era de cor vermelha! 

Em 28Março73 foi abatido o Tcor Almeida Brito (G-91 nº5419) 

Tendo sido recebida a informação de que Nino Vieira se estaria a deslocar numa picada junto à fronteira Sul, foi a razão para a saída imediata de uma parelha de Fiat G-91 (Tcor Brito+Cap PF). 

Os aviões percorreram em voo baixo a referida picada, nada encontraram, regressaram pelo mesmo percurso, o número 1 foi abatido, o seu avião explodiu em pleno voo, um segundo disparo em direcção ao número 2 falhou o alvo. 

Mais tarde concluiu-se que a “arma” teria sido disparada por detrás e teria entrado no escape do avião, mais dois dados a juntar à informação sobre a nova arma, ... precisão e velocidade. 

Escusado será relembrar que a morte do Tcor Brito, foi um rude golpe no moral dos pilotos, para além de ser o piloto mais experiente na Guiné, era igualmente o nosso Comandante. 

Outro factor que nos afectou negativamente foi a decisão de não se tentar recuperar o seu corpo, os pára-quedistas estavam desde logo prontos a seguir para a zona mas, como o General Spínola de momento não estava em Bissau (estaria em Bolama) , o Brigadeiro que o substituía limitou-se a dizer “aguardemos pela chegada do nosso General”. 

Tal decisão valeu-lhe uns “mimos” em português vernáculo proferidos pelos presentes, a excelência corou mas não reagiu, nada se alterou. 

Quando mais tarde o Gen Spínola chegou à base e perguntou porque não se tinha saído para a missão já era demasiado tarde, a noite a chegar. 

Na manhã seguinte aconteceu algo inexplicável, foi decidido nada decidir, assim o corpo do Tcor Brito ficou uns vinte anos abandonado nas matas da Guiné. 

Um mau exemplo destruidor do moral dos presentes estava ali, para quem quisesse ver, se não se recuperava o corpo de um Tenente Coronel, Comandante do Grupo Operacional, muito menos vontade haveria para eventualmente recuperar o dos Tenentes, Alferes, Furriéis, ...

Entretanto continuávamos a tentar descobrir que arma era aquela, várias reuniões tiveram lugar a fim de se tentar compilar a informação até aí encontrada e que era escassa: 

Supersónico, alcance 1000 metros, pintado de vermelho. 

A grande dúvida continuava a ser o descobrir se o foguete era dirigível ou não, os pilotos a dizerem que sim, as chefias que não. 

Alguém estabeleceu a primeira “directiva”, passam a voar acima de 1000 metros, nessa altitude não há qualquer problema. 

Dito e feito. 

Em 06Abril73 foram abatidos o Fur Baltazar e o Maj Mantovani, tendo igualmente desaparecido o Fur. Carvalho. 

Não se soube como o Fur Baltazar foi atingido, transportava alguns passageiros, o seu avião já foi encontrado destruído no meio da mata. 

No caso do Fur Carvalho tampouco se soube se foi abatido, crê-se que sim, mas o seu avião nunca foi encontrado, com ele desapareceram igualmente os seus passageiros. 

Já o Maj Mantovani foi abatido à vista de todos, voava entre Bigene e Guidage e acima dos 1000 metros na suposta área de segurança, um “foguete” saiu da mata, apontou ao seu avião, rapidamente percorreu mais de 2000 metros e fê-lo explodir. 

Nessa tarde os pára-quedistas trouxeram o que era suposto ser os restos do disparo de um “foguete”. 

Não foi preciso muito para que as explicações das chefias caíssem por terra, estava ali à vista de todos que as alhetas dianteiras do “foguete” tinham movimento, mexiam!!!!!! 

Agora já não havia dúvidas, a arma era um míssil com sistema de direcção autónomo. 

No dia seguinte ocorreram vários acontecimentos dignos de realce: 

- Um piloto de Fiat G-91 recusou-se a voltar a voar. 

Esta recusa associada às recentes baixas tornaram a situação alarmante, restavam apenas 5 pilotos de G-91 disponíveis, 2 Coronéis (os Comandantes da Zona Aérea e da Base), 1 Major (Oficial de Operações, 1 Capitão (Comandante de Esquadra) e 1 Tenente. 

- Um piloto de AL-III arranjou uma maneira simples de acabar a sua comissão de serviço, dando um tiro numa perna. 

- Alguns pilotos recusaram-se a voar enquanto não lhes fosse explicado que arma era aquela.

Estavam os acontecimentos neste estado quando de súbito e sem que ninguém o esperasse, apareceu nas Operações do GO-121 um documento de origem americana com a T.O (Technical Order) do míssil soviético SA-7 GRAIL, designado com o código NATO de “STRELA”. 

Pelo documento constatamos que esta arma tinha sido introduzida há pouco tempo na guerra do Vietnam, as forças americanas tinham sofrido inúmeras baixas enquanto não tinham identificado o míssil, o documento continha todas as informações necessárias para o seu estudo e como se deveriam estabelecer as respectivas medidas de protecção. 

Das suas características sobressaía o alcance, 3,5 quilómetros, a altitude em que era efectivo, de 15 a 1.500 metros, velocidade 1,4 superior à do som e sistema autónomo de guiamento por infravermelhos. 

Não acredito em milagres, mas que os há... há. 

Não havendo nessa época internet ou fax, ainda hoje passados que são 39 anos não consigo perceber como o documento apareceu assim, de repente e do nada, não sendo milagre a única explicação é ter estado na gaveta de alguém a “marinar”. 

Foi preciso morrerem pilotos, mecânicos, enfermeiros, militares do Exército, para que finalmente soubéssemos que arma nos alvejava e pudéssemos estudar as respectivas contra-medidas. 

Nos dois dias seguintes praticamente não houve voos, estudaram-se as manobras que melhor poderiam proteger as aeronaves. 

Algo sobressaiu de imediato, ao contrário do que tinha sido “decidido” anteriormente, 1000 metros de altitude era precisamente a zona em que as aeronaves estavam mais expostas. 

Chegámos à conclusão que o míssil poderia ter um alcance até 4.000 metros e que tinha de ser disparado com um angulo mínimo de 5 graus em relação ao solo, caso contrários caia aos pés do atirador. 

Possuía duas espoletas, uma de impacto e outra de influência, não era necessário colidir com o alvo para se dar a explosão, bastava-lhe passar perto da aeronave. 

Uma conclusão importante e que não vinha no manual era o facto de não ser pintado de vermelho conforme alguns pilotos tinham referido, a cor vermelha que alguns tinham visto era tão só a chama do foguete propulsor quando visto de topo, ou por outras palavras, quando este vinha ao nosso encontro. 

Logo estabelecemos uma regra de ouro, quem avistasse o fumo branco do seu disparo podia ficar descansado, o míssil não lhe era dirigido, já quem o visse como uma bola vermelha podia estar certo que, se nada fizesse, esse seria o seu dia. 

Compilando todos os dados entretanto adquiridos conseguimos elaborar algumas contra-medidas, a saber: 

1. Nas suas deslocações em zonas suspeitas ou junto às fronteiras, todos os aviões passavam a voar abaixo de 60 ou acima de 3000 metros; 

2. O apoio fogo aos quartéis passava a ser feito com bombas em vez de metralhadoras e foguetes; 

3. Os T-6 terminavam a sua participação na guerra pois dada a sua baixa velocidade não conseguiam furtar-se a um disparo do míssil; 

4. Em função da ameaça, os quartéis da Guiné receberam uma nova classificação de Seguros, Médios e Inseguros; 

5. Quartéis Inseguros eram os situados junto à fronteira e onde houvesse movimentação confirmada do PAIGC, onde uma aeronave pudesse ser alvejada do próprio país vizinho. 

Caíram nesta classificação Guidage, Buruntuma, Guileje e Gadamael. 

6. O apoio logístico a estes quartéis ficava confinado ao quartel Médio mais próximo; 

7. Os quartéis Médios ou Seguros passavam assim a funcionar como o que hoje se designa de HUB Aeronáutico. 

8. Os DO-27 tinham 2 hipóteses, ou voavam abaixo de 60 metros, ou descolavam e subiam à vertical de um quartel Seguro, voavam a 3.000 metros até um outro quartel do mesmo tipo, descendo à sua vertical. 

9. Os AL-III evitavam áreas descampadas ou de grandes bolanhas, já que enquanto estivessem a voar sobre a floresta estariam seguros. 

Na prática todos os pilotos de DO-27 optaram por passar a voar baixo o que, minorando o risco do míssil, trazia um perigo acrescido. 

Foi assim que tivemos aeronaves a baterem em ramos de árvores ou entrarem rios adentro, caso de um ALIII a chegar a Cacine cheio de água, ou a foto do Mais Alto, onde, devido a uma falha de motor (e não de um míssil) uma aeronave DO-27 acabou por amarar perto da ilha do Como. 

Cabe aqui referir um ponto importante e que tem sido usado amiúde para denegrir a FAP ou justificar o injustificável, nunca o General Spínola deu ordem ou a FAP se recusou a ir buscar um ferido grave, fosse onde fosse, imprescindível era o conhecimento de que o ferido era mesmo grave, já que por vezes tal não se verificava. 

Para que conste, deixei algumas vezes de almoçar para ir buscar feridos supostamente graves e que apareciam pelo seu pé, prontos para ir de férias. 

Com as baixas entretanto verificadas (Tcor Brito e Ten Pessoa abatidos e Ten M “doente”), era evidente que os restantes pilotos de Fiat G-91 estavam numa situação delicada, era humanamente impossível manter o ritmo de 3 voos diários, a Esquadra estava reduzida a dois pilotos. 

Alguém em Lisboa decidiu enviar alguns pilotos de reforço a fim de tentar minorar o esforço exigido, esperávamos alguém que já conhecesse a Guiné, posteriormente constou-nos que não haveria voluntários, lá acabou por aparecer um piloto, o Cap BA, conhecia Moçambique mas nunca tinha estado na Guiné, manteve-se connosco cerca de 3 meses, o tempo da FAP se tentar recompor. 

Durante esse verão acabaram por chegar 7 novos pilotos, vinham suprir as baixas entretanto verificadas (3), e os que tinham terminado o seu tempo normal de comissão (2). 

Nesta matemática do deve-haver ficávamos a ganhar, tinham saído 5 pilotos e chegavam 7. 

Só que não foi bem assim, dos 7 recém chegados tivemos de imediato 3 baixas, 1 por “doença inesperada” e 2 por se terem ejectado logo durante as suas missões iniciais (Cap W e C). 

Estas duas ejecções ocorreram ambas durante operações na zona norte, uma sobre o Morés (G-91 nº5416) e outra junto ao Tancroal (G-91 nº5409), mas nada tiveram a ver com os mísseis ou antiaéreas, tão só falhas mecânicas, ambos os pilotos foram recuperados. 

Com a aplicação das contramedidas estudadas e não obstante o PAIGC ter disparado cerca de 60 mísseis, a FAP apenas teve mais um avião abatido, a 31 Janeiro74, (G-91 nº5437) na região de Canquelifá-Copá, tendo o piloto, Ten Gil, sido recuperado na manhã seguinte. 

Estes são os factos ocorridos em terras da Guiné entre Março73 e Fevereiro74. 

Passemos agora às opiniões, como alguém disse, cada um tem a sua. 

No meu entender o míssil Strela influenciou de algum modo a guerra mas não teve o papel determinante que alguns lhe querem dar. 

O seu sucesso limitou-se ao período de incerteza, quando não se sabia qual o tipo de arma com que o PAIGC nos flagelava. 

Após a sua identificação e estudo das respectivas características passou a ser considerado pelos pilotos como uma arma não mais perigosa que uma antiaérea, nada mais, reacção semelhante tinha igualmente acontecido com os pilotos americanos no Vietnam. 

O que na Guiné mudou foi o modo de operar dos Fiat G-91, passaram a voar mais alto, não por receio da ameaça (como é hábito os mais mal informados dizerem) mas sim pela necessidade de ter de se efectuar uma picada acentuada (60º) para a largada do armamento, as bombas daquela época só podiam ser largadas dessa maneira. 

Se por um lado o voar mais alto trouxe algum desalento entre as nossas tropas, já que deixaram de ver os aviões, por outro lado o apoio às mesmas foi altamente melhorado, as bombas de 750 libras eram efectivas num raio de 250 metros. 

Só quem não as ouviu a detonar (às vezes bem perto dos quartéis) podem tentar vender a ideia que o tiro de metralhadoras ou foguetes seria mais eficaz. 

Ao longo de todo o conflito a missão da FAP foi sempre a mesma, o apoio aos quartéis, logístico, sanitário ou de fogo. 

No caso dos apoio-fogo, para os pilotos era sempre imprescindível o conhecimento de quatro variáveis a saber 

- De onde tinha partido o ataque; 

- Com que armas; 

- Há quanto tempo; 

- Se (e onde) havia tropa fora do quartel. 

A partir de Março 73 e face a uma certa desorientação terrestre fomos forçados a ter que alterar a estratégia de operação, passando a contactar menos os quartéis e indo mais ao “estrangeiro”, os ataques a Kumbamori e Kandiafara disso são exemplos. 

Já a estratégia do PAIGC foi sempre a mesma, baseada nos conceitos da guerra de guerrilha de Mao Tse-Toung, a saber: 

- Quando o inimigo avança, nós retiramos! 
- Quando o inimigo faz alto, nós flagelamos! 
- Quando o inimigo tenta evitar a batalha, nós atacamos! 
- Quando o inimigo retira, nós perseguimos! 

Foi assim durante toda a guerra na Guiné. 

Foi assim em Guidage, Guilege, Gadamael, ……. 

Em conclusão: 

Ao fim e ao cabo e por mais voltas que tentem dar para justificar um ou outro lado da contenda, na Guiné nada foi inventado, ... 

Tudo se passou conforme vem descrito nos compêndios da especialidade. 

Abraços 
AMM 
Ten PilAv da BA12
___________ 
Nota de MR: 

Vd. último poste desta série em: 

21 DE FEVEREIRO DE 2012 > Guiné 63/74 - P9513: FAP (66): Buruntuma: lá no cu de Judas... o famoso ataque de 13 horas (em 27/2/1970), as represálias aéreas de Spínola (27 /11/1971 ) e a caça aos MIG imaginários (1973) (António Martins Matos / Luis Borrega / José Matos Dinis) 

domingo, 15 de abril de 2012

Guiné 63/74 - P9750: Notas de leitura (351): "Adeus até ao meu regresso", de Mário Beja Santos: "um invulgar e dificilmente classificável livro" (Carlos Matos Gomes)


Lisboa > Associação 25 de Abril (A25A) > 29 de março de 2012 > Sessão de lançamento do livro de Mário Beja Santos, "Adeus até ao meu regresso" (Lisboa: Âncora Editora, 2012). Apresentação a cargo do cor cav ref Carlos Matos Gomes (na foto de cima, ladeado à esquerda  pelo editor; e à direita por Vasco Lourenço, presidente da direção da A25A,  e por Beja Santos).


Vídeo (1' 01'') > Alojado em You Tube > Nhabijoes


Fotos e vídeo: © Luís Graça (2012). Todos os direitos reservados


1. Texto da apresentação, da autoria do cor cav ref Carlos Matos Gomes, do livro "Adeus até ao meu regresso", de Mário Beja Santos

“Já participamos nos romances uns dos outros”, escreve o Mário Beja Santos no seu livro a propósito de um pedido feito por uma jornalista, Tânia Ganho, de informações sobre a Guiné e transmitido por esse extraordinário veículo de convívio, de memórias e afetos que é o blogue do Luis Graça e camaradas.

É verdade, uma surpreendente verdade. Os que combateram na Guiné durante a guerra colonial, os que escreveram sobre ela, a propósito dela, os que falam dela, todos participamos nos romances uns dos outros e no invulgar e dificilmente classificável livro do Mário Beja Santos – Adeus até ao meu regresso - que hoje aqui apresentamos.



Reportoriar o essencial

O livro de Mário Beja Santos, concentra o que de mais relevante foi escrito sobre a Guiné. Apresenta-se como uma antologia em que, modestamente, o autor diz ir “reportoriar do lado português o que de essencial está escrito desde 1964 sobre a Guiné”.

Estamos perante uma antologia, formalmente dividida em textos de autores que contemplam o romance e o conto, as memórias, o ensaio, a poesia, a reportagem, a História e os diários, mas uma antologia única, construída articulando o texto do autor – Beja Santos - e as transcrições e citações dos autores que ele refere, fazendo continuar os dois registos numa sequência sem hiatos. Estamos perante uma obra da arte de contar a história da Guiné e da guerra na Guiné com as palavras dos autores, sublinhando o que de melhor eles nos disseram.


A capa

Gostava de realçar desde logo a capa, a fotografia, que é uma homenagem sensível e sofisticada a Amílcar Cabral, pois remete para a fotografia clássica do líder do PAIGC a atravessar um curso de água e que eu interpreto como o querer dizer que todos os que combatemos na Guiné estamos irmanados pelo mesmo amor por aquela terra, porque todos embarcámos nas mesmas canoas, atravessámos os mesmos rios, passámos as mesmas dificuldades.
 
O livro de Mário Beja Santos dá-nos os suculentos nacos de prosa dos autores, não apenas flashes e apresenta-nos a Guiné e a guerra como uma orquestra a tocar uma sinfonia com vários executantes e com o autor no papel de compositor e maestro. Pode parecer quase herético ou blasfemo associar as explosões, os sofrimentos, os extremos da guerra a uma sinfonia, mas é disso que se trata, de um drama em todos os seus andamentos e em todos os seus tons.

Nesta obra polífona cada autor referenciado e cada texto ou citação entra no ponto certo para transmitir uma visão do pormenor que irá contribuir na sua justa medida e tom para a sinfonia.

O paradigma da antologia na literatura portuguesa sobre a guerra é ainda hoje “Os Anos da Guerra”, organizada por João de Melo com excelentes textos de enquadramento de Joaquim Vieira, obra aliás referida e devidamente apreciada por Mário Beja Santos, mas o que nós temos em “Adeus até ao meu regresso” é algo de essencialmente diferente, é uma antologia construída como um romance e um romance construído como uma história da Guiné, dos seus povos e da guerra que ali foi travada de 1963 a 1974. Os autores dos textos são personagens do romance e os seus textos são a narrativa das aventuras das personagens, os seus pensamentos, as suas visões, os seus sentimentos.

O autor, o romancista, o Mário Beja Santos conseguiu através do trabalho, que ele próprio qualifica de demencial, um tal conhecimento dos autores, cujas vidas são apresentadas e integradas na narrativa como as das personagens dos romances, e das suas obras que as articula no tempo e no local a que as ações se referem.

Os textos dos livros escolhidos permitem-nos comparar as nossas experiências com a de outros camaradas, que passaram pelos mesmos locais, noutro tempo, que viveram situações semelhantes. São textos de livros para lermos, mas são principalmente livros para deixarmos aos nossos filhos, aos nossos netos, às gerações que nos vão suceder.


Escritores da guerra

Trata-se de livros de uma geração de escritores da guerra, como os classificou João de Melo. Neste caso, na maioria dos casos, de escritores estigmatizados. Pela guerra enquanto tema, pela guerra que os fez participantes na acção, que afastou da crítica, dos circuitos literários, do reconhecimento dos seus concidadãos. Diríamos hoje, que estes escritores da guerra estão fora do mercado. Como em muitas outras áreas da nossa vida, existem várias realidades que não se reconhecem e não estou a falar apenas de ficção, ou poesia, estou a falar de ensaio, de história, de diarística, de memórias.

Os textos reunidos por Mário Beja Santos reúnem o melhor e o mais importante do que foi publicado e trazem ao nosso conhecimento obras esquecidas que, se lidas, nos permitiriam ter um conhecimento fundamentado das razões, ou da falta dela para aquela guerra. Aperceber-nos-íamos das razões por detrás das coisas, de que tudo tem uma história e permito-me salientar sem nenhum desprimor para os outros autores as obras de António Duarte Silva no capítulo do ensaio, a que o Mário Beja Santos dá o titulo “A Guiné entre o século XIX e a atualidade. Para entender melhor estes mais de dois séculos de esperança adiada” e as referências ao estudo “Invenção e Construção da Guiné-Bissau”, editado em 2010.

Para o que resta de crítica literária, os escritores da guerra escrevem sobre um assunto incómodo e politicamente incorreto. A moda são os urbanos. A moda é a ausência de valores. A moda é a ambiguidade a vários níveis, da ambiguidade sexual à ambiguidade de princípios. A moda é o precário, o imediato, o rápido. O usar e deitar fora. Uma sociedade hedonista, não suporta a dor da guerra, o sofrimento da morte, não suporta as mãos sujas de sangue. Não suporta o dilema de matar e morrer e não suporta, infelizmente o trabalho e o sacrifício do estudo e da compreensão. Portanto deixa de lado, com indiferença, estes testemunhos incómodos da história.

Basta ler os extratos que Beja Santos nos dá no seu livro para termos a certeza de que não é por falta de qualidade literária e científica que alguns destes autores não são e não foram trazidos ao grande público pelos divulgadores culturais, mas porque o Portugal que passa nos textos dos autores iluminados e nalguns casos ressuscitados por Beja Santos não é, de todo, o Portugal que a moda e os que fazem a moda querem e quiseram fazer crer que existia.

O que temos neste livro é o Portugal da guerra colonial, a maior aventura coletiva da história de Portugal a seguir à das viagens, descobertas e conquistas dos séculos XV e XVI (mais de milhão e meio de portugueses envolvidos na guerra e na emigração), também é a participação de Portugal no movimento descolonizador, o fenómeno mais marcante da história mundial após a II guerra.

“Adeus até ao meu regresso”, centrando-se na Guiné, enquadra a história daquele território no âmbito mais vasto do colonialismo iniciado com a Conferencia de Berlim, quando as fronteiras foram definidas (traçadas) – recorda-nos que o Casamança tinha tido uma ocupação portuguesa, que Zinguichor, muito perto de Guidage, foi uma cidade sob domínio português, que as guerras de pacificação duraram até aos anos 30 do século XX.

Tomamos contacto com as linhas de fratura sobre a questão colonial que atravessaram o regime do Estado Novo português, colocando de um lado autonomistas como Sarmento Rodrigues, Marcelo Caetano e Adriano Moreira e do outro os integracionistas, que acabaram por fazer valer a sua posição junto de Salazar e tornaram a opção pela guerra, tornada irreversível a partir de 1963.


Romancistas e contistas da guerra


Entre os autores de romances e contos Mário Beja Santos elege três: Armor Pires Mota, Álvaro Guerra e José Martins Garcia. Sobre Armor Pires Mota diz Beja Santos: “Resta perguntar porquê este silêncio em torno do primeiro repórter combatente, alguém que escreveu a guerra quase em directo, em tom singelo, frugal nas imagens, entregando-nos os seus estados de alma sobre a forma de diário. Porventura houve preconceitos ideológicos, hoje totalmente inexplicáveis, talvez porque o escritor assumisse que fizera esta comissão numa convicção dos destinos da Pátria. Ele foi o primeiro escritor entre nós, devemos-lhe esta guerra quase em directo, no tempo em que se combatia de capacete e se transportavam munições e víveres em burros. Como veremos, a Guiné tem acompanhado a sua obra literária, até ao presente.


Outro valor histórico não tivesse e ficariam parágrafos indesmentíveis, solenes, melancólicos, pensamentos que ocorreram a qualquer um de nós, como se transcreve de “Noiva de guerra”: Na justa medida em que Estranha Noiva de Guerra é um dos livros mais portentosos que se escreveram sobre a Guerra da Guiné, está injustamente esquecido e é um dever cultural de alertar os editores para o imperativo da sua reimpressão. “


É apenas um exemplo para vos estimular a ler o livro. Eu permitia-me referir duas outras obras recenseadas no capítulo de memórias, uma de um diplomata, no início da guerra e outra de Salgueiro Maia, no final.




Ensaio e história - do princípio do que podia não ter sido uma guerra ao fim dantesco em que ela se transformou.


Em primeiro lugar a do livro: “Quadros de Viagem de um diplomata” de Luís Gonzaga Ferreira.


Trata-se da obra de um diplomata que esteve em serviço em Dakar, no Senegal em 1963 e que relata um episódio relativamente pouco conhecido de conversações entre o governo português, por Salazar em pessoa, com dirigentes nacionalistas, da UNPG, que viria a dar elementos para a FLING e para o PAIGC – no caso Benjamim Pinto Bull, uma família originária da zona de Teixeira Pinto. Nestas conversações Salazar aceita num primeiro tempo conversações e dá instruções à embaixada de Dakar, para depois negar e cortar essa possibilidade. Estamos em 63, no início de uma guerra que podia ter sido evitada ou conduzida para um outro fim. Eis o que diz o Mário Beja Santos:


“No dia 11 de Agosto de 1963, um DC5 aterrou em Bissalanca e dele saíram Silva Cunha, então secretário de Estado do Ultramar, diplomatas do MNE e o último cônsul português em Dakar, Luiz Gonzaga Ferreira. Este conjunto de personalidades ia aguardar a comunicação que Salazar faria ao país no dia seguinte, dando conta da sua decisão, tomada depois de se reunir com Benjamim Pinto Bull, Presidente da União dos Naturais da Guiné Portuguesa (UNGP), de aceitar a abertura de negociações para uma autonomia política da Guiné. A seguir a esta declaração de Salazar, o conjunto de personalidades e o governador da Guiné receberiam Benjamim Pinto Bull para iniciar as negociações dessa autodeterminação progressiva.


O que se disse acima não é ficção, está perfeitamente documentado e consta do livro “Quadros de Viagem de Um Diplomata”, por Luiz Gonzaga Ferreira, Vega, 1998. Ao longo de mais de 400 páginas, o diplomata dá-nos conta sobre os bastidores da acção diplomática portuguesa no Senegal e oferece-nos uma importante memória sobre a política de Senghor e o que ele pensava da transição pacífica da Guiné para a independência e, não menos importante, quem eram e como actuavam os diferentes movimentos independentistas que operavam em Dakar, a partir de 1959.


Estamos neste livro perante uma leitura excepcional, pois é possível decepcionar como esta UNGP constituiu a última oportunidade de ter evitado, segundo o autor, a luta armada bem-sucedida que o PAIGC desencadeou a partir de 1963.


Qualquer possibilidade de ter havido uma Guiné independente multipartidária, dirigida por guineenses, desapareceu com o discurso de Salazar de 12 de Agosto de 1963. Num curto parágrafo deitou tudo por terra, ele que apoiara a negociação com a UNGP ao dizer: “Que todos o saibam – em nenhum momento e sob que pretexto, jamais parcela alguma do território nacional e nenhuma parte da soberania nacional serão alienadas”. Igualmente, no terreno das hipóteses, a proibição desta autonomia deitou por terra outras soluções em Angola e Moçambique. O pano caiu nesse dia. Em Adis Abeba nasceu a Organização da Unidade Africana, o nacionalismo africano entrava na rampa de lançamento, todas as soluções moderadas se tornaram questionáveis, indesejáveis.”


Esta é uma memória de como a guerra podia ter sido evitada ou seguido por outro caminho. O texto seguinte é do final da guerra. Do absurdo a que se havia chegado e é relatado pela transcrição de textos do livro “Crónica dos feitos por Guidage”, de Salgueiro Maia, que aqui recordo com emoção e respeito.


Este texto é também elucidativo do modo como Mário Beja Santos encadeia o seu texto com o dos autores para construir um novo texto coerente. Começa com Beja Santos:


“O pior vem depois. No dia 22 de Maio de 1973, Salgueiro Maia e a sua companhia estão prontos para seguir para o Cumeré, parece que a comissão terminou. Mas não, têm que partir de urgência para o Norte. O PAIGC desencadeara uma ofensiva em Guidage, a guarnição estava cercada e, aparentemente, isolada. As flagelações do mês de Maio, na zona de Guidage, eram incontáveis. O PAIGC apostara numa operação de grande envergadura: trouxera mísseis terra-ar para dissuadir os meios aéreos; implantara um campo de minas anti-carro e anti-pessoal na estrada Guidage-Binta. A última coluna de reabastecimento fora atacada durante cerca de 24 horas sem interrupção, as NT retiraram abandonando mortos e viaturas, seguiram para Guidage. O comando-chefe reage com a operação «Ametista Real». Uma companhia de pára-quedistas e um destacamento de fuzileiros tentam abrir o itinerário, chegam a pé a Guidage depois do destacamento de fuzileiros ter caído num campo de minas e os pára-quedistas terem sofrido uma emboscada. Salgueiro Maia recebe ordens para seguir para Binta-Farim e depois, com uma companhia africana e uma companhia de atiradores, abrir o cerco para Guidage. O relato que ele faz é uma peça espantosa.


Em 26 de Maio chega a Binta com uma companhia desfalcada, estão lá três capitães, pouca comida e há que dividir as munições por todos. Não há um só oficial superior para comandar a operação. Começa aqui a sua descrição:


«No dia 29 de Maio, pelas 5 horas, iniciámos a abertura do itinerário Binta-Guidage. Cerca das 10 horas, ao ser picada, foi accionada uma mina anti-carro, de que resultou um morto (ficou somente com um bocado do tronco, pois o resto desapareceu), um furriel cego e dois feridos ligeiros. Foi ordenado ao pelotão a que pertenciam as baixas para, em dois Unimogs, fazer evacuação para Binta, onde a companhia local os evacuaria para Farim e daqui para Bissau, por já não haver evacuações aéreas no local, devido à existências de mísseis terra-ar. O pelotão que fez a evacuação aproveitou a oportunidade e não voltou, como lhe tinha sido ordenado, e assim ficámos com menos duas viaturas e cerca de 30 homens. Talvez para que o mau exemplo não se espalhasse, esta deserção colectiva em frente do IN, apesar de constar do relatório da operação, não originou qualquer procedimento disciplinar».


A progressão faz-se a corta-mato, com algumas viaturas à frente, os cunhetes vão abertos, prontos a utilizar: este regime em self-service ir-se-á revelar providencial. Prova que o PAIGC mudara de táctica e queria levar o cerco de Guidage até às últimas consequências a que cada um dos seus homens armados levada dois a três carregadores para o substituir. Pelas 12 horas, as forças do PAIGC começaram a atacar a coluna, foram repelidos várias vezes. As tropas de Salgueiro Maia estão sem água, há homens desmaiados, felizmente que a coluna de reabastecimento de Bissau ia progredindo. Mais adiante, na região de Ujeque, do corta-mato passou-se para uma antiga picada, tentou-se progredir por aqui, arrebentou uma nova mina debaixo de um Unimog 404, um soldado milícia ficou sem uma perna. Mais adiante conseguiu-se contacto com o destacamento de fuzileiros retido em Guidage. Pelas 19 horas entraram em Guidage que tinha um aspecto irreal. Dá-se de novo a palavra a Salgueiro Maia:


«O chão estava lavrado por granadas, as casas, todas atingidas, pareciam ruínas, os homens viviam em buracos, luz e água não havia... como que para nos cumprimentar, pelas 21 horas somos flagelados por um morteiro de 82, com as granadas a cair em grupos de cinco e, para cúmulo, granadas nossas de 81 mm, das capturadas na coluna de reabastecimentos, agora disparadas contra nós. No dia seguinte, pouco depois do alvorecer, inicia-se a coluna de regresso com o pessoal que, até à data, tinha sobrevivido e que, para além dos sofrimentos de que já padecia, deitado sobre colchões velhos, saltava como pipocas cada vez que a Berliet passava num buraco».


E a descrição que ele faz de Guidage é perfeitamente dantesca:


«A enfermaria e o depósito de géneros tinham sido praticamente destruídos; como assistência sanitária, tínhamos um sargento enfermeiro e alguns maqueiros. O pessoal dormia e vivia em valas abertas ao redor do quartel. Esporadicamente, errava-se por lanços por entre os edifícios ou o que deles restava. Como dormir no chão não é muito agradável, na primeira oportunidade passei revista aos escombros e tive sorte: descobri dentro de um armário que tinha pertencido a um alferes madeirense que ficou sem uma perna uma farda nº 3, o que me permitiu lavar o camuflado e, como prenda máxima, um bolo de mel e uma garrafa de vinho da madeira quase cheia e inteira no meio de tudo partido. Com isto fiz uma pequena festa com três ou quatro homens, porque era perigoso juntar mais gente. Nesta altura pensei em, depois de regressar a Bissau ir ao HM 241 saber quem era o alferes para lhe agradecer tão opíparo banquete, mas tal não foi possível e ainda hoje tenho esse peso na consciência.


"Nas minhas visitas pelos escombros, desci ao abrigo da artilharia, onde houvera quatro mortos e três feridos graves. O abrigo fora atingido em cheio por uma granada de morteiro 82 com retardamento; a granada rebentou a meio de uma placa feita com cibes; o resto do abrigo ficou totalmente destruído; o chão tinha um revestimento insólito – consistia numa poça de sangue seco, cor castanha com 2 a 3 mm de espessura, rachada como barro ressequido. O odor envolvente era um pouco azedo, mas sem referência possível; o sangue empastava os colchões e as paredes. A minha preocupação era encontrar um colchão. Depois dar volta aos oito que lá se encontravam, escolhi o que estava menos sujo. Tirei-lhe a capa, mas o cheiro que emanava de dentro era insuportável; mesmo assim, consegui trazê-lo para a superfície, onde ficou a secar debaixo da minha vigilância, para não ser capturado por outro. Depois de bem seco e com os odores atenuados, levei a minha conquista para a vala, onde, para caber, tive de o cortar ao meio, fazendo bem feliz o meu companheiro do lado que, sem esforço, ganhou um colchão, e sem saber de onde ele tinha vindo».


Assim foram aqueles tempos em Guidage: sem horas para comer, com arroz e salsicha ao jantar, o resto estava desfeito, enquanto se comia caiam à volta morteiradas para ninguém se esquecer que se estava em guerra.


Esta descrição, dura e crua, bem devia ser apresentada nas escolas, para se ter uma imagem da bestialidade da guerra que se desenvolvia na Guiné. Tenho encontrado muitos relatos sobre a violência, a crueldade, o horror das matanças, das perseguições, o caos das populações no meio de tanta destruição. Julgava que “Kaputt”, de Curzio Malaparte, tinha lá tudo o que o demónio da guerra comporta, o inumano, o truculento, os muitos medos desavindos, imprevistos. Salgueiro Maia ensinou-me que há sempre surpresas, basta, como lhe aconteceu, ter saído de Binta para Guidage, aquele inferno inesquecível de Maio de 1973. Um relato para a História, até para se perceber como aquele homem tinha razão fundada em ter chegado ao Largo do Carmo, naquele dia 25 de Abril."


Já vai longa a apresentação, que é também como deve ser um local e uma ocasião de encontro entre amigos e camaradas, queria repetir que em “Adeus até ao meu regresso” estamos perante uma obra única, com uma escrita: límpida, emocionada, num português que nos leva com a naturalidade de uma valsa. Esta é a literatura portuguesa que vai ficar para a história e é porque relata o que de mais importante e marcante ocorreu em Portugal e os portugueses durante a segunda metade do século XX.


É de uma literatura original – o olhar de um povo sobre outros mundos, que Mário Beja Santos nos deixa o melhor. A desmistificação da história que nos era contada: nós não conhecíamos a África nem os africanos. A literatura que nos revelou e revela como povo: pela primeira vez uma geração alfabetizada escreve e relata o modo como viu os outros, como viu os outros portugueses e como viu os africanos. Como reagiu às situações limites: à morte, ao afastamento, ao medo. O que permite sabermos muito sobre a nossa religiosidade para além da afirmação mais ou menos feita de sermos muito católicos. Quais são os nossos deuses, o que queremos deles?


É esta literatura que vai perdurar, porque ela é especifica e reflete os olhares dos portugueses sobre a sua grande aventura, com os autores transformados em personagens numa história geral, como acontece nas grandes obras que relataram as epopeias dos seus povos.


Lisboa, Associação 25 de Abril,

29 de março de 2012


Carlos de Matos Gomes
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Nota do editor:


Último livro da série > 13 de abril de 2012 > Guiné 63/74 - P9742: Notas de leitura (350): A Guiné vista pela Agência-Geral do Ultramar em 1967 (Mário Beja Santos) 

Guiné 63/74 - P9749: Blogpoesia (186): Registo (Felismina Costa)

1. Mensagem da nossa amiga tertuliana Felismina Costa com data de  11 de Abril de 2012:

Caros amigos
Escritores desta epopeia colectiva que nos une aqui! Passou a Páscoa, sem vos desejar que essa quadra fosse de Paz e amor, mas, como sei, que todos sabem, que é isso que vos desejo sempre, não estou triste!
Queria, contudo, convidar-vos todos para a minha mesa, mas todos mesmo, porque considero toda a tertúlia, a minha família, mas, o espaço físico de que disponho, não comporta a grande família que somos, por isso, estiveram comigo, presentes no sentimento Pascal, no acreditar da Ressurreição, no crer na amizade, na tolerância e na Esperança de um mundo mais justo e mais fraterno!
Ofereço-vos, em vez de amêndoas, um simples poema que espero vos saiba a amizade e ao crer no futuro.

Um abraço infinito para todos e cada um de vós.
Felismina Costa


Registo

Enfeitei com rosas multicolores
A minha velha casa!
Com rosas multicolores
De todos os jardins desta Primavera!

Pus na mesa a toalha de linho e renda,
Que acompanha digna, todas as nossas reuniões,
e sobre ela, o serviço de jantar, que a embeleza.

Nos pratos, pus o amor e a alegria,
Que servi transbordantes aos meus convivas,
que me ajudaram a colher as rosas,
a pôr a toalha,
e sobre ela, o serviço de jantar,
onde despejo sabores e cheiros
do velho clã que idolatro,
de quem herdei a capacidade de olhar as rosas,
de aspirar o perfume,
e do repartir por todos aqueles de que me rodeio!

Sei, que as rosas que hoje vos ofereço,
voltarão a florir por várias gerações
com todo o seu perfume
e todas as suas cores…
E outras mesas e outras toalhas, voltarão a pôr-se…
Por mãos tão minhas, como se eu fosse,
presença ali…
Como sou hoje!...

Felismina Mealha
Agualva, 1 de Maio de 2010
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 19 de Março de 2012 > Guiné 63/74 - P9627: Blogpoesia (183): Homenagem ao Homem, no Dia do Pai (Felismina Costa)

Vd. último poste da série de 5 de Abril de 2012 > Guiné 63/74 - P9705: Blogpoesia (185): Pelas estradas de Mampatá (José Santos)

Guiné 63/74 - P9748: Documentos (22): Análise da situação do inimigo - Acta da reunião de Comandos, realizada em 15 de Maio de 1973 - Parte II (Luís Vaz Gonçalves)


1. O nosso amigo e tertuliano Luís Gonçalves Vaz, filho do Cor Cav CEM Henrique Gonçalves Vaz (último Chefe do Estado-Maior do CTIG - 1973/74), enviou-nos mais uma mensagem dando continuidade ao trabalho documental iniciado no poste P9639, que é a Parte I - Análise da situação do inimigo - Acta da reunião de Comandos, realizada em 15 de Maio de 1973 no Quartel General do Comando-Chefe das Forças Armadas da Guiné.

Camarigos:

Aqui vai a PARTE II, sobre a "Reunião de Comandos, realizada em 15 de Maio de 1973"


  PARTE II

Reunião de Comandos, em 15 de Maio de 1973, “Ata da Reunião"


“Em 15 de Maio de 1973, pelas 10H30, no Quartel-general do Comando-Chefe das Forças Armadas da Guiné, teve lugar, sob a presidência e mediante convocação do General Comandante-Chefe, General António de Spínola, uma reunião de Comandos na qual participaram os comandantes-adjuntos respectivamente, Comodoro António Horta Galvão de Almeida Brandão, Comandante da Defesa Marítima da Guiné, Brigadeiro Alberto da Silva Banazol, Comandante Territorial Independente da Guiné, Brigadeiro Manuel Leitão Pereira Marques, Comandante-Adjunto Operacional e Coronel Gualdino Moura Pinto, Comandante da Zona Aérea de Cabo Verde e Guiné …”

General Comandante-Chefe, General António de Spínola

“… Dou a palavra ao Comandantes - Adjuntos …”

- Brigadeiro Manuel Leitão Pereira Marques
- Brigadeiro Alberto da Silva Banazol
- Coronel Gualdino Moura Pinto

" E não havendo mais nada a tratar, o General Comandante-chefe encerrou pelas 11h 30 a reunião, que eu Hugo Rodrigues da Silva, Coronel do CEM  e Chefe do -Estado-Maior do Quartel-General do Comando-Chefe, relatei e assino " 

Bissau, 15 de Maio de 1973














(Continua)
Luís Beleza Vaz
(Tabanqueiro 530)
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Nota de MR:

Vd. também a Parte I no poste do mesmo autor em: 

22 DE MARÇO DE 2012 > Guiné 63/74 - P9639: Análise da situação do inimigo - Acta da reunião de Comandos, realizada em 15 de Maio de 1973 (Luís Vaz Gonçalves)


Guiné 63/74 - P9747: Agenda cultural (195): Reportagem do lançamento do livro de Joaquim Mexia Alves, Orando em Verso, ocorrida no dia 14 de Abril de 2012, no Pavilhão do Museu Joaquim Correia, na Marinha Grande (Miguel Pessoa)

1. Reproduzimos o excelente trabalho de reportagem do nosso camarada Miguel Pessoa, publicado na Tabanca do Centro, dando conta dos momentos mais marcantes da cerimónia de apresentação do livro desse outro nosso grande camarada e amigo, camarigo como ele gosta de dizer, Joaquim Mexia Alves*, "Orando em Verso".

Com a devida vénia ao camarada Miguel Pessoa e à Tabanca do Centro
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Nota de CV:

(*) Vd. poste de 8 de Abril de 2012 > Guiné 63/74 - P9715: Agenda cultural (194): Lançamento do livro de Joaquim Mexia Alves, Orando em Verso, dia 14 de Abril de 2012, pelas 15 horas no Pavilhão do Museu Joaquim Correia, na Marinha Grande

Guiné 63/74 - P9746: Parabéns a você (406): António Pimentel, ex-Alf Mil Rec Inf da CCS/BCAÇ 2851 (Guiné, 1968/70)

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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 14 de Abril de 2012 > Guiné 63/74 - P9743: Parabéns a você (405): Luís Faria, ex-Fur Mil da CCAÇ 2791 (Guiné, 1970/72)