sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Guiné 63/74 - P12400: Blogpoesia (362): Homenagem a Nelson Mandela (1918-2013): Invictus, de William Ernest Henley (1849-1903)

[ Foto à esquerda: Frederik de Klerk e Nelson Mandela apertam as mãos no encontro anual do Forum Económico Mundial, em Davos, janeiro de 1992].

Copyright World Economic Forum.  (Cortesia de Wikipedia)
1. Invictus [, do latim, invicto, nunca vencido] foi o poema, da autoria do poeta inglês, vitoriano,  William Ernest Henley (1849-1903), escrito em 1872 mas só publicado em 1892, que ajudou Nelson Mandela (1918-2013) a sobreviver na prisão, durante 27 anos,  e a acalentar o sonho da liberdade e da justiça para todos os homens e mulheres da África do Sul, sem distinção.  Uma singela homenagem do nosso blogue à sua memória, e à sua grandeza como homem e como africano. L.G.

Invictus

Out of the night that covers me,
Black as the Pit from pole to pole,
I thank whatever gods may be
For my unconquerable soul.

In the fell clutch of circumstance
I have not winced nor cried aloud.
Under the bludgeonings of chance
My head is bloody, but unbowed.

Beyond this place of wrath and tears
Looms but the Horror of the shade,
And yet the menace of the years
Finds, and shall find, me unafraid.

It matters not how strait the gate,
How charged with punishments the scroll,
I am the master of my fate:
I am the captain of my soul.

 Fonte: Poets.org, The Academy of American Poets   (com a devida vénia...)

Invicto

No coração da noite que me envolve,
Negra como a mina de carvão, de uma ponta à outra,
Agradeço aos deuses, se é que existem,
Toda esta minha alma indomável.

Perante as garras cruéis da adversidade
Eu não estremeci nem gritei.
Sob os golpes da má sorte,
A minha cabeça sangra, mas continua levantada.

Neste vale de lágrimas e gemidos,
Só o horror das trevas se descortina,
Mas eu não me vergo, nem me vergarei,
Apesar do peso dos anos em cima dos meus ombros.

Pode ser estreita a porta de saída,
Pode ser pesado o rol das provações,
Eu sou dono e senhor do meu destino,
Eu sou o capitão da minha alma.

(Tradução livre, e apressada,  de L.G.)

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Nota do editor:

Último poste da série > 29 de novembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12361: Blogpoesia (361): "Ilusões" (António Eduardo Ferreira)

Guiné 63/74 - P12399: Notas de leitura (541): "Contos de Guerra", de Guilherme Alpoim Calvão e Sérgio A. Pereira (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Julho de 2013:

Queridos amigos,
Ainda hesitei se não devia prolongar esta recensão, tais e tantos são os bons parágrafos destes contos em que Alpoim Calvão escreveu na primeira pessoa, estão aqui os feitos das suas duas comissões da Guiné.
Tudo respira sinceridade: a agilidade dos homens a penetrar na mata, as sensações de sede cansaço, contagiantes, a vigilância de tigres antes do ataque, os redutos do inimigo que, afinal, não são inexpugnáveis.
Há para ali uma arte em saber abrir o conto, desenvolvê-lo e concluí-lo, uma exultação do comandante à vontade indómita dos seus homens. Palavra de honra, estão ali contos que mereciam ser reorganizados, tanta é a inspiração e o talento de quem o escreveu.
Que grandes contos!
Que desperdício cultural não os republicar!

Um abraço do
Mário


Alpoim Calvão na primeira pessoa (2)

Beja Santos

Um dos mais brilhantes oficiais da Armada, altamente condecorado e louvado, nomeadamente pelos seus feitos em duas comissões na Guiné, polémico, por vezes irascível, manifestamente dotado para a escrita, como já comprovara nos seus relatórios logo a partir dos acontecimentos em que esteve envolvido na Operação Tridente, andou décadas a prestar esclarecimentos sobre a Operação Mar Verde, o seu contributo no MDLP, operações avulsas, levando a crer que se recusava a redigir a versão dos acontecimentos. Faz comentários, dá entrevistas, colabora em livros escritos pelos outros, no entanto parece tímido em não se expor na primeira pessoa. E, no entanto, em 1994, numa edição de autor, Guilherme Alpoim Calvão falou de si, embora camuflado através de um alter-ego. Em “Contos de Guerra” podemos sentir que se perdeu um escritor, embora seja de admitir que Calvão temesse deixar-se subjugar pela onda emocional, caso tomasse a resolução de escrever, de fio a pavio, todas as suas memórias de campanha. Em “Contos de Guerra” sente-se que por vezes deixa essa emoção à rédea solta. Ele é o comandante que aparece em todos os contos. Esse comandante, à vista de Lisboa, no regresso da comissão militar, sente uma angústia a oprimir-lhe o peito: está a chegar a hora da separação. A memória parece uma hélice em vertigem, recorda tudo o que deve aos seus homens, recorda a sua bravura, o espírito de sacrifício, a sã camaradagem, a alegria do cumprimento da missão. Este relato será muito provavelmente a imagem que Calvão tem de si, no final da obra:
“Sorri, ao lembrar-se da irreverência respeitosa de alguns e da permanente boa disposição de todos. Vê-os mais uma vez, debaixo de fogo, os dentes serrados e avançando sempre. Quantas vezes, foi o exemplo dos homens que o fez seguir!
E sente-se unido a eles por laços imarcescíveis; sente-se amalgamado com eles, no indefinível espírito da unidade. Obrigado, meus amigos!
A noite caiu completamente. À popa, olhando a esteira luminosa que o navio ia tecendo, o comandante sentiu um ronco de choro a farfalhar-lhe na glote. Lágrimas de emoção rolaram-lhe pelas faces. Não sentiu pejo nelas. Porque às vezes as lágrimas não envergonham os homens. Antes os engradecem!”

Ao longo dos contos, a parte mais sólida da obra – já que as reflexões atribuídas a um capelão são mal confecionadas, muitas vezes desajustadas, chegando mesmo ao ridículo – os homens estão em combate, ou a caminho e por vezes na espera. E há combates que demoram horas. No rescaldo, o comandante sente-se recompensado, acredita na nobreza daquela guerra, a ela se entrega nos limites da generosidade. É provável que o que escreveu aqui se baseie em acontecimentos reais vividos na ilha do Como, faz todo o sentido: 
“No acampamento, o comandante contemplava o pôr-do-sol. Pinceladas mágicas enchiam de maravilhosos tons (ouro e vermelho) o céu lá, para as bandas do poente.
Alguns pássaros, saltitando e esvoaçando nos ramos das árvores, cantavam arrebatadamente as benesses e os encantos da criação. Olhou para as palavras que acabara de escrever em amarrotada folha de papel: nelas procurara exprimir toda a veneração, toda a fraternal amizade que lhe mereciam os seus homens. Chamou-os e fê-los sentar à sua volta: simples, humildes e bons. Mas também grandes, heróicos e generosos. Com a voz escurecida pela emoção do momento, leu os louvores que lhes concedera”.

É um contista exímio, tem a noção exata do que é um bom arranque e como se dá uma contextualização:
“A base estava muito bem escondida no meio da mata frondosa e verde. Mais de quarenta casas, alinhadas e vivas, enquadravam uma parada de terra batida, tudo completamente protegido pelas árvores, longe de olhares indiscretos dos aviadores que, como abelhas teimosas zumbiam às vezes por cima, num esforço de penetrar visualmente as massas da folhagem.
Era uma base de treino e de repouso. Situada na forquilha de dois rios, estava praticamente ao abrigo de ser atacada pela tropa. Além do mais, todos os acessos dispunham de postos de vigias, e só efetivos muito grandes poderiam criar dificuldades aos numerosos grupos de guerrilheiros que ali vinham a aprender táticas e armamentos novos e descansar”. O ataque à base será um êxito, levarão de vencida a resistência inimiga, indiferentes ao vendaval de fogo os fuzileiros irão vencer, encontrarão na base armas, munições, medicamentos e mantimentos. E assim se conclui:
“Fora violado o santuário e desfazia-se assim o mito. Esse ente sublime e belo, desejado porque difícil de encontrar, querido porque faz palpitar de alegria o coração dos homens, a vitória, sorrira mais uma vez à nossa gente”.

Haverá uma noite de Natal, celebrada na Guiné, dá nova oportunidade a que conheçamos a têmpera do comandante quando este faz uma alocução aos seus homens:
“A nossa unidade não é apenas mais um destacamento de fuzileiros. Não! A nossa unidade vive, palpita, respira e tem vontade própria! Tem um querer enorme, irresistível, poderoso, que vocês criaram, numa realização admirável! Vós, que vindos de todos os recantos da nação, sois bem os representantes do nosso povo, desse povo bom, sofredor, nobre e simples, capaz dos mais extremos sacrifícios e das mais belas ações! Vós sois o povo! Vos sois a Pátria!”.
Os fuzileiros rejubilam e gritam hosanas ao seu comandante.

Vejamos um outro conto e como arranca, tão fluído, logo a cativar o leitor:
“Agachados no capim, observavam os movimentos dos dois vigias que se aproximavam com ar atento e desconfiado. Deviam ter ouvido o ruído da lancha e vinham averiguar o facto. Os homens continuavam imóveis e alguns deles mantinham sob a visada das armas os dois inimigos que, a cada passo, encurtavam a distância que os separava do fim”.

“Contos de África” é um livro injustamente esquecido, quando possui parágrafos belíssimos, autobiográficos, vigorosos. Há sempre lanchas que percorrem os rios, desembarques, envolvimentos, tiroteios, assaltos. São contos dedicados a atos heroicos de fuzileiros. Por vezes, o comandante erra, descura regras de segurança e nesses momentos fica muito só. Aqueles militares são solidários. O autor, a propósito, explica ao leitor a especificidade daquela guerra, assim:
“Quem já andou na Guiné, quer por prazer cinegético, quer por obrigação militar, sabe o que significa andar no lodo. Põe-se o pé com toda a cautela na superfície escura e escorregadia e afundamo-nos até à coxa. Sente-se uma ventosa que suga as pernas e as prende ciosamente. O esforço necessário para dar um passo é violentíssimo e muitas vezes a prisão do lodo apodera-se das botas e há que caminhar descalço. Se por acaso o lodo é mais fluido e o homem se enterra até ao peito, é preciso desatolá-lo e ensinar-lhe a nadar no lodaçal que se agarra à roupa e à pele, cobrindo de uma estranha película que o calor do Sol transforma em carapaça quebradiça e a água tem dificuldade em lavar”.

Que bom seria que Alpoim Calvão refizesse e tonificasse estas memórias plenas de sinceridade e primorosamente escritas!
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Nota do editor

Último poste da série de 2 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12377: Notas de leitura (540): "Contos de Guerra", de Guilherme Alpoim Calvão e Sérgio A. Pereira (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P12398: O que é que a malta lia, nas horas vagas (8): As minhas leituras em Bajocunda (José Manuel Matos Dinis)

1. Mensagem do nosso camarada José Manuel Matos Dinis (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), com data de 3 de Dezembro de 2013, a propósito do que a malta lia nas horas vagas:

As minhas leituras na Guiné

Lembro-me muito bem do meu primeiro livro, que recebi com muito pouca idade idade, ainda não sabia ler. Intitulava-se "O Gato das Botas Altas", tinha braços e pernas que se destacavam do corpo do livro, que era muito bem ilustrado, e abordava qualquer coisa sobre cavalaria, mosqueteiros, afecto, honra e bravura.

Acompanhou-me durante muitos anos, porque era esteticamente muito bonito, e despertava em mim sentimentos de virtude.

Lembro-me de ter lido, ainda muito novinho, uns poemas do Afonso Lopes Vieira, com dedicatória na primeira página à minha mãe. Teve um qualquer descaminho que não identifico, mas deixa-me triste. Também me lembro de outro título da minha mãe, "O Cão dos Baskerviles" que me transportava para os mistérios dos campos de "cottages" e palacetes da "Old Albion". Pelos meus 14 anos passei por uma crise de intelectualidade, e com dois amigos (Almeida e Sousa e Solano de Almeida) tentámos escrever teatro, mas as performances eram tão más, que não concluímos nada. Por essa época, ainda tentei a literatura de cordel, talvez inspirado na colecção FBI, e foi outro desastre. Até à mobilização não voltei a experimentar a verve com pretensões de escrita.

Depois, com o despertar da atenção para o belo sexo, passei a sonhar ser estrela de futebol, e com os rios de dinheiro e a fama consequentes, a impressionar as garotas mais lindas. Quase não lia, nem estudava, nem cabulava, mais a mais convencido do risco cada vez mais próximo de levar um balázio que me mandasse p'rós anjinhos, levava uma justificada vida existencialista, com salpicos de "make love not war", pelo que registei um notório abrandamento nas leituras, quaisquer que fossem. E os chumbos passaram a adornar o c.v., até que o namoro com uma menina leitora de poemas e romances, fez com que encetasse nova incursão pelas letras para não ficar pior na fotografia.

Até que chegou a tropa, e a necessidade de viver intensamente, não fosse o diabo tecê-las. Ora, a intensidade de viver assentava no máximo aproveitamento das paródias que, a recruta primeiro, a especialidade e o curso de "mines and bloody tracks" depois, ainda nos permitia alguns devaneios e desafios físicos. Portanto, esse período correspondeu a novo interregno intelectual, coisa sem importância, tendo em conta que a proposta se refere ao tempo passado na Guiné.

Muitas bebedeiras e outros excessos, mais cinco dias de brandas correntes marítimas foram necessários para, a partir do Funchal, chegarmos a Bissau. E que grande era a cidade! Dos Adidos para a cidade e para os bares, com excepção de um dia de guarda a um posto de rádio, que não aproveitei no sentido do tema proposto, foi outra a dedicação, até que uns vinte dias depois fomos entregues em Piche aos cuidados do destino. O Zé Tito, companheiro da juventude, que fez o grande favor de me acompanhar ininterruptamente desde o assentamento de praça, descobriu um excelente quarto com duas camas vagas, comummente conhecido pela suite 3. Olá Águas! Olá Tubaco da Selva! Olá Costa! O Tubaco levou-me atrás de uns armários, abriu uma mala cheia de livros, que disponibilizou, mas alertou-me para o generalizado gosto pelas fotonovelas, e que tudo ficava ao dispor.

Se em Roma devemos ser romanos, eu, que levava uma vida operacional intensa, não tinha sobras de tempo para a valorização espiritual e intelectual, pois, que me lembre, durante os primeiros seis meses, e em Piche, não houve noite que me deitasse na cama, sem evitar o estado ébrio. Comia-se mal, mas, a respeito de bebidas... ficamos conversados. Ainda assim, li algumas coisas, de Remarque a Eça, de Amado a Gorki.

Lia, naturalmente, as cartas quase diárias da namorada, e outras mais espaçadas da família e amigos. Não era literatura, mas constituía consumo ávido. Entretanto, logo que me foi atribuído o número de SPM, assinei o jornal cor-de-rosa, onde esgrimavam os mais ferozes anti-situacionistas e revolucionários da época, de que destaco Sottomayor Cardia (já não arde) e António Barreto, que espingardavam contra quaisquer indícios de poder, ambos bem assimilados com os primeiros alvores vulgarmente confundidos com a democracia. Confundidos? Obviamente!

A Democracia exige atitude permanente, participação popular sobre as decisões que lhe diga respeito (à massa popular), e nesse estádio anémolas como Sócrates, Coelho e Portas não poderiam, sequer, imaginar o que andam por aí a fazer. Mas isso não se tem conseguido ler com a objectividade necessária.

Em Bajocunda, a tropa passou a viver outro intimismo, e já eram mais frequentes os períodos de leitura.

Pela minha parte li com especial proveito o "Porque Não Sou Cristão", de B. Russel, que foi determinante para consolidar a minha "fé" ateísta.
Também li Brecht, Barthes, Régio, Torga, E. Veríssimo, Buck, e o indispensável Larteguy, entre outros.

Havia, portanto, diferentes apetites de leitura, que podiam ser, tanto de índole formativa, como lúdica, com mais ou menos interesse literário.

E havia, por vezes, algum debate sobre obras que nos sensibilizavam. Lembro-me de uma noite no meu quarto, onde o Jorge, todo nu, lá de cima dos seus quase dois  metros, declamava Brecht perante a atenção dedicada e surpreendida dos restantes furriéis, encontravam naqueles versos uma espécie de aliança pela paz.
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Nota do editor

Último poste da série de 5 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12395: O que é que a malta lia, nas horas vagas (7): A prestigiada revista "Vida Mundial" (Manuel Mata, ex-1º cabo, Esq Rec Fox 2640, Bafatá, 1969/71)

Guiné 63/74 - P12397: Últimas Memórias da Guiné (Armor Pires Mota) (6): O casamento do Jaime e da Manuela, A macaca ciumenta e O dia de santo avião

ÚLTIMAS MEMÓRIAS DA GUINÉ - 6

Por Armor Pires Mota (ex-Alf Mil da CCAV 488/BCAV 490, Bissau e Jumbembem, 1963/65)

O casamento do Jaime e da Manuela 
E o caso da macaca ciumenta 

O Jaime Vieira Segura e a Manuela (Maria Manuela Gonçalves Moreira Eusébio), natural de Paredes, casaram-se na Catedral de Bissau, local muito frequentado pela muito devota mãe de Amílcar Cabral, no dia 13 de Abril de 1964, um mês após o regresso da maldita Ilha do Como.
Presidiu ao acto o Tenente Capelão do Batalhão 490, Padre Serafim Alves Monteiro da Gama. Foram padrinhos o alferes Rui Ferreira (António Rui Diógenes de Noronha Ferreira, meu grande amigo, a viver em Faro, no Algarve) e uma prima deste, também goesa, que vivia em Bissau.
Eu estive presente e fui mestre de cerimónias, ajudando-os a cumprir os rituais…
Foi possível a cerimónia, porque tanto o noivo, como o Rui e eu nos achávamos a repousar na fortaleza da Amura do ciclópico esforço e enorme e natural desgaste despendidos na operação “Tridente”, onde abundavam as rações de combate e a água que obtínhamos dos pocecos feitos, era salgada…

Catedral de Bissau
Foto: © J.F. Robalo Borrego. Todos os direitos reservados. [Edição: CV]

Não houve boda. Era dia de semana. Essa parte festiva decorreu no domingo seguinte em casa do Jaime Segura. Situava-se na Rua Principal de Bandim. mesmo defronte do buliçoso e ruidoso mercado indígena, numa enorme mescla de sabores e cores garridas, onde as mulheres negras e as bajudas de rijos seios empinando as floridas blusas vendiam de tudo um pouco.

Jaime Segura era um audaz combatente, um bom comandante de homens, cometeu alguns feitos na Ilha do Como, o que levou a ir, ainda nesse mês de Abril, para os Comandos, onde, entretanto, o havia de ir buscar o capitão Arrabaça, desafiando-o: “Abadone os Comandos e eu dou-lhe autorização para para formar um Grupo de Comandos dentro da minha companhia [488]. Você pode escolher quem quiser, mas peço-lhe que fique comigo!”. Lá seguiu para Jumbembem, onde esteve operacional, até que, em Junho de 1964, era transportado de helicóptero para Bissau. O destino final era o Porto, onde, no dia 10 de Junho, era condecorado com a Cruz de Guerra… mas recebia outro prémio. No aeroporto, surgiu-lhe o Brigadeiro Sá Carneiro (tio do falecido Sá Carneiro) que lhe fez este inesperado anúncio: o Governador e Comandante-Chefe tinha-o escolhido para seu Ajudante de Campo, de modo que, quando regressasse a Bissau, deveria ir ao Palácio do Governo falar com o então Brigadeiro Arnaldo Schulz, meses depois promovido a General.

Quando chegou a Bissau havia de ser acometido por fortes dores na barriga.Tendo ido ao hospital, os médicos extraíram-lhe o apêndice. A cirurgia correra bem. Só que, passados dias, ao retirarem os agrafes, estavam tão seguros que levaram atrás de si pedaços de carne. Resultado: uma infecção, que levou 30 dias a curar. Só após este período, se apresentou. Teve direito a dois gabinetes: um no Palácio, outro no QG (Quartel General). Serviço: todos os dias, até sábados e domingos, tinha de ler os perintreps, enviados pelas companhias, ver locais onde houve combates e assinalá-los com os diversos alfinetes de cor num enorme mapa da Guiné, que cobria as duas paredes da sala secreta de reuniões, onde todos os dias reuniam as altas esferas militares (coronéis) dos três ramos das Forças Armadas que decidiam o que poderia ser feito nos dias seguintes. Era o alferes das bandeirinhas, de uma guerra mais longe.

Quanto ao serviço de transportes, não era tarefa fácil para o Fernando Correia, que acabara por ser colocado no Quartel General como responsável pelo sector dos abastecimentos. Ou fosse na 2.ª Secção de Transportes da 4.ª Repartição, após a apresentação do relatório do médico que o operara. Isso permitiu que trouxesse para Bissau a noiva e fosse viver com o Jaime Segura e a Manuela, primeiro, numa casa na estrada de Bor, depois mais na baixa da cidade. Amigos de animais, tinham no pátio macacos e uma macaca ciumenta. Tanto que quando, de propósito, o Jaime e a Manuela se abraçavam, acariciavam ou beijavam, a macaca, enfurecida, qual fêmea traída, pegava no que tinha à mão, até merda, e arremessava-lhes.

Não era obra fácil o serviço de transportes, era necessário alugar os barcos e contactar os comerciantes, mas seguramente melhor do que eu estar em Jumbembem.

Um e outro não podiam estar melhor, viviam o ambiente da cidade, longe dos tiros. Mais tarde, o alferes Fernando Correia foi viver mais para o centro da cidade, junto ao Grande Hotel, com o Tony Magalhães, que trabalhava no sector da administração do QG.

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O Dia de Santo Avião

Eu era o mais antigo oficial miliciano da Companhia. Os outros eram por ordem decrescente: António José Orlando Bretão, Armando Graça da Cruz e Inácio Gonçalves Rodrigues Casinhas. Quando o capitão Correia Arrabaça baixou ao hospital, na sua ausência, era eu quem assumia o comando da Companhia, o mesmo acontecendo, posteriormente, relativamente ao Tenente de Cavalaria Lourenço de Carvalho Fernandes Thomaz. Uma das operações levou-nos à fronteira com o Senegal, onde contactámos com refugiados e familiares da tabanca que se havia acolhido à nossa sombra. Tinha como objectivo também capturar uma manada de vacas. Havia falta de carne e não havia a quem comprar. Carne não faltou então por longos meses, mas, sim, o correio. Tanto assim que enviava ao Comando uma mensagem algo áspera: “tropa sem correio, tropa sem moral”. Estava a gerar-se um certo mal-estar. O correio era como o melhor pão de casa. Dois ou três dias depois, era festejado o dia de Santo Avião. As dorniers voltavam a sobrevoar Jumbembem, lançando alguns mantimentos e correio.

Localização de Jumbembem. Vd. Carta da Província da Guiné (1961) - 1:500.000

Às vezes, orientávamo-nos na semana por dois dias: um era o implacável dia da resoquina, mas não julguem que se tratava de drogas para forjar coragem para suportarmos o esganiçar frenético da metralha, o esbrasear das manhãs espapaçadas de suor, sangue e capim, muradas de cacimbo e rasgadas pelos pios sinistros e agourentos que arrepiavam a pele da alma, de ponta a ponta. Eram apenas pílulas antipalúdicas. O outro era o dia do correio. Era dia de festa geral. Havia algazarra estridente, um sorriso no canto da boca, por vezes amarrotado pela secura dos dias e nos olhos uma alegria profunda e íntima. O correio esperava-se com a ansiedade de gente moça, roída pelo espinho da saudade que gotejava lágrimas, quando a solidão era maior. Uma carta que fosse, fosse ela da mãe, da noiva, da madrinha de guerra, de um amigo, fazia esquecer uma semana inteira de lutas e cansaços. Era um alívio, um conforto enorme. Ouvia-se o ronronar da Dornier e os olhos pregavam-se no céu em brasa.

A Dornier era um anjo de asas acinzentadas, esvoaçando todo a tremer no seu coração pequeno, sobre pântanos, vestidos de algas, escondendo por vezes animais perigosos, ou sobre palmares infinitos, fechados, acabando por nos acariciar os olhos num redopiar manso sobre o aquartelamento ou sobre a trincheira, lançando-nos o saco azul, bordado a letras vermelhas. A carta era a oração de mãe, trespassada de dor e de viva esperança em Deus e nos santos da sua devoção. A carta era a fotografia, o sorriso, o coração grande da noiva, derretendo-se em palavras melodiosas, abrindo-se em sonhos e projectos, em beijos. A carta era o conselho e a força de um amigo. A carta era a seara verde em promessas de ouro e o vinho acetinado de uvas amadurecidas. A carta era o melhor sedativo para uma cicatriz ou um rasgão, uma couraça para um estilhaço. Uma couraça forte que podia salvar uma vida das garras terrivelmente aguçadas e sangrentas da metralha atroz. A carta era a terra e o arraial da romaria do padroeiro de cada um. A carta era a coragem e a fé, a força renascida, a esperança mais viva e mais larga, do tamanho da distância.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 4 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12386: Últimas Memórias da Guiné (Armor Pires Mota) (5): Ilha do Como - Operação Tridente

Guiné 63/74 – P12396: Memórias de Gabú (José Saúde) (34): Uma ida ao matadouro de Gabu… Seidi, o magarefe

1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos mais uma mensagem desta sua série.


As minhas memórias de Gabu

Uma ida ao matadouro de Gabu

Seidi, o magarefe

A memória, essa irrevogável rainha e protetora do ser humano, conduz-nos, amiúde, a excêntricas contemplações que nos transportam a tempos idos e que nos fazem reviver momentos únicos de um passado que jamais esqueceremos e tão-pouco voltará.

Hoje, invariavelmente, trago mais um tema de as minhas memórias de Gabu. Vasculhando a coleção de fotos que tenho em meu poder dos meus tempos na Guiné, e que guardo religiosamente na minha mesinha de cabeceira, detive-me perante uma imagem que me fez reviver mais um naco de recordações que permanecem intocáveis na minha mente.

Uma ida ao matadouro de Gabu e aviar uma boa dose de carne de vaca acabadinha de se ser esquartejada para delírio da malta, dava um prazer enorme a uma rapaziada que se deliciava a trincar a dita cuja, saboreando inevitavelmente a frescura da chiça com uma boa quantidade de cervejas que refrescavam gargantas e saciavam deliciosos prazeres de pomposos pratos devidamente ornamentados.

O homem do matadouro chamava-se Seidi, isto se a memória não me falha, mas julgo que estou certo, não obstante um eventual desencontro de nomes de pessoas com as quais convivi já lá vão 40 anos. O Seidi era um amigo que se desfazia em cortesias. Mas vamos à natureza do requintado local. Em formato de síntese, garanto que a instalação era francamente diminuta, ou seja, exígua. Um barracão com telhado de zinco, com paredes de barro mal amanhado, casa única e uma ou duas facas bem afiadas que faziam todo o trabalho da desossa.

O Seidi, ostentando normalmente o seu harmonioso chapéu, encarregava-se de arranjar a vitela. Seguia-se a ida da novilha para o calvário. Depois, lá vinha a batalha final. Lembro-me em apreciar a facilidade do Seidi no desmancho da carcaça do animal. Convém sublinhar que o homem congregava duas vertentes na arte: era magarefe e cortador da carcaça do bovino.

A faca do nosso amigo não dava mãos a medir. A sua rapidez, digamos estonteante, fazia-me lembrar o matadouro de Beja, a minha urbe de adoção, ou, enquanto puto, o da minha terra natal, Aldeia Nova de São Bento, onde os moços disputavam duras brigas pela conquista de uma bexiga de porco que, depois de cheia com ar de pulmões jovens, servia para mais uma jogatana de futebol num dos largos da aldeia de terra batida.

Como era da praxe levávamos um Unimog para transportar a carga. Comigo seguiam alguns camaradas que se deslumbravam com a peça adquirida. A sua cordialidade, dos camaradas claro, era cinco estrelas. A viagem, afinal, compensava. Uma vaca dava para um “batalhão” de gente que se predispunha então aos prazeres comestíveis.

Com a nossa chegada ao quartel a “encomenda” era distribuída irmãmente. Seguiam-se os maravilhosos cozinhados. Bifes com batatas fritas e arroz, costeletas fritas ou grelhadas, iscas com elas, cozidos com couve, vitela à jardineira, entre outros pratos magistralmente agendados pelo 2º sargento Martins, o gerente da nossa messe.

Dia de carne de vaca fresca era de arrepiar barrigas já fartas de outros manjares. O arroz com salsichas fazia, naquela ocasião, uma interrupção e dava lugar a um rancho substancialmente melhorado. A malta comia que se desunhava com a fartura apresentada sobre a mesa.

No recantado matadouro que se situava perto das tabancas, as vísceras do animal eram jogadas para um ermo onde proliferava um bando de abutres que, sempre à espreita, aguardavam calmamente pela hora do repasto. O Seidi, generoso, alimentava a passarada. Nada sobrava. Como os camaradas recordam os abutres, pássaros de grande porte, alimentavam-se, e alimentam-se, de carne por vezes já putrificada. Aquela porém não tinha esse rotulo. Era fresquinha e recomendava-se.

Mas os dias de matança eram também sintomas para uma espreitadela ao matadouro do Seidi por parte de nativos da população. Normalmente apareciam uns miúdos que regateavam algumas deixas deitadas à mercê dessas crianças por parte do nosso amigo Seidi. Ele, com um ar bondoso, não se fazia rogado aos desejos desses miúdos que imploravam uma pequena dadiva.

Curioso era a indumentária do Seidi nesses dias de intenso trabalho. Os calções e a túnica que resguardava o tronco, apresentavam-se encharcados de sangue do animal. Coisa que para ele não lhe causava problemas acrescidos. Tudo era natural. Estava habituado a lidar com a situação. Para nós não foi fácil adaptarmo-nos aquela vida do magarefe. Mas tudo passou.

Vamos ao preço da vaca mas… em silêncio, não seja a “boca” lançada motivo para uma “porrada” inscrita meticulosamente numa cédula militar que não acusa nenhuma infração: - Se a memória não me falha, creio que o seu custo original rondava os 500 pesos. 500 pesos que seriam depois multiplicados no interior do quartel, comentava-se. Cada cavadela uma minhoca. E lá se arranjavam pressupostos trocos para compor a fatia final ganha em mais uma comissão nas ex-colónias ultramarinas. Diziam as más línguas que o eventual sistema era seguro. E era. 

Mas, segundo se constava também, é que no orçamento geral do exército de então a questão do deve e do haver nas províncias do Ultramar era coisa de somenos importância, dado que os respeitosos profissionais, bem como os seus apaniguados submissos, tudo faziam para repor a verdade orçamental, deixando bem vincada que a contabilidade era selada a lacre e com saldos sempre positivos. Tudo corria maravilhosamente em termos de tesouraria. Nada falhava.

Era uma velha escola que perdurava naquele tempo. O Seidi, por outro lado, honrava os pedidos solicitados. A regra da multiplicação passava-lhe ao lado. A preocupação do talhante era servir a tropa “tuga” e receber, na hora, os “pesos” do trabalho feito.

Recordar é viver!...


Numa conversa com o Seidi, testemunhado pelos camaradas que me acompanharam ao matadouro de Gabu

Um abraço, camaradas 
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Guiné 63/74 - P12395: O que é que a malta lia, nas horas vagas (7): A prestigiada revista "Vida Mundial" (Manuel Mata, ex-1º cabo, Esq Rec Fox 2640, Bafatá, 1969/71)

1. Excertos de um poste do Manuel Mata, publicado na I Série, em 5/5/2006 (*)


[Foto à esquerda: o autor, 1º cabo cav, Esq Rec Fox 2640, Bafatá, 1969/70, junto à Fonte Pública de Bafatá, construida em 1948]

22 De Novembro de 1970

A vida no Esquadrão [Esq Rec Fox 2640] decorria com toda a normalidade que era habitual, no dia-a-dia da unidade em Bafatá, não fossem as notícias que ouvi, cerca das 6 horas da manhã na rádio de Conacri, onde anunciavam com alguma ansiedade a invasão da República da Guiné e apelava aos Boinas Verdes para virem em seu auxilio, pois estavam a ser invadidos por tropas colonialistas Portuguesas.

Fiquei estupefacto e comecei a falar com a rapaziada do Esquadrão, mas todos iam ficando pensativos sem nada se conseguir relacionar. Perguntou-se ao Manuel, um ex- turra a trabalhar na padaria do Esquadrão, como padeiro, se tinha conhecimento de alguma coisa. Resposta negativa, como era óbvio. Mas para nós, ele sabia e sabia fazer muito bem o seu jogo entre as partes envolvidas, o mesmo se passou com os restantes trabalhadores guineenses do Esquadrão o Braima e o Samba.

Já isso não se verificou com o Teófilo e o seu amigo, sobrevivente do desterro e residente em Bafatá, que comentaram:
- Pura intromissão, na vida de um país vizinho, só de um Governo Fascista e Colonialista como o Português, tem que ser derrubado!.

As notícias continuaram na rádio, ficamos a saber da entrega de um dos grupos, da libertação dos nossos prisioneiros, da destruição da pista de aviação, de muitos mortos, mas nada de muito concreto. Como era fácil adivinhar, foi um momento de muita alegria ao saber-se que haviam libertado os nossos prisioneiros.

Como nada mais se sabia, pedi a familiares e amigos na metrópole que estivessem atentos às notícias e que me enviassem a prestigiada revista da altura, a Vida Mundial. Semanas mais tarde lá chegou, com uma reportagem da entrevista, na televisão, com um dos prisioneiros, mas nada de grande luz sobre a situação da invasão à República da Guiné-Conacri.

Ansiei ao longo dos anos pela verdade, como certamente todos nós, finalmente, o livro de António Luís Marinho "Operação Mar Verde", nos veio clarificar toda a preparação maquiavélica da Operação. (...)

A destruição da "Vida Mundial"

Um dos meus passatempos, na Guiné, era ler, ouvir e gravar música subversiva para os amigos que me pediam, principalmente, Zeca Afonso, Adriano Correia de Oliveira e tantos outros, que me chegavam da Metrópole, por intermédio de um estudante universitário de Coimbra, irmão do 1º Cabo Antunes (já falecido).

O comandante [do Esq RecFox 2640, ] lá foi informado deste meu hobby. Então para me manter ocupado, andou durante algumas semanas, todos os dias, cerca das 10 horas da manhã, a visitar a arrecadação de material de guerra e aquartelamento. Entrava mudo e saía calado, deitava o material das prateleiras para o chão. Eu voltava a colocar o material nos devidos lugares, e assim foram decorrendo os dias.

Já com alguma preocupação, falei com o 2º Comandante, prometeu ir ver o que se passava, disse-me depois:
- Termina com as gravações senão vais parar a Piche!

Claro, continuei mas fora de horas... Terminada a comissão, com receio que algo pudesse acontecer, visto estar já referenciado, pedi a um amigo insuspeito que me trouxesse todo o material subversivo, onde tinha as gravações, livros, incluindo a Vida Mundial.

Este amigo, o 1º Cabo Machuqueira, como não fui na semana seguinte, da passagem à disponibilidade, levantar o referido equipamento, e com medo da PIDE/DGS, queimou todo o material, que lhe confiei. (...) (*)

Manuel Mata


2. Comentário de L.G. 

"Vida Mundial: o mundo numa semana" era uma revista semanal, propriedade da Sociedade Nacional de Tipografia, e diirigida por Francisco Eugénio Martins (desde c. 1939 até 1970). Em 1967 custava 5$00, conforme se pode ver na capa  nº 1463, de 23/6/67. [Cortesia do blogue A Lisnave].

Sete anos depois, custava os mesmos 5$00 (vd. capa da 1º edição sem censura, nº 1821, 3/5/1974; o diretor interino era o jornalista  Manuel Figueira). Por avião, cada nº custava 12$50 em Angola, 15$00 em Moçambique, 2 Francos em França, e  0, 45 dólares para o Canadá. Não sabemos qual seria o preço na Guiné, por avião.

Neste espaço de tempo, de meio século, por ela passaram muitos homens e algumas mulheres do jornalismo e das letras. A sua história está por fazer. Sabemos que houve uma renovação da revista nos últimos anos do Estado Novo. A Hemeroteca Digital (sítio da Hemeroteca Municipal de Lisboa, disponibiliza, integralmente digitalizado, um nº histórico, o 1821, de 3/5/1974, de que se apresenta aqui, à direita, a respetiva capa, com a devida vénia. (**)

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Guiné 63/74 - P12394: Convívios (552): IX Encontro do pessoal da CART 1742 (Os Panteras), levado a efeito no passado dia 26 de Maio de 2013 em Campeã - Vila Real (Abel Santos)

ALMOÇO/CONVÍVIO DO PESSOAL DA CART 1742 (OS PANTERAS) 
BURUNTUMA E NOVA LAMEGO, 1967/69 


Realizou-se no dia 26 de Maio de 2013 na bonita cidade transmontana de Vila Real, com ponto de encontro no Parque da Quintã, integrado na freguesia da Campeã, local onde os convivas apreciaram o coaxar das rãs que habitam no imenso lago ali existente.

De seguida a malta deslocou-se para a Igreja Matriz para acompanharem a Missa de Sufrágio por aqueles que já partiram.

Dali a malta dirigiu-se para o restaurante “ Do Alberto”, local onde fomos presenteados com um lauto manjar.

Depois da barriguinha (e não só) bem aconchegada, procedeu-se à distribuição, aos participantes, do certificado de presença do 9.º Encontro, acompanhado do Diário do anfitrião Mário Alves, que fala dos dias da actividade da CART durante a campanha na Guiné.

O 10.º encontro já está marcado para Leça da Palmeira, cujo anfitrião é o Abel Santos, e será no dia 31 de Maio de 2014, último sábado deste mês.

E assim, esta família passou mais um dia memorável, recordando o passado, mas vivendo o presente.

Um abraço e, já agora, um santo e feliz Natal para todos os combatentes.
Abel Santos.


Abel e Jaime Mendes, o nosso Porta-Guião

O anfitrião Mário Alves e Abel Santos

Foto do conjunto na frente da Igreja Matriz

Bolo comemorativo

Grupo musical que animou o convívio

O nosso anfitrião, Mário Alves, na difícil tarefa de partir o bolo
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Notas do editor:

Abel Santos foi Soldado Atirador da CART 1742 - "Os Panteras" que esteve em Nova Lamego e Buruntuma nos anos de 1967/69

Último poste da série de 29 DE NOVEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12362: Convívios (551): I Encontro dos "Errantes" da 3.ª Companhia do BCAÇ 4615/73 (Bassarel, 1973/74), acontecido no passado dia 8 de Setembro de 2013 em Lamarosa (António Tavares Oliveira)

Guiné 63/74 - P12393: O que é que a malta lia, nas horas vagas (6): Banda desenhada, coboiadas e o meu livro de cabeceira, "Manual de Medicina Doméstica", do dr. Samuel Maia, de mil páginas, que tinha como subtítulo "higiene, dietética, gimnástica, enfermagem, farmácia caseira, definição e tratamento das doenças, socorros de urgência" (Adriano Moreira, ex-fur mil enf, CART 2412, Bigene, Binta, Guidaje, Barro, 1968/70)





Anúncio do livro de Samuel Maia, "Manual de Medicina Doméstica" [1ª edição, Portugal-Brazil, 1910], in Ilustração, nº 242, 16 de janeiro de 1936, nº 242, 11º ano [Revista que custava na época 5$00 escudos, e era Propriedade da Livraria Bertrand.] (Cortesia da Hemeroteca Municipal de Lisboa...)


1. Comentário (*) do nosso camarada Adriano Moreira [, ex-fur mil, enf, CART 2412, 1968/70, foto da época, à esquerda]

É engraçado,  na Guiné em todos os sítios onde estive, acho que nenhum tinha biblioteca ou até qualquer arremedo de biblioteca. Não tenho ideia nenhuma de mesmo em Bigene haver.

Sendo assim só li banda desenhada e cowboyadas [coboiadas].

O único livro sério que levei e li as vezes que precisei,  foi o Manual de Medicina Doméstica,  escrito pelo médico dos Hospitais de Lisboa,  Samuel Maia.

Ajudou-me muitas vezes a tirar dúvidas e a proceder mais correctamente onde os meus apontamentos eram demasiado vagos, ou em capítulos [em que esses apontamentos eram omissos].

Por aquilo que me lembro,  achava também que não tinha o ambiente adequado à leitura de grandes obras.

Um grande abraço para todos.

Adriano Moreira,
Ex-Fur Mil Enf, Cart 2412
Bigene, Binta,  Guidage, Barro.

2. Comentário de L.G.:

É verdade, Adriano, a Guiné (, não digo Bissau ou Bubaque...) não foi propriamente uma colónia de férias para a maior parte de nós... Dizes, e muito bem, que no mato não havia "o ambiente adequado à leitura de grandes obras"... Muitos dos nossos aquartelamentos eram um amontoado de chapas de bidão, troncos de cibe e argamaça, a que chamavamos abrigos...

A segurança era a nossa primeira preocupação. E só muito depois é que vinha a decência, o conforto, o bem-estar (físico)... Alguns de nós levaram livros para a "comissão de serviço" no TO da Guiné,  mas depressa nos apercebemos que não estávamos propriamente em férias, num país tropical...

Por outro lado, poucos dos oficiais, que nos comandavam, se preocupavam com o que fazer nas "horas vagas" (... e muito menos com "os nossos seres, saberes e lazeres")... Alguns incentivaram, e bem,  a criação de postos escolares militares, abertos à população local amis jovem e às praças  sem  a escolaridade obrigatória (na época, equivalente à 4ª classe)...

Tínhamos, à epoca da guerra colonial, um problema sério de analfabetismo na população portuguesa, sem falar do analfatismo funcional (aplicável aos individuos que,  mesmo sabendo "ler, escrever e contar", não tinham desenvolvido a capacidade de interpretar textos e fazer operações matemáticas).  Recorde-se que em 1960, segundo o o censo, a percentagem da população residente com 10 e mais anos que não sabia ler nem escrever era de 26,6% e 39% para os homens e para as mulheres, respetivamente. Baixou, em 1970, para 19,7% e 31%, respetivamente. Infelizmente, não dispomos de dados do analfabetismo por grupos etários... (Fonte: Pordata  > Analfabetismo).

As nossas praças, sem escolaridade obrigatória, iam em geral para os serviços básicos (cozinha, etc.). Eram, depreciativamente, apelidados de "básicos". Na minha CCAÇ 2590 (mais tarde, CCAÇ 12), havia dois soldados básicos  o João Fernando R. Silva e o Salvador J. P. Santos, num total de meia centena de quadros e especialistas de origem metropolitana, E dos soldados dos recrutamento local, em cerca de 100, só 1 (o 1º cabo José Carlos Suleimane Baldé) sabia ler e escrever português...

Mas quantos aquartelamentos dispunham de "bliotecas ou de arremedos de bibliotecas" (leia-se: um armário com livros) ? A tua pergunta é pertinente.  E a tua resposta, espontânea, sincera, nada tem de "provocador":  "É engraçado,  na Guiné em todos os sítios onde estive, acho que nenhum tinha biblioteca ou até qualquer arremedo de biblioteca"

Ou seja, por onde andaste, em 1968/70, na região do Cacheu (Bigene, Binta,  Guidaje, Barro) não te lembras de ver umas simples prateleiras de livros, à disposição de oficiais, sragentos e praças... Restavam-te os livrinhos aos "quadradinhos", as coboiadas... e o teu livro de cabeceira, que para um furriel enfermeiro era uma "ferramenta de trabalho", o célebre "manual" do dr. Samuel Maia, de cerca de mil página, que tinha um título do tamanho de um comboio: Manual de medicina doméstica : higiene, dietética, gimnástica, enfermagem, farmácia caseira, definição e tratamento das doenças, socorros de urgência... Segundo as minhas contas, a primeira edição deveria remontar a 1910. Foi tendo sucessivas reedições, e pelo que vejo chegou ao teu/nosso tempo!

Fui encontrar, na revista Ilustração (num exemplar disponível, "on line", digitalizado pela  valiosíssima  Hemeroteca Municipal de Lisboa, correspondente á edição de 16/1/1936),  um anúncio do "teu" manual... Faço questão de publicar a respetiva imagem, em tua honra e dos nosos bravos furrieis enfermeiros...

Já agora ficas a saber algo mais sobre o Samuel Maia, um  um escritor popularíssimo, polifacetado, autor de vários bestsellers, no campo da literatura de divulgação médica, mas também da ficção e de outros domínios, e hoje completamente esquecido. Sobre ele diz a Infopédia o seguinte:

Médico, romancista, poeta e dramaturgo português, de nome completo Samuel Domingos Maia de Loureiro, nascido em 1874, em Ribafeira, Viseu, e falecido em 1951, em Lisboa. A ficção de Samuel Maia reflete uma evolução da tradição naturalista para a narrativa regionalista, centrada no contexto social e geográfico beirão. Colaborou em publicações periódicas como O Século, Jornal de Notícias, Diário Populare Ilustração. Fonte: Samuel Maia. In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2013. [Consult. 2013-12-05]. Disponível na www:

Por mera curiosidade, tens a seguir uma lista de 49 títulos do Samuel Maia, de acordo com a pesquisa feita na Porbase - Biblioteca Nacional.

Sabemos que foi também diretor da Ilustração, entre 1933 e 1935. Formado na Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa, nos finais do séc. XIX), o médico viseense é, além disso,  considerado um escritor, ficcionista,  de algum mérito, como antecessor do neorrealismo, com direito a referência na clássica História da Literatura Portuguesa, de António José Saraiva e Óscar Lopes.
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 4 de dezembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12389: O que é que a malta lia, nas horas vagas (5): Amante de Jorge Amado, Ferreira de Castro, Banda Desenhada, em A Bola as crónicas de Carlos Pinhão e dos muitos livros que me roubaram (Jorge Teixeira - Portojo)


 (**) Lista de obras da autoria de Samuel Maia (Viseu, 1874 -
Lisboa, 1951), de acordo com pesquisa na Porbase -Biblioteca Nacional
(organizada por ordem alfabética dos títulos)

[Foto do autor, à direita. Cortesia da página do Instituto Politécnico de Viseu]

A actividade celular e o vinho / Maurice Loeper ; com uma nota prévia do Dr. Samuel Maia. Lisboa : Ministério da Agricultura, 1937.
Acção das cantinas escolares / Samuel Maia de Loureiro. Lisboa : Instituto Geral das Artes Graphicas, 1909.
Augusto Monjardino / Francisco Gentil, Ferreira de Mira, Samuel Maia. [S.l. : s.n.], 1941.

Banhos de sol / Amílcar de Sousa ; pref. de Samuel Maia. Porto : Livr. Civilização, 1937.
Boa comida gôsto da vida : as velhas dietas e as actuais / Samuel Maia. Lisboa : Bertrand, 1940.
Braz Cadunha / Samuel Maia. Lisboa : Portugal-Brasil, 192 .
Breviário de medicina preventiva : para uso das famílias / Samuel Maia. Lisboa : Bertrand, 1942.

Congresso Nacional de Mutualidade : da acção da mutualidade maternal e infantil : criação de maternidades e de dispensários de assistencia infantil : as gotas de leite / Samuel Maia. [S.l. : s.n., 1900.

Dona sem dono / Samuel Maia. Lisboa : Bertrand, 1935.

Elogio do vinho / Samuel Maia. Lisboa : Livraria Bertrand. 1932.
Entre a vida e a morte / Samuel Maia. Lisboa: Rio de Janeiro : Companhia Editora Americana : Portugal-Brasil, 1920.
Este mundo e o outro / Samuel Maia. Lisboa : Bertrand, 1937.

Folclore e turismo / Samuel Maia. Lisboa : [s.n.], 1936.

História maravilhosa de Dom Sebastião imperador do Atlântico / Samuel Maia. Lisboa : Bertrand, 19 .
História maravilhosa de Dom Sebastião Imperador do Atlântico / Samuel Maia. [S.l. : s.n.], 1940.

Lingua de prata / Samuel Maia de Loureiro. Lisboa : Portugal Brasil, 192 .
Lingua de prata / Samuel Maia. Lisboa : Portugal-Brasil, 19 .
Livro da alma : versos / Samuel Maia. Porto : Oficina Occidental, 1894.
Luz perpétua : romance / Samuel Maia de Loureiro. Lisboa : Portugal-Brasil, 1923.

Manual de medicina doméstica / Samuel Maia. 6a ed. [S.l. : s.n.], 1947.
Manual de medicina doméstica / Samuel Maia. 5a ed. Lisboa : Bertrand, 194 .
Manual de medicina doméstica : higiene, dietética, gimnástica, enfermagem, farmácia caseira, definição e tratamento das doenças, socorros de urgência / Samuel Maia. 5a ed. Lisboa : Bertrand, 19 .
Manual de medicina doméstica / Samuel Maia. 4a ed. [S.l. : s.n.], 1940.
Manual de Medicina Doméstica / Samuel Maia. Segunda edição / Por Samuel Maia... Lisboa : Livr. Bertrand Rio de Janeiro : Livr. Francisco Alves. 1934.
Manual de medicina doméstica / Samuel Maia. Lisboa : Portugal-Brazil, 1910.
Methodo de leitura / Samuel Maia. Porto : José Figueirinhas Júnior, 1904.
Mudança de ares / Samuel Maia. 2a ed. [S.l. : s.n., 1938.
Mudança d'ares / Samuel Maia. [S.l. : s.n.], 1916.

O diabo da meia-noite : romance / Samuel Maia. Lisboa : Bertrand, 19 .
O diabo da meia-noite : romance / Samuel Maia. Lisboa : Bertrand, 194 .
O meu menino / Samuel Maia. 10a ed. Lisboa : Bertrand, 1961.
O meu menino : como o hei-de gerar criar e tratar se adoecer / Samuel Maia. Nova ed. Lisboa : Bertrand, 1955.
O meu menino / Samuel Maia. 8a ed. [S.l. : s.n., 1949.
O meu menino / Samuel Maia. 6a ed. [S.l. : s.n.], 1944.
O meu menino / Samuel Maia. 5a ed. [S.l. : s.n.], 1942.
O meu menino : como o hei-de gerar, criar e tratar se adoecer / Samuel Maia. Sétima edição. Lisboa : Livr. Bertrand, 1940.
O meu menino : como o hei-de gerar, criar e tratar se adoecer / Samuel Maia. 4a ed. Lisboa : Bertrand, 1938.
O meu menino / Samuel Maia. Lisboa : Portugal-Brasil, 1920.
O meu menino : como o hei-de gerar, criar e tratar se adoecer / Samuel Maia. 2a ed. Lisboa : Portugal Brasil, 1915.
O vinho : propriedades e aplicações / Samuel Maia. [S.l. : s.n.]. 1936.
O vinho : propriedades e aplicações : resumo de comunicações e pareceres aprovados nos últimos congressos médicos / Samuel Maia. 2a ed. Lisboa : Imprensa Portugal-Brasil. 1936.

Por terras estranhas / Samuel Maia. Lisboa : Typ. Mendonça, 19 .

Quem não viu / Samuel Maia. Lisboa : Bertrand, 194 .
Quentura sadia, friamente doentia / colab. Samuel Maia. Porto : Lit. Nacional, 1939.

Sexo forte / Manuel Maia. 4a ed. [S.l. : s.n.], 1941.
Sexo forte / Samuel Maia. 3a ed. [S.l. : s.n.], 1935.
Sexo forte / Samuel Maia. Lisboa : Portugal-Brasil, 1917.

Tratamento da prisão de ventre / Samuel Maia. Lisboa : Ofic. Ilustração Portugueza. 1915.

Variantes de prosódia / Samuel Maia. [S.l. : s.n.], 1948.

Guiné 63/74 - P12392: Crónicas das minhas viagens à Guiné-Bissau (José Martins Rodrigues) (8): Último dia nos Bijagós, em Bissau e na Guiné. Até um dia destes

1. Oitavo e último episódio da série do nosso camarada José Martins Rodrigues (ex-1.º Cabo Aux Enf.º da CART 2716/BART 2917, Xitole, 1970/72), dedicada às suas viagens de saudade à Guiné-Bissau, a primeira efectuada em 1998.




CRÓNICAS DAS MINHAS VIAGENS À GUINÉ-BISSAU

A PRIMEIRA VIAGEM - 1998

8 – Último dia nos Bijagós, em Bissau e na Guiné... até um dia destes

Eram as últimas horas em Bubaque e o retorno a Bissau, com a amarga sensação de que estes dias memoráveis na Guiné estavam a chegar ao fim. Como o voo para Bissau seria logo após o almoço, levantámo-nos bem cedo para desfrutarmos de mais umas horas na pequena, mas acolhedora piscina de água salgada. Foi uma manhã muito agradável, na companhia do jovem casal de noivos, e esticada até ao limite do possível antes do apronto final das bagagens e do último almoço nesta ilha.

Enquanto nos deliciávamos com uns mergulhos, apercebemo-nos da chegada do avião que nos levaria de regresso a Bissau. Acabado o almoço, na companhia de todos os hóspedes, ficamos aguardar ainda algum tempo que nos transportassem até à “pista” porque a tripulação da aeronave teria ido almoçar a outro lugar.

Durante a espera dei comigo a pensar que, exceptuando-se as semelhanças da natureza no interior da ilha, esta sociedade animista, fortemente baseada na influência das mulheres, não tinha qualquer registo nas minhas memórias. Esta estadia em Bubaque mostrou-me também uma outra realidade. Conheci uma Guiné que não se sente prisioneira de memórias da guerra, tal como é latente em qualquer pequeno rincão e nos habitantes do seu espaço continental.

Pensamentos! E por falar em pensamentos, é inevitável que nos assaltem alguns receios quanto ao voo para Bissau, já que não é fácil esquecer o atribulado episódio da aterragem que até aqui nos trouxera. Mas, como não havia alternativa, só nos restava confiar nos homens e na máquina.

De novo no jipe lá seguimos a caminho da “gare”, uma pequena construção de tijolos e chapa de zinco, uma torradeira aquela hora do dia para quem se atrevesse a ficar lá dentro. Aqui chegados, fomos surpreendidos pela presença de dois aviões estacionados. Um, era naturalmente o nosso já conhecido velhinho biplano, e o outro era um pequeno mas moderno, elegante e colorido aparelho em que predominava o azul e branco.
Perante a nossa admiração, o condutor do jipe informou-nos de que o aparelho pertenceria ao casal homossexual, que eram também hóspedes do hotel.

Chegara a hora da partida. Para além de nós e da tripulação, embarcaram também dois outros europeus que não conhecíamos, sendo um deles bastante “robusto” e que nos disse depois que era o proprietário do aparelho. Motores em marcha para o aquecimento e feitas as verificações finais o aparelho começa a mover-se lentamente, quando se gera algum burburinho a bordo. Alguém se terá apercebido de que uma nova passageira, que em marcha acelerada se dirigia para o aparelho, fazia sinais para que esperassem por ela. Imobilizado o aparelho, a senhora guineense bastante cansada e ofegante lá subiu e se acomodou num dos lugares ainda vagos. Este episódio fez-me lembrar situações semelhantes que acontecem na minha cidade com os transportes públicos. Tudo resolvido e o avião faz-se à pista. A descolagem decorreu normalmente e o avião deixa Bubaque, sobrevoando a praia que frequentamos e a ilha de Rubane.

Calados, expectantes e ansiosos, rogamos aos céus para que tudo corresse bem. Os últimos minutos da aproximação a Bissalanca foram de alguma turbulência mas, apesar disso, o aparelho tocou a pista com suavidade. Respiramos fundo. Com a recordação sempre presente da aterragem em Bubaque, exclamamos: desta já nos safamos.

Seriam cerca das 15 horas e aqui o calor apertava. Na gare, para além dos ocupantes do aparelho, não se via uma só pessoa. De malas nas mãos dirigimo-nos para a praça defronte da gare para se arranjar um táxi que nos levasse até ao Hotti Bissau. Também aqui era o vazio. Percebi que havia falhado ao imaginar que esse elementar serviço num qualquer aeroporto estaria sempre disponível. Estávamos a conhecer a realidade guineense e a “saborearmos” mais um dos encantos da África. O proprietário do aparelho, atento e percebendo o desconforto da situação em que nos encontrávamos, apressou-se a oferecer-nos boleia na sua viatura que estaria a chegar.

Deixou-nos depois no hotel, desta feita por poucas horas. Aqui instalados, fizemo-nos à magnífica piscina para um resto de tarde de relaxe e da contemplação do bonito enquadramento em que estava integrada. Outros europeus, sobretudo cooperantes, eram a nossa companhia neste hotel que era um pequeno paraíso neste pobre, mas único país. Programamos para marcar o fim da nossa estadia, um jantar no restaurante do hotel e convidamos o Candé a partilhá-lo connosco, aquele a quem passamos a considerar como Amigo e que muito contribuiu para o sucesso desta viagem.
Depois do prolongado jantar era a hora do transporte para o aeroporto, com uma paragem no Lusófono para uma última bebida antes do regresso a casa.

O avião partiu com o meu coração muito apertadinho por tantas emoções, mas de uma coisa eu tinha a certeza; voltarei um dia. Senti que uma semana é sempre muito pouco tempo para um primeiro retorno à terra em que vivemos uma parcela da nossa juventude, aquela fase da vida em que escolhemos e confirmamos as nossas opções para o futuro. Mas apesar disso, e como escreveu um dia a esposa de um amigo, nesta terra é possível num só dia lançar a semente à terra, ver crescer a planta e colher as suas flores. É assim nesta terra, os dias parecem imensos e vive-se docemente sem o stress da vida agitada da nossa sociedade. Aqui, são tantas e tão intensas as emoções que nos envolvem e tão grande o choque com as realidades sociais e humanas, que acabamos por crescer e a aceitar o mundo com as suas diferenças e aprendemos a ser mais tolerantes e solidários. Por isso, quando se vem à Guiné é indispensável trazer na bagagem uma atitude mental de disponibilidade para se aceitar as realidades que vamos encontrar. Não devemos comparar nada. Não comparem os preços nem as condições de higiene, não comparem a qualidade dos transportes nem a qualidade de vida. Não comparem nada, mesmo nada. E sobretudo, aceitem e respeitem os diferentes usos e costumes das diferentes etnias. Não se vem à Guiné para se provar nada. O que aqui me trouxe foi a procura das minhas memórias, dos lugares, das imagens e dos interlocutores das vivências do meu passado. Vim ao encontro da minha juventude. Em troca, recebi afectos que julgava perdidos e as mais efusivas demonstrações de amizade, de respeito e até de gratidão. Vá-se lá encontrar a explicação para esses sentimentos. Talvez até nem seja difícil.

Como algo fica sempre por fazer ou por ver, como a não concretização do ansiado encontro com Galé Djaló, voltarei um dia de coração ainda mais aberto, para rever esta terra e as suas gentes. Para os que me acompanharam nesta viagem, em especial a minha esposa que da Guiné só guardava os aerogramas do nosso tempo de namorados, todos ficaram maravilhados com o povo Guineense.
Abençoada viagem.

Neste momento, em que alinhavo os últimos retoques para dar por finda esta série (8) “CRÓNICAS DAS MINHAS VIAGENS À GUINÉ - A MINHA PRIMEIRA VIAGEM – 1998”, preparo-me para iniciar os contactos para voltar à Guiné em 2012, na minha quarta viagem. A seu tempo, para não correr o risco de ser repetitivo, vos darei um resumo dos momentos mais interessantes do conjunto das posteriores visitas e, por considerar que é no relato da primeira viagem que reside o maior encanto e a magia do reencontro com um passado, que é património da personalidade de cada um de nós.

Zé Rodrigues

Hotti Bissau, acesso à piscina

Deliciosos momentos

Restaurante Asa Branca, último almoço em Bissau

Regresso a Lisboa, paragem no Lusófono com o Candé

A minha primeira viagem à Guiné - 1998 (6) - Vôo para Bissau, estadia e regresso a Lisboa
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Nota do editor

Postes da série de:

17 DE OUTUBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12162: Crónicas das minhas viagens à Guiné-Bissau (José Martins Rodrigues) (1): A asfixiante e inadiável ideia de voltar

24 DE OUTUBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12195: Crónicas das minhas viagens à Guiné-Bissau (José Martins Rodrigues) (2): A minha primeira viagem em 1998

31 DE OUTUBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12226: Crónicas das minhas viagens à Guiné-Bissau (José Martins Rodrigues) (3): A minha primeira viagem em 1998 - A descoberta da nova realidade

7 DE NOVEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12260: Crónicas das minhas viagens à Guiné-Bissau (José Martins Rodrigues) (4): A caminho do Xitole, 26 anos depois

14 DE NOVEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12290: Crónicas das minhas viagens à Guiné-Bissau (José Martins Rodrigues) (5): O dia seguinte no Xitole com as pessoas

21 DE NOVEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12322: Crónicas das minhas viagens à Guiné-Bissau (José Martins Rodrigues) (6): Bubaque, a outra Guiné com sabor a férias
e
28 DE NOVEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12356: Crónicas das minhas viagens à Guiné-Bissau (José Martins Rodrigues) (7): Segundo dia em Bubaque, na descoberta do povo Bijagó

Guiné 63/74 - P12391: O nosso livro de visitas (170): O crachá da CCAÇ 1498, Có, Binar e Bissau (Joaquim Vidigueira Ferreira, ex-fur mil, Amadora)



Crachá da CCAÇ 1498 (Có, Binar e Bissau, 1966/67)

Foto: © Joaquim Vidigueira Ferreira  (2013). Todos os direitos reservados

1. Mensagem de 30 de novembro passada, enviada pelo nosso leitor Ricardo Vidigueira Ferreira

Luís Graça,
Junto envio emblema da companhia do meu pai (Furriel Miliciano Joaquim Vidigueira Ferreira), CCAÇ 1496,  BCAÇ 1876, para adicionar ao seu blogue.

Melhores Cumprimentos,
Ricardo Vidigueira Ferreira


2. Comentário de L. G.:

Muito obrigado, Ricardo, pela oferta, é sobretudo um gesto de ternura, para com o seu pai e os seus camaradas, querer partilhar connosco o crachá da CCAÇ 1498. É algo que eu muito aprecio nos filhos e netos dos meus camaradas da Guiné. Mas deixe-me dizê-lo, o blogue, este blogue, não é meu, é de todos os camaradas da Guiné que nele escrevem, que o editam, que o leem, que nele publicam fotos e histórias, que o divulgam, que o alimentam...

Dê um abraço ao seu pai e diga-lhe que queremos que ele se junte a nós!... Temos só 2 (duas) referências a esta companhia (*), ao fim de quase dez anos a blogar... Mande-nos fotos com legendas, incluindo uma foto antiga e outra atual do seu pai... Ele que se apresente à rapaziada, dizendo-nos por onde andou, com quem andou, o que se lembra da Guiné e das suas gentes, e já agora o que faz, onde mora hoje...  Quanto ao crachá, de "os vagabundos", diga-lhe que eu não conhecia, e que gostei: é singelo e original, e o seu lema é poético ("Chorou-vos toda a terra que pisastes").

Um abraço. Luis (**)

PS1 - A CCAÇ 1498 foi mobilizada pelo Regimento de Infantaria nº 2, em Abrantes, embarcou para o TO da Guiné em 20/1/1966 e regressou à metrópole em 4/11/1967. Esteve em Có, Binar e Bissau. Teve 3 comandantes: (i) ten inf Manuel Joaquim Fernandes Vaz; (ii) cap cav Miguel António Carvalho Santos Melo e Castro; e (iii) cap mil art Luis Filipe Anacoreta Soares.

PS2 - O BCAÇ 1876 foi mobilizado pelo RI 2, seguiu para o TO da Guiné em 20/01/1966 e regressou a 04/11/1967. Esteve em Bissau e em Bula. Comandante: Ten Cor Inf Jacinto António Frade Júnior. Companhias de quadrícula: CCAÇ 1496 (Bissau, Pirada e Bula), CCAÇ 1497 (Bissau, Fajonquito, Binar, Bissum-Naga e Bissau) e CCAÇ 1498 (Có, Binar e Bissau).


3. Resposta do Ricardo Vidigueira Ferreira, com data de hoje;

Boas, espero que desta o crachá chegue em condições. [Vai em formato.jpg].

Quanto ao meu pai, ele já tem 70 anos e mesmo sendo TOC/ROC [técnico e revisor oficial de contas] e continuando a exercer,  nunca foi voltado para as novas tecnologias (não usa nem sabe mexer num PC). No entanto já passei o endereço do vosso blogue a um camarada do meu pai e penso que oportunamente entrará em contacto convosco. (**)

Abraço,
Sent from my iPhone
Ricardo Vidigueira Ferreira
Alfornelos - Amadora
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Notas do editor:


Guiné 63/74 - P12390: Parabéns a você (659): Manuel Carvalho, ex-Fur Mil da CCAÇ 2366 (Guiné, 1968/70)

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Nota do editor

Último poste da série de 2 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12376: Parabéns a você (658): Herlânder Simões, ex- Fur Mil das CART 2771 e CCAÇ 3477 (Guiné, 1972/74)

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Guiné 63/74 - P12389: O que é que a malta lia, nas horas vagas (5): Amante de Jorge Amado, Ferreira de Castro, Banda Desenhada, em A Bola as crónicas de Carlos Pinhão e dos muitos livros que se me extraviaram (Jorge Teixeira - Portojo)

1. Mensagem do nosso camarada Jorge Teixeira (Portojo), (ex-Fur Mil do Pelotão de Canhões S/R 2054, Catió, 1968/70), com data de 2 de Dezembro de 2013:

Caros camaradas.
Esta coisa vai para o Vinhal, que julgo ser (ainda) o editor de serviço.

Não sei se se lembram, mas já lá vão uns tempinhos, que deixei a "boca" que era capaz de ser boa ideia criar-se uma série para as nossas músicas e livros dos velhos tempos. Seria uma forma de sair do ramerrame em que na altura a Tabanca se encontrava.

Pois bem, adiro esta causa com prazer. E com fotos.

Uma delas, muito imagem pessoal. Creio que é do Natal.68. Já navegou muito, a dita. Na messe nova dos Sargentos de Catió, assim chamada, haviam por lá as Bandas Desenhadas do Mikey e outras cenas equivalentes.
Claro que a foto foi feita para mandar para a família. Não me lembro de haver outro género de literaturas por lá. Nem quem levou para lá os livrinhos.


Fui sempre um amante de leitura deste pequeno. Era cliente habitual de um alfarrabista na Rua do Almada, por acaso era uma senhora a dona. Camiliana de todos os costados. Aprendi muito com ela. E comprava também livros na Civilização em suaves prestações de 20 escudos mensais.

Havia um senhor Sírio em Catió com uma loja tipo tem tudo - cujo nome não há maneira de me lembrar - a quem comecei a comprar livros entre outras coisas. Músicas também. Melhor discos. Como já conhecia Jorge Amado (Gaca 3, Paramos-Espinho, Dezembro 67 - Capitães da Areia lido na clandestinidade) tudo que consegui deste autor fui adquirindo. O único que chegou aos dias de hoje foi os Pastores da Noite. Os outros, incluindo uma edição antiga de Gabriela Cravo e Canela, alguém em Catió ficou com eles.

Como vim antes do pelotão para Bissau para fazer aquelas porcarias dos espólios e passagem do acervo para o substituto e etc., pedi para me encaixotarem as minhas coisas. Chegou tudo direitinho menos os livros. Que seriam mais de 20. Na minha colecção estava incluída uma edição recente (1967 ou 68) da Antologia Erótica e Satírica de Autores Portugueses da autoria de Natália Correia. Clandestino. Foi-me vendido pelo meu alferes Xarez na altura da nossa mobilização a trabalhar no ramo, ainda no Barco Niassa. 

Durante a minha estadia no Hospital Militar em Bissau, frequentei a Biblioteca que lá havia. Foi aí que conheci Ferreira de Castro e a Selva. Quando estive adido à CCS do BART 2865, do saudoso Tenente Coronel Belo de Carvalho e do tristemente célebre Major Melo, um 1.º Sargento, gente boa, de quem não me lembro o nome, natural de Coimbra, emprestava-me livros que tinha trazido consigo. Confidenciava-me que se sentia estúpido por não ter acesso a "coisas" para ler. E no meio de tanta ignorância, salvam-lhe as brincadeiras e os passatempos com alguns furriés. Bebíamos dele a sua sabedoria.



Os meus Pais de vez em quando mandavam-me o Jornal A Bola. Gostava desde há muito de ler o Jornal e especialmente as crónicas do Carlos Pinhão. Eram crónicas de Português puro e foi ele que me ensinou a distinguir "Estória" de "História".

A Selva comprei-a em 1970.
A Gabriela, provàvelmente a minha aquisição n.º 4 deste livro tem dois anos.
Todas as outras desapareceram com empréstimos.

Caro Carlos, aproveita daqui o que quiseres.
Um abraço do
Jorge
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Nota do editor

Último poste da série de 4 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12385: O que é que a malta lia, nas horas vagas (4): a revista "Flama", o jornal "A Bola"... e o livro de contos e narrativas do Armor Pires Mota, "Guiné, Sol e Sangue" (Braga, Pax ed., 1968) que havia na biblioteca... (Luís Nascimento, ex-1º cabo cripto, CCAÇ 2533, Canjambari e Farim, 1969/71)