terça-feira, 18 de agosto de 2015

Guiné 63/74 - P15017: Como Tudo Aconteceu (Manuel Vaz, ex-Alf Mil da CCAÇ 798): Parte III - A Guiné do Século XV e meados do Século XVI

1. Parte III do trabalho "Como Tudo Aconteceu", da autoria do nosso camarada Manuel Vaz (ex-Alf Mil da CCAÇ 798, Gadamael Porto, 1965/67), enviado ao nosso Blogue em 30 de Julho de 2015:


COMO TUDO ACONTECEU

PARTE III

A GUINÉ DO SÉCULO XV E MEADOS DO SÉCULO XVI


(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 30 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14949: Como Tudo Aconteceu (Manuel Vaz, ex-Alf Mil da CCAÇ 798): Parte II - A costa da Guiné

Guiné 63/74 - P15016: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (16): De 23 de Junho a 6 de Julho de 1973

1. Em mensagem do dia 13 de Agosto de 2015, o nosso camarada António Murta, ex-Alf Mil Inf.ª Minas e Armadilhas da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74), enviou-nos mais uma página do seu Caderno de Memórias.


CADERNO DE MEMÓRIAS
A. MURTA – GUINÉ, 1973-74 

16 - De 23 de Junho a 6 de Julho de 1973


23 de Junho de 1973 – (sábado) – Aldeia Formosa; Descanso

Dia de descanso sem nada de especial a assinalar. Em Nhacobá não tem havido problemas, salvo o problema das minas.
O camarada Alf. J. A. C. P. falou comigo sobre a eventualidade duma estadia minha em Nhala como Cmdt. Int.º da nossa Companhia, uma vez que o Alf. C. L. já lá está há bastante tempo e o seu grupo está aqui em Aldeia Formosa, como os demais, mas comandado apenas por um furriel por o outro ter ido de férias. Concordei e ele falou com o Major M. D. que acedeu. Parto amanhã na coluna que vai a Buba e, no regresso da mesma a Aldeia Formosa, virá o C. L. Falei aos meus soldados à noite. Ficarão comandados pelos dois furriéis.


24 de Junho de 1973 – (domingo) – Aldeia Formosa; Nhala: o descanso merecido e os problemas

Parti de manhã com destino a Nhala, onde cheguei relativamente cedo. Troquei impressões com o camarada C. L. sobre o comando da Companhia e questões pendentes.

Finalmente vou ter oportunidade de descansar aqui algum tempo, se bem que estejam sempre a surgir pequenos problemas para resolver, mas que, comparados com a minha recente actividade operacional, são meras mesquinhices. Lamento apenas que, comigo, não pudessem ter vindo os meus soldados, esses sim, mais do que eu a precisarem de descanso e bom trato. É que eu, além de ter um tratamento diferente do deles, tenho a possibilidade de matar a fome bastando, para isso, abrir o porta-moedas. E eles? Como sobrevivem? Eles, a quem até os cantineiros negam uma cerveja se não tiverem dinheiro trocado. E, o pior, é que por cá não há trocos. Já tenho pago caixas de cerveja ao pessoal mas, infelizmente, não o posso fazer sempre.

Aqui em Nhala estão agora, além da Formação [?] da minha Companhia, a CCAÇ 3400 completa, do Capitão M.. Este anda totalmente desmoralizado, traumatizado mesmo, e em momentos de crise torna-se insuportável mas, até ver, não me causou problemas. Eu limito-me a assinar dezenas de papéis por dia e a resolver esta ou aquela chatice que, quase sempre, surgem com o pessoal ou com a população. Nada de grave até à data. A possibilidade aventada de um ataque em grande escala a Nhala continua de pé, se bem que, ultimamente, se dê menos importância ao facto.

Gabinete do Comandante. de Companhia de Nhala: Eu e o Fur. J. R., meu colaborador e amigo.


Da História da Unidade do BCAÇ 4513: 

JUN73/25 – Recebemos a visita do Exmo. CORONEL LEITÃO, CMDT DO CAOP-1

-  Terminaram hoje os trabalhos do Destacamento Engenharia na desmatação da periferia do Destacamento de NHACOBÁ, deixando portanto de haver companhias do BCAÇ empenhadas na protecção dos trabalhos de Engenharia.


Do meu diário: 

25 de Junho de 1973 – (segunda-feira) – Nhala: o descanso e o lazer

Hoje estou de Oficial de Dia, mas sem nada de especial para fazer, a não ser marcar presença no içar e arrear da bandeira, e providenciar os cuidados para o bom funcionamento e aspecto do aquartelamento. Rotinas.

Actualmente estou a dormir na tabanca do C. L., onde tenho relativa comodidade. Além de poder dormir descansado numa boa cama de madeira, tenho bastante espaço e uma boa ventoinha, além de que, o espaço interior é agradável. É que a minha tabanca ficou em péssimo estado aquando do tufão que por aqui passou há pouco tempo.

Hoje aproveitei a manhã a revelar filmes (película) no meu pequeno “estúdio”, para à noite poder passar umas horas a fazer fotografias. É um passatempo interessante e lucrativo, e o meu maior receio é que tenha de sair um dia definitivamente daqui para uma localidade que não tenha luz eléctrica. À noite, afinal, passei largas horas a ler o “Papillon”, o que me dá imenso prazer.

Nhala, 1973 – Aspecto geral da tabanca e da minha palhota.

Nhala. Arrear da bandeira quando entrava um Grupo de Combate.

26 de Junho de 1973 – (terça-feira) – Nhala; Nós e o IN

Levantei-me tarde hoje e nada fiz a não ser ler o Perintrep, (documento do QG enviado aos Comandantes de Companhia, de cariz confidencial e que deve ser incinerado 72 horas após a recepção). Este documento revela factos extraordinários, tanto sobre a nossa actividade operacional, como da actividade IN, potencialidades materiais IN, resenha dos acontecimentos importantes referentes ao período corrente, etc. Face a tais informações, ficamos cientes de que temos pela frente um IN cada vez mais numeroso, bem organizado e melhor armado que nós, fazendo supor um futuro de dificuldades crescentes.


Da História da Unidade do BCAÇ 4513: 

JUN73/27 – Conforme DIRECTIVA OP do CCFA o BCAÇ 4513 torna-se independente operacionalmente do BCAÇ 3852.

[Acrescenta o Doc Resumo dos Factos e Feitos do BCAÇ 4513]. (...) passando a actuar como Batalhão de Intervenção na Região de CUMBIJÃ-NHCOBÁ.

JUN73/29 – Desloca-se para o Destacamento de CUMBIJÃ o PC (posto de comando) do BCAÇ 4513, PEL REC e PEL SAP e 2.ª CCAÇ.

JUN73/30 – GR IN NESTM (Grupo IN não estimado) destrui com explosivos dois pontões na estrada MAMPATÁ-CUMBIJÃ.

[(Agosto/2015) - Viviam-se tempos difíceis em toda a região sob a responsabilidade de Cumbijã e, os tempos que se avizinhavam, a piorar o cenário, eram de incerteza e de incompreensão face ao que pretendiam os mais altos responsáveis militares. Adivinhava-se uma situação perto do colapso ou ruptura. Para se perceber melhor as sucessivas queixas e lamentos anotados à época no meu diário, transcrevo partes do resumo da actividade do mês de Julho/73, – hoje, com estes dados à mão, é fácil de entender -, referida no 2.º Fascículo (Período de 01JUL a 31JUL73) – HU-CAP II / págs. 9 e 10, com sublinhados meus a negrito:]

“SITUAÇÃO GERAL

Durante o período o Comando do Batalhão continuou sediado em Cumbijã, cumprindo a sua missão de intervenção numa área atribuída pelo COMANDO CHEFE, limitada a leste pelo RIO SARE HAGI, a norte pela picada MISSIRÃ-BOLOLA, a oeste pelo RIO SALANQUEUAL e a sul pelo RIO CUMBIJÃ.

De toda a esta área no início do período apenas era conhecida pelas NT uma pequena parcela. Havia que tornar mais extensos os patrulhamentos, que desvendar os mistérios das áreas ainda não exploradas, que criar ao IN sensação de insegurança e quanto possível fazê-lo abandonar a área atribuída à nossa responsabilidade. No entanto esta área abrange a região do UNAL, confluência dos corredores de abastecimento do IN, que do antecedente constitui um dos seus pontos fortes, concentrando ali, além da sede do seu 3.º CE, 5 bigrupos de Infantaria, uma Bat. Artª., um Pel. AA, e ainda um bigrupo de Fuzileiros e presumivelmente 1 grupo de mísseis. Torna-se pois pelos efectivos referenciados, como pela dificuldade de acesso, como ainda pela importância que a sua manutenção tem para a sua estratégia, um objectivo extraordinariamente difícil para as NT, agora agravado pelas limitações de apoio da nossa Força Aérea”.

[Quem foi que disse que nunca chegaram a haver estas limitações?].

“De acordo com o planeamento elaborado, são levadas a efeito sucessivamente acções sobre LENGUEL, SAMENAU, TUNANE, SAMBASÓ e BRICAMA. (...).
A seguir era o UNAL. [Isto tem qualquer coisa de evangélico e profético!]. (...) Como ir ao Unal? Tentando reconstruir o pontão? Fazendo a progressão no sentido N/S a partir de Buba? Optámos pela primeira modalidade, que embora nos pareça mais vulnerável tem a grande vantagem de ser mais próximo do objectivo, favorecendo qualquer necessidade de evacuação”.

[Afinal, foram usadas a primeira e a segunda modalidades e mais que houvessem... Estive na 1.ª e, na 2.ª esteve o meu grupo sem mim por motivos de saúde, mas deu para eu perceber que, ainda tão longe do Unal e já a “porta” que nos barrava o caminho era completamente blindada a tontices... Não era com cordões humanos infindáveis a caminhar pela mata, denunciando a intenção logo à partida, que chegaríamos ao Unal. Dizia-se que antes, muito antes, tinham sido lançadas sobre as imediações do Unal tropas especiais que nada conseguiram. A completar, (sublinhado a negrito), para se perceber o estado das nossas tropas, tantas vezes referido no meu diário, transcrevo a parte final do documento já referido].

“O pessoal começa a denunciar sintomas de cansaço consequente do ritmo de actividade que lhes tem sido exigida, agravada pelas deficientes condições de repouso, pois há mais de 3 meses que dormem em colchões pneumáticos, muitos deles, em barracas de lona”.


Da História da Unidade do BCAÇ 4513:

(Sublinhados meus a negrito)

JUL73/04 - Inicia-se praticamente nesta data uma batida a zonas nunca dantes patrulhadas pelas NT
Forças da 1.ª, 2.ª e 3.ª CCAÇ, durante a acção “OVIEDO”, patrulham a região de SAMENAU e TUNANE, tidos como locais em que o IN se encontrava instalado. É a primeira acção que se realiza para esta área. O IN não foi encontrado, embora fossem detectados vestígios da sua presença. Foi detectada e levantada em SAMENAU 1 mina antipessoal PMD-6.

JUL73/05 - Forças da CCAV 8351 durante a acção “OTÍLIA”, na região de SAMBASÓ detectaram e destruíram 1 palhota celeiro que continha estimadamente 1 Ton de arroz, aproximadamente a 50 metros desse local detectaram a destruíram 100 atados de capim.


Do meu diário:  

6 de Julho de 1973 – (sexta-feira) – Nhala; Notícias desanimadoras

Porque não tem havido nada de especial, só hoje faço umas anotações. Aqui em Nhala tudo continua normal. Tenho tido imensos problemas para resolver nesta inopinada qualidade de Comandante de Companhia. Surgem com a população, surgem com os elementos da minha Companhia, (os que estão aqui e os que estão em Cumbijã), e surgem com o Comando do Batalhão, de quem recebo constantemente mensagens ou simples correspondência confidencial.

A única coisa a quebrar a monotonia, por aqui, continuam a ser as colunas que, de passagem, sempre trazem caras novas e notícias, além da nossa correspondência. Soube, através de elementos das colunas, que o IN não tem causado problemas no que diz respeito a flagelações, mas, pela terceira vez, fez ir pelos ares os dois pontões da estrada alcatroada entre Mampatá e Colibuia.

A minha Companhia, excepto a Formação que está aqui comigo, foi transferida de Aldeia Formosa para o inferno de Cumbijã e, ao que parece, definitivamente. Só de pensar nisso fico com ansiedade. Não que tenha medo da actividade IN que na zona é um bocado intensa, mas porque Cumbijã é um “buraco” onde não se tem o mínimo de condições para viver. Demasiada tropa e, agora, com o comando do Batalhão lá instalado. (...).

Nhala, 1973. Cair da noite sobre Nhala. Podem ver-se as garrafas de alarme aos pares no arame farpado.

(continua)

Texto e fotos: © António Murta
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Nota do editor

Poste anterior da série de 11 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P14993: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (15): 19 a 22 de Junho de 1973

Guiné 63/74 - P15015: Nas férias do verão de 2015, mandem-nos um bate-estradas (21): Esta Europa vai definhar por anemia, implosão e autofagia (Francisco Baptista)

1. No seu bate-estradas do dia 9 de Agosto de 2015, o nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), fala-nos da nossa velha Europa.

A minha mulher pediu-me para fazer algumas compras num super-mercado próximo. Antes de ir lá decidi passar pela minha amiga Lurdinhas, dona da tasca Badalhoca, a comprar dois tocos de presunto que podem ser bons para cozer e descarnar o bom presunto que têm, como para comer cru. O presunto junto do osso é o mais seco e o melhor.

Depois duma conversa amigável e apimentada, pois a Lurdinhas conforme o tom da conversa tanto pode chamar-me meu grande amigo como outros nomes que na gíria do Porto antigo e popular serão aceitáveis ou não, para isso tem que se pedir aos clientes que tenham olhos e ouvidos sensíveis, pois para além da audição conta muito expressão.

Depois fui ao banco onde uma funcionária simpática me disse que as minhas fracas poupanças depois de terem acabado o depósito a prazo só poderiam ter um juro de 1 por cento ao ano. Chegámos a tal ponto que para termos bancos como os países ricos, vamos ter que pagar a essa corja de ladrões, banqueiros, políticos e associados, que vão à falência mas quem fica na miséria somos nós.

Saí do banco, pouco confortado, mas sem vontade de descarregar a minha raiva sobre uma simples funcionária, a quem não podia imputar responsabilidades e para mais uma senhora, entre os 30 e 40 anos tão simpática e que nem será muito bem paga.

Depois fui ao supermercado fazer as compras. Dirigi-me a uma caixa. À minha frente estava somente uma cliente com bastante compras, na caixa ao lado estava uma jovem senhora africana, de aspecto urbano e delicado, com cerca de vinte cinco anos, que empurrava uma bebé num carrinho. O jovem de serviço da caixa contabilizou os artigos da senhora que somavam 24 euros e pouco. A cliente meteu um cartão multibanco que me pareceu tanto a mim como ao jovem da caixa ela não sabia utilizar muito bem. Depois de algumas tentativas e ensinamentos o "caixa" chegou à conclusão que o cartão não teria dinheiro de saldo. A jovem senhora em face disto, puxou da carteira e deu vinte euros, procurou outros trocos que não encontrou. Como tal começou a retirar artigos, talvez os menos necessários, o primeiro não recordo, sei que o segundo era massa italiana, o terceiro que o rapaz da caixa ia retirar-lhe do saco, não sei se eram batatas, ela não deixou, protege-o até como se do pão da vida se tratasse.

Logo atrás dela estavam três cavalheiros, com cerca de sessenta e tal, setenta anos. O que estava mais próximo começou a olhar para a senhora e para a menina no carrinho, com algum mal-estar patente na sua expressão facial. De repente vi-o tirar uma nota de dez euros da carteira que deu à senhora e dizer ao caixa: Por favor volte a meter tudo no saco. A jovem, muito agradecida, pagou e devolveu-lhe os 5 euros e tal do troco, apesar da insistência dele para que que ficasse com eles.

A seguir reparei que este homem depois de fazer essa dádiva, como quem se liberta de um pesadelo, ficou mais calmo. Reparando melhor eu reconheci o homem como sendo um camarada, ex-furriel que me disse uma tarde escura, sem sol, sem pássaros, com chuva, que tinha estado no norte de Moçambique. Era o camarada que encontrei, no Inverno, à saída de uma churrasqueira onde fui lanchar com três amigos para alegrar um pouco esse dia. Esse camarada com a pele já bastante curtida e engelhada pelo vento, pelo tabaco ou pelas agruras da vida, que me pareceu mais velho do que os anos que contava. Era o mesmo camarada que me tinha dito com tristeza que tinha conhecido e sentido a guerra em Moçambique, enquanto fumava um cigarro à porta do restaurante.

Muitas vezes, aos que por lá andámos, com pouca ou muita guerra, sobra-nos guerra para toda a vida. Uns digerem melhor do que outros as situações fáceis ou difíceis. Uns falam muito dela, outros não dizem nada, outros falam dela mas evitam falar das situações mais dolorosas. Alguns procuram guiar-se através duma memória muitos anos adormecida para trazer à tona essa realidade esquecida e só recordada em pesadelos.

Recordo-me dum cadete em Mafra que na carreira de tiro quando chegava a vez dele não conseguia disparar e punha-se a chorar, porque dizia ele que no alvo via um homem. Não é difícil entendê-lo, não há qualquer premonição nessa visão, afinal nas guerras os homens matam-se uns aos outros. Em Mafra como em tantos quartéis de Portugal estávamos a ser treinados para matar. Muitos perderam a guerra antes de chegarem à Guiné, uns por não acreditarem na vitória, outros por não acreditarem nas razões da luta. Entre eles estavam sobretudo oficiais e sargentos que por serem mais instruídos, tinham mais capacidade e informação, para pôr em dúvida a politica ultramarina do governo da ditadura.

Em Buba dei-me conta que a maioria dos militares do meu pelotão não punham em causa a defesa das colónias e a politica ultramarina do governo. Nesse tempo o atraso politico cultural e educacional em sentido lato era muito grande. Não minto se disser que pelo menos metade dos soldados do meu pelotão fizeram a quarta classe em Buba. Poucas fotografias trouxe da Guiné, na aldeia do interior norte do país onde me criei, os meninos e garotos como eu não tinham direito a fotografias, não havia máquinas nem fotógrafos, já na juventude não lhe senti a falta, não faziam parte da minha cultura que se alimentava mais da palavra escrita, a literatura sempre me fez sentir uma grande emoção estética. Só mais tarde me apercebi que a fotografia pode contar grandes histórias humanas, sociais e naturais.

Eis o meu pelotão da CCac 2616, desarmado, confesso que com armas se sabiam bater como leões, a opção da fotografia sem armas terá sido minha. 

Esta fotografia foi-me amavelmente remetida pelo António Granja, soldado do pelotão. Tenho pena de não ter uma foto semelhante do pelotão da CArt 2732, de Mansabá, onde estive sete meses. Tanto num pelotão como noutro conheci homens solidários e corajosos, a maioria deles, quase todos. Os nossos soldados eram os descendentes iletrados dos nossos marinheiros dos séculos quinze e dezasseis, que guardavam ainda a autenticidade e a bravura dos antigos lusitanos. Nas suas veias corria ainda o sangue duma Pátria milenar e vibravam ainda com a glória duma bandeira desfraldada orgulhosamente por todos os mares e continentes da Terra. A ditadura que lhes garantiu uma existência esfomeada deu-lhes também uma educação escassa, perseverando-os de ambições materiais para lá da alimentação necessária à vida. No seu espírito, imune às diferentes ideologias dum século em conflito, desprovido de ideais, cultivou com êxito o patriotismo e os valores da tradição gloriosa da Pátria.

Por vezes penso que atendendo ao espírito de sacrifício e à coragem dos nossos soldados, se eles tivessem comandantes que os motivassem e os soubessem orientar na arte da guerra, venderiam bem cara a derrota ou o abandono dos territórios ultramarinos, que dadas as circunstâncias adversas da politica internacional, com a conjugação do bloco comunista e capitalista, apostados na descolonização, tornaria muito difícil ou impossível a vitória.

Quando saí do super mercado, vi que a jovem africana tinha outra filha, que tinha ficado a brincar fora, com 5 ou 6 anos e a quem falou em francês. Deduzi, não sei se apressadamente, que seriam naturais do Senegal, da Guiné Conakri ou de outro país francófono africano. A sociedade de consumo é uma sociedade canibal já que tem sempre que andar à procura de recursos e matérias primas que irão empobrecer e matar povos menos desenvolvidos politica, social e tecnologicamente. Quando se fala nos pedidos de perdão dos grandes erros do passado, da Inquisição por parte da Igreja, de alguns povos pelos morticínios que fizeram noutros, era já tempo da Europa inteira indemnizar toda a África pela exploração dos recursos humanos e naturais que fez nos últimos séculos e que continua a fazer através de muitos políticos africanos corruptos, que tal como tantos ocidentais, somente vêem o bem deles, esquecendo o bem comum.

Li ontem um poste, P14985, muito elucidativo, de um nosso camarada que lutou em África, trabalhou em África, percorreu parte dela. Passo a citar um parágrafo dele: "A Europa vai pagar tudo com juros suportando as reclamações dos jovens africanos, pois é apenas a reclamar, aquilo que os africanos estão a fazer em Calais e no Mediterrâneo e em Ceuta. António Rosinha".

A velha Europa que se cuide pois os africanos já provaram tanto no Novo Mundo, como no Mundo Antigo que sabem resistir a todas as guerras e calamidades. Pelos seus conhecimentos, pelas suas vivências, pela sua seriedade, pela sua lucidez, o António Rosinha para mim é, o africanista, o analista político deste blogue, que melhor sabe interpretar a desgraça desses pobres do mundo que vindos do sul tentam atravessar o mar Mediterrâneo, onde muitos encontram a sepultura, quando tentam entrar na Europa, essa terra de promessas e ilusões. Por todas as regiões da Terra para onde se deslocaram ou para onde foram vendidos como escravos, os africanos estão em crescimento. Não se deixaram abater por doenças ou por guerras e morticínios como milhões de índios da América do Sul e do Norte. Os africanos continuam em expansão e os povos guardam por séculos a memória do bem ou do mal que lhes fizerem.

O meu pensamento dispara e divaga pela história antiga e pelo futuro que não é história e a mim parece-me que a Europa será submergida por vagas e vagas de povos africanos e orientais. Os povos demograficamente mais produtivos e menos decadentes, tomarão conta da Europa, tal como os Vândalos, Suevos, Visigodos, Francos, os Iberos e Celtiberos, os Germânicos e outros, tomaram conta do Império Romano do Ocidente no século quinto da nossa era. A Europa de tantas guerras, entre dois povos ou entre várias povos em aliança, uns contra outros, no último milénio foram guerras sem fim, guerras intermináveis, até houve uma guerra dos 100 anos, guerras cruéis e execráveis, piores em selvajaria e desumanidade do que as piores guerras de qualquer continente. Esta Europa que já não pode fazer a guerra, (as bombas nucleares só intimidam, não são para utilizar) para resolver ódios antigos e conflitos nunca resolvidos e para se revitalizar, vai definhar por anemia, implosão, autofagia.

A todos até breve.
Nove de Agosto de 2015, num dia de calor, aqui neste ponto do extremo ocidental da Europa.
Francisco Baptista
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Nota do editor

Último poste da série de 13 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P14999: Nas férias do verão de 2015, mandem-nos um bate-estradas (20): Recordações "non gratas" da guerra da Guiné Operação Tridente (José Colaço)

Guiné 63/74 - P15014: Parabéns a você (946): Alice Carneiro, Amiga Grã-Tabanqueira de Lisboa e António Melo de Carvalho, Coronel Inf Ref, ex-Cap Inf CMDT da CCAÇ 2465 (Guiné, 1969/70)


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Nota do editor

Último poste da série de 17 de Agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P15011: Parabéns a você (945): José Manuel Cancela, ex-Soldado Apontador de Metralhadora da CCAÇ 2382 (Guiné, 1968/70)

segunda-feira, 17 de agosto de 2015

Guiné 63/74 - P15013: Notas de leitura (748): “Do Colonialismo como Nosso Impensado", Organização e Prefácio de Margarida Calafate Ribeiro e Roberto Vecchi, Gradiva Publicações, 2014 (Mário Beja Santos)





1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Setembro de 2014:


Queridos amigos,

Eduardo Lourenço é seguramente dos pensadores portugueses aquele que mais perduravelmente refletiu sobre os mitos que acompanharam a matriz colonial e as ficções do Império. De 1960 em diante, opositor ao salazarismo, crítico profundo da política ultramarina adotada por Salazar, Eduardo Lourenço foi uma voz persistente na descolonização, deixou páginas culturais luminosas sobre Camões, a historiografia de Alcobaça, a mitologia do MFA convertido milagrosamente em movimento de libertação.

Rijo e contundente, falando de Camões e da aventura dos Descobrimentos, devemos-lhe uma das frases mais incómodas para o nosso caráter, de vários comentários obrigatórios: “Sempre habitámos um espaço maior que nós e por isso mesmo sem sujeito, parte da verdade da nossa imperial ficção”.

Um abraço do
Mário


 
A mitologia do colonialismo, segundo Eduardo Lourenço

por Beja Santos 

Figura proeminente do pensamento português, Eduardo Lourenço levou décadas a refletir sobre o colonialismo português e foi uma presença constante em todo o tempo da descolonização, foi uma das vozes que nunca esmoreceu em período tão crítico. Desse trabalho incessante, contundente, dessa agudeza em artigos e papéis que ficaram no baú vem em boa hora a público o livro “Do Colonialismo como Nosso Impensado", Organização e Prefácio de Margarida Calafate Ribeiro e Roberto Vecchi, Gradiva Publicações, 2014.

A palavra mito e tudo quanto a ela está inerente é uma constante na escrita de Eduardo Lourenço e a sua leitura de Portugal. Como ele escreve logo na nota prévia, a propósito da complexidade do colonialismo português: 

“As mitologias sobre as quais o colonialismo se articulou mostram algo de nosso e muito profundo: a identidade de um país que pela maior parte da sua história se construiu por fora, evitando assumir o seu olhar interior, o que ele era por dentro”

Logo a propósito das comemorações henriquinas de 1960 desmonta as falsidades e os equívocos da mestiçagem e denuncia Salazar como um explorador da mitologia histórico-sentimental dos portugueses e diz abertamente: 

“Salazar utiliza o sentimentalismo, o anacronismo épico do seu povo com a sem-cerimónia com que um professor de música se serve do piano velho dos alunos”

Denuncia o paradoxo brutal de um regime apologético do multirracial e que apoiava, com os ademanes do oportunismo mais rasca, o apartheid sul-africano. Denuncia igualmente a pobreza de ideias de oposição democrática, o contraste entre a mitologia colonialista e a realidade colonial e dá como exemplo uma tirada do coronel Viana Rebelo em que num texto intitulado “Perder Angola”, alertava deste modo caso se perdesse a colónia: 

“Implicaria as consequências seguintes: vinte mil Brancos e alguns milhares de Negros, desejosos de permanecer portugueses, viriam estabelecer-se na Metrópole; oitenta milhões de litros de vinho deixariam de ser exportados para Angola; trezentos e oitenta mil contos de tecidos fabricados pelas nossas fábricas; não teria mercado assegurado, etc. A perda de Angola, iria criar uma crise de emprego na Metrópole, uma redução do crédito internacional, a desaparição de um grande consumidor dos produtos portugueses”

Era a visão das colónias como mercado seguro para a produção portuguesa.

Mitologia da farronca, e Eduardo Lourenço cita das Novelas Ejemplares, de Cervantes, o seguinte: 

“Andámos engañando al mundo com el oropel de sus greguescos rotos y sus latines falsos, como hacen los portugueses com los negros de Guinea”

E comenta: 

“A alienação colonial é a mais tenebrosa e desenraizável de todas pois lisonjeia o natural amor-próprio que os povos a si mesmo se votam, embora não seja filha da nação inteira mas tão-só de uma certa classe nela interessada”

Põe a nu o caricatural de uma presença portuguesa que não foi mais do que uma presença intermitente e na generalidade dos casos bem recente. Invoca os Lusíadas, o canto da desproporção entre a pequena casa lusitana e os mares abertos, a desproporção grandiosa entre o agente e ação. 

Ao pôr em revista a história trágico-marítima, a historiografia de Alcobaça, a exaltação de um Brasil como país-irmão, iludindo a sua independência, Eduardo Lourenço desvia as suas reflexões para o que se vai passar em torno do 25 de Abril, no labirinto dos epitáfios imperiais: a teimosia em insistir em autodeterminação quando era irrevogável o sentido da independência. E escreve em 1976:

Desse Império mais de sonho compensador do que de verdade, com o seu cortejo centenário de violências visíveis ou invisíveis, não devem os portugueses guardar nenhuma nostalgia malsã”

Apelo curioso para quem em 2014, e a propósito do Império e da descolonização irá escrever: 

“Na sociedade portuguesa o trabalho de luto, em todas as suas dimensões psicanalíticas e coletivas, não foi completado, até só parcialmente começou”

Premonitoriamente, escrevera em Março de 1990: 

“A verdadeira descolonização deixámo-la em herança aos colonizados. E como toda a gente sabe essa ainda mal começou”.

Não sei que outro ensaísta aprofundou mais o estudo sobre a ficção do Império e a nossa desmesura que Eduardo Lourenço, lembrando-nos cruamente que sempre habitámos um espaço maior do que nós e por isso mesmo sem sujeito. Daí, para os portugueses de todas as idades, a importância fundamental em ler cronologicamente “Do Colonialismo como Nosso Impensado”.
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Nota do editor

Último poste da série de 14 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P15003: Notas de leitura (747): “A Epopeia da LDM 302”, por A. Vassalo, em BD, Edições Culturais da Marinha, 2011 (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P15012: Convívios (703): 1º encontro da tabanca de Ferrel, 12 de agosto de 2015 - Parte III (e última): seleção de fotos de Luís Graça


Tabanca de Ferrel > 12 de agosto de 2015 > 1º Convívio > Duas dezenas e meia de convivas, oriundos dos concelhos de Peniche e Lourinhã, mas também do Cadaval,  juntaram-se para celebrar, no "querido mês de agosto", a amizade e a camaradagem.



Tabanca de Ferrel > 12 de agosto de 2015 > 1º Convívio > O régulo da Tabanca de Porto Dinheiro (Lourinhã), que fez a convocatória do pessoal e trouxe as sardinhas, aqui com o seu neto "espanhol"... Um dos seus filhos vive e trabalha em Madrid... que este país, "à beira-mar plantado", é pequeno demais para tanta gente jovem que, se hoje não tem o fantasma da guerra a hipotecar o seu futuro próximo, tem que enfrentar  realidade, não menos brutal,  da precariedade do emprego e da falta de trabalho... (Recorde-se que o Eduardo Jorge Ferreira foi alf mil da Polícia Aérea, BA12, Bissalanca, 1973/74).


Tabanca de Ferrel > 12 de agosto de 2015 > 1º Convívio > Avó e neto... Uma "bajuda", a São,  que passou a adolescência em Bissau, onde o pai trabalhava nos CTT, na parte das telecomunicações...


Tabanca de Ferrel > 12 de agosto de 2015 > 1º Convívio > > O Pinto Carvalho e a sua "bajuda",  Maria do Céu... Vieram do Cadaval, onde os negócios hoteleiros continuam prósperos...


Tabanca de Ferrel > 12 de agosto de 2015 > 1º Convívio > > Pinto Carvalho e, na mesa, o João Sacôto e esposa, em conversa com a Maria do Céu...


Tabanca de Ferrel > 12 de agosto de 2015 > 1º Convívio > "Eu parece-me que vos conheço de algum lado!... Ah!, já sei, estivemos juntos na Escócia a semana passada, em viagem turística!", diz o António Miguel Franco para o João Sacôto e esposa... "Não pode ser!", ironiza o Joaquim Jorge que acabava de abraçar o  seu camarada de há 50 anos atrás, o João, pertencente ao mesmo batalhão, o BCAÇ 619 (Catió, 1964/66)...  O João pertenceu à CCAÇ 617, o Joaquim à CCAÇ 616...  Há 50 anos que não se viam...


Tabanca de Ferrel > 12 de agosto de 2015 > 1º Convívio > O António Miguel Franco saudando os camaradas da Tabanca Grande... Casado, já pai de uma filha, foi mobilizado como capitão, em rendição individual... Foi substituir um capitão que tinha morrido em Pirada... Acabou por ir parar a Nhacra... E terminou a sua comissão, em Bissau, à frente da companhia de transportes: a missão, macabra,  que lhe foi destinada foi o transporte, para embarque,  de centenas de urnas com os restos mortais de militares metropolitanos, acumuladas nos últimos tempos da guerra... Foi um dos nossos camaradas que "fechou a guerra"...  (O camarada ao lado do Miguel Franco, o Luís Silva, foi combatente em Angola).




Tabanca de Ferrel > 12 de agosto de 2015 > 1º Convívio > O Jaime, a Dina, e a Rosário Henriques, esposa do Estêvão Henriques (que está em vias de integrar a Tabanca Grande, mal nos mande uma foto antigq, do seu tempo de Catió:  foi furriel radiomontador, CCS/BCAÇ 1858, Catió, 1965/67; os dois casais são vizinhos, do Seixal, Lourinhã).



Tabanca de Ferrel > 12 de agosto de 2015 > 1º Convívio >  Junto ao monumento aos combatentes: o professor Jaime Bonifácio Marques da Silva, elucidando a Maria Alice Carneiro  sobre alguns aspetos técnicos do monumento...


Tabanca de Ferrel > 12 de agosto de 2015 > 1º Convívio > O "capitão  pira"(António Miguel Franco)  e o "alferes velhinho" (Joaquim Jorge)... Na vida real, dois e velhos amigos, e vizinhos, embora de freguesias diferentes e "rivais" (Atouguia da Baleia e Ferrel).


Tabanca de Ferrel > 12 de agosto de 2015 > 1º Convívio >  Na hora da despedida: António, Joaquim e Eduardo, sob o olhar, já saudosista, do João...


Tabanca de Ferrel > 12 de agosto de 2015 > 1º Convívio >  Dois régulos de tabancas do oeste estremenho... Régulos de peso!... Falamos do Joaquim Jorge (Ferrel, Peniche) e Eduardo Jorge Ferreira (Porto Dinheiro, Lourinhã).. Obrigado, camaradas pela hospitalidade e logística!... Para o ano,  haverá mais!... Até lá, que Deus, Alá e os bons irãs acocorados no alto do poilão da Tabanca Grande nos protejam a todos/as!

Fotos (e legendas): © Luís Graça (2015). Todos os direitos reservados
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Nota do editor:

Último poste da série > 16 de agosto de 2015 >  Guiné 63/74 - P15009: Convívios (702): 1º encontro da tabanca de Ferrel, 12 de agosto de 2015 - Parte II: seleção de fotos de António Manuel Fonseca Pinto

Guiné 63/74 - P15011: Parabéns a você (945): José Manuel Cancela, ex-Soldado Apontador de Metralhadora da CCAÇ 2382 (Guiné, 1968/70)

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Nota do editor

Último poste da série > 16 de agosto de  2015  > Guiné 63/74 - P15008: Parabéns a você (944): Armando Faria, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 4740 (Guiné, 1972/74)

domingo, 16 de agosto de 2015

Guiné 63/74 - P15010: Libertando-me (Tony Borié) (30): Queria fugir à tropa, uns dias antes de ir “às sortes”

Trigésimo episódio da série "Libertando-me" do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66, enviado ao nosso blogue em mensagem do dia 11 de Agosto de 2015.




Queria fugir à tropa, uns dias antes de ir “às sortes”

Esta é a história de um companheiro de trabalho, lá no norte, em New Jersey, que connosco conviveu por mais de vinte anos.
Tudo começou numa aldeia de fronteira, na região de Bragança, onde tal como todos os rapazes da sua idade, querendo fugir ao serviço militar e, deste modo não irem parar à guerra em África, que na altura começara, pois a soberania Portuguesa, estava a ser ameaçada pelos diversos grupos organizados e armados que lutavam pela independência daquelas que o então governo de Portugal, considerava as suas Colónias do Ultramar.

O Joaquim, foge “a salto” para França. Não era difícil, pois o seu pai, além de rachador, amanhar umas pequenas leiras de terra, donde tirava parte do sustento para a família, também era “passador”, aliás, naquela zona, todos eram “passadores”, o Joaquim incluído, portanto ajudavam a cruzar a fronteira, eram contrabandistas, pois também ajudavam a circular produtos entre a fronteira, havia por ali muitos contactos, conheciam-se uns aos outros, tanto do lado de cá, como do lado de lá da fronteira, para eles tudo era seu território.

Algumas noites em que trabalhávamos juntos, ele contava que fora desta cultura, só lhes restava a agricultura ou trabalhar na montanha, cortando árvores. Pela manhã saíam para a montanha, algumas vezes guiando pessoas para atravessarem a fronteira, onde normalmente a ementa, pela manhã, antes de saírem de casa, era, meia panela de ferro com três pernas, com vinho trazido da adega, que era uma gruta feita debaixo das grandes pedras, que existiam junto do curral dos animais, vinho esse trazido num balde, que noutras alturas também servia para levar a comida a esses animais, a que juntavam broa, sobretudo côdeas, algumas já com bolor, que eram retirados da referida panela um pouco antes do braseiro a fazer ferver, que com um pouco açúcar, também de contrabando, que retiravam com uma colher feita de madeira dum grande cartucho de papel cinzento, comiam aquilo tudo e iam caminhar algumas léguas, descalços, antes de começarem a fazer funcionar o serrote e o machado.

Uns dias antes de ir “às sortes”, como ele nos dizia, o Joaquim larga o serrote e o machado e vem incluído num grupo de alguns candidatos a emigrantes, que ele mesmo ajudou a cruzar a fronteira, atravessando o norte de Espanha a caminho de França, pois para lá dos Pirinéus havia muito trabalho e alguma liberdade. Ele era um jovem desenrascado, sabia fugir a alguns polícias de fronteira, pois outros colaboravam, como sabia de lavoura, logo ficou a trabalhar numa quinta, na região do sul da França. Rapaz novo, depressa aprendeu a falar francês, não com técnica mas para se desenrascar, conheceu uma rapariga de nacionalidade francesa, a Michele, por quem se apaixona, ela corresponde a essa paixão, namoram e casam.

O Joaquim, depois de estar a algum tempo em França, o seu pensamento era constante, aqueles filmes que via dos “cowboys”, na altura até pensava que o actor John Wayne era o presidente dos Estados Unidos, fizeram-lhe criar no seu pensamento novos horizontes e, em alguns momentos, dizia para a Michele, “do lado de lá do Atlântico é que gostava de ir contigo, tenho um fascínio pela América, não sei bem porquê”. A Michele, aprovando tudo o que vinha da boca do Joaquim, concorda, e dizia-lhe: “se esse é o teu desejo, por que não o realizamos”.

Sem darem por nada estavam em Paris, em contacto com uma agência e, como a Michele era de origem francesa, a troco de algum dinheiro, depois de algum tempo os colocou em Nova Iorque, com passaporte de turista. A Michele tinha uns parentes na cidade de Filadélfia, estado de Pennsylvania, para onde se dirigiram. Foram trabalhar “dentro”, (na linguagem emigrante diz-se trabalhar “dentro”, quando normalmente um casal habita e trabalha na casa de seus patrões), para a casa de uns senhores, antigos diplomatas, já de uma certa idade. Ela ajudando na cozinha e em outros trabalhos, ele em trabalhos de fora, conduzindo ou jardinando, por um período de aproximadamente quatro anos, onde, com a colaboração de um popular advogado entre a comunidade portuguesa, que se dedicava em especial à emigração, na cidade de Newark, no estado de Nova Jersey, receberam toda a documentação legal para poderem residir e trabalhar nos Estados Unidos.


Deste modo, o Joaquim e a Michele procuraram finalmente começar a formar um lar, onde pudessem ter filhos e educá-los, pois era essa a sua “América”, ter, criar e educar alguns filhos. Com algum dinheiro que tinham amealhado, vieram para o estado de Nova Jersey, onde arranjaram trabalho e compraram uma casa. O Joaquim vai trabalhar na Multinacional onde nós mais tarde viemos a exercer a nossa actividade profissional, a Michele vai trabalhar numa fábrica de fazer utensílios domésticos, a que a comunidade portuguesa chamava a “fábrica das cafeteiras”.

Tiveram quatro filhos, o mais velho, o Zeca, é doutor, formou-se com uma bolsa de estudo por ser um atleta, jogava o futebol americano, correndo com uma velocidade bastante fora do normal. A Lizete é advogada, formou-se também com uma bolsa de estudo, porque era fora da média em matemática. A Michele, nome da mãe, é também advogada, os pais pagaram alguns estudos e com um financiamento do banco, que depois de se formar e começar a exercer a sua profissão, acabou de pagar a sua formatura. O mais novo, o Joca, é professor na universidade onde estudou, com a ajuda de uma bolsa de estudo, por ser, como a irmã Lizete, superior à media em matemática. Esta foi a fortuna deste casal.

Mais tarde a Michele, mãe, morreu da doença de câncer, depois de algum tempo sofrendo, o Joaquim, viúvo, já depois de requerer a sua aposentação, não quis ir para casa de nenhum filho e dizia-nos: “só vou incomodar, vou vender a casita e vou comprar perto da comunidade portuguesa, que vive naquela cidade, ao sul do rio Passaic, lá, ao menos nas ruas vou ver e falar com portugueses, vou ouvir o sino da igreja de Nossa Senhora de Fátima, vou lembrar a minha aldeia em Bragança, é aí que desejo morrer”.

Só mais um pequeno pormenor que nos faz lembrar esta simpática personagem, raramente ficava zangado, mas quando estava de mau humor falava-nos em francês, com alguns gestos de compreensão universal, o seu calçado, que ele dizia que era o seu “luxo”, era um par de botas altas, tipo “cowboy”, que usava até ficarem completamente gastas, comprando depois, outras iguais.

O Joaquim viveu mais alguns anos no meio dessa comunidade portuguesa, até que a morte o levou.

Paz à sua alma.

Tony Borie, 2015
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Nota do editor

Último poste da série de 9 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P14988: Libertando-me (Tony Borié) (29): Talvez seja o "nosso aspirante"

Guiné 63/74 - P15009: Convívios (702): 1º encontro da tabanca de Ferrel, 12 de agosto de 2015 - Parte II: seleção de fotos de António Manuel Fonseca Pinto


Tabanca de Ferrel > 12 de agosto de 2015 > 1º Convívio > Foto de grupo junto ao monumento aos comabtentes da guerra do ultramar... O Fonseca Pinto [que foi PM, Polícia Militar, não tendo sido nobilizado para o ultramar por ter sido o melhor classificado do seu curso] é o quarto a contar da direita para a esquerda: na primeira fila, Pinto Carvalho, Luís Graça, António Miguel Franco, Fosneca Pinto, Joaquim Jorge e Estêvão... O Fonseca Pinto, que foi bancário tal como o Jaoquim Jorge, é do luigar da Estrada,  freguesia da Atouguia da Baleia, concelho de Peniche...


Tabanca de Ferrel > 12 de agosto de 2015 > 1º Convívio > O Estêvão Alexandre Henriques, do lado esquerdo...  Está há muito convidado para integrar a nossa Tabanca Grande...  É natural de Fonte Lima, Stª Bárbara, concelho da Lourinhã, vive no Seixal e ainda é parente do Joaquim Jorge.

Com a especialidade de Radio Montador, embarcou para a Guiné a 18 de Agosto de 1965 a bordo do navio Niassa, chegando a Bissau a 24. Era furriel miliciano. Fazia parte da CCS/BCAÇ 1858. [Tem página no Facebook, clicar aqui].


Tabanca de Ferrel > 12 de agosto de 2015 > 1º Convívio > Joaquim Jorge, régulo da tabanca de Ferrel,  e Luís Graça, na hora do café, no Riclé Bar.


Tabanca de Ferrel > 12 de agosto de 2015 > 1º Convívio > Joaquim Pinto de Carvalho e Jaime Bonifácio Marques da Silva


Tabanca de Ferrel > 12 de agosto de 2015 > 1º Convívio > Da direita para a esquerda,  Joaquim Pinto de Carvalho, Dina (mulher do Jaime), Jaime Bonifácio Marques da Silva e Santíssima Trindade (um dos nososs amigos comuns, que não foi combatente, e vive na Atouguia da Baleia)



Tabanca de Ferrel > 12 de agosto de 2015 > 1º Convívio > António Miguel Franco (ex-cap mil, no TO da Guie, 1973/74), Joaquim Jorge e Eduardo Jorge Ferreira... O Miguel Franco, um dos que "fechou a guerra" na Guiné, está também há muito convidado para integrar a Tabanca Grande...


Tabanca de Ferrel > 12 de agosto de 2015 > 1º Convívio > João Sacôto e Luís Graça


Fotos: © António Manuel Fonseca Pinto  (2015). Todos os direitos reservados  [Edição e legendagem: LG]

(Continua)
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Nota do editor:

Guiné 63/74 - P15008: Parabéns a você (944): Armando Faria, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 4740 (Guiné, 1972/74)

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Nota do editor

Último poste da série de 10 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P14989: Parabéns a você (943): Alberto Nascimento, ex-Soldado Condutor Auto da CCAÇ 84 (Guiné, 1967/68) e Tomás Carneiro, ex-1.º Cabo Condutor Auto da CCAÇ 4745 (Guiné, 1973/74)

sábado, 15 de agosto de 2015

Guiné 63/74 - P15007: Convívios (702): Almoço comemorativo dos 50 anos do regresso da Guiné, do pessoal da CART 564, dia 3 de Outubro de 2015, em Paramos/Espinho (Leopoldo Correia)

1. Em mensagem do dia 14 de Agosto de 2015, o nosso camarada Leopoldo Correia (ex-Fur Mil da CART 564, Nhacra, Quinhamel, Binar,Teixeira Pinto, Encheia e Mansoa, 1963/65), mandou-nos a notícia do Almoço/Convívio comemorativo dos 50 anos do regresso a casa da sua unidade.


ALMOÇO/CONVÍVIO COMEMORATIVO DOS 50 ANOS DO REGRESSO DA GUINÉ DA CART 564

DIA 3 DE OUTUBRO DE 2015, EM PARAMOS


Caros camaradas
Mais uma vez "toca a reunir", desta feita para comemorar os 50 anos do regresso da Guiné a casa. 
São muitos anos e cada vez vamos sendo menos, mas as recordações não se apagam. 
Gostaria de contar com a presença do maior número possível de elementos, no dia 3 de Outubro, no mesmo restaurante "Casarão do Emigrante", junto ao Regimento de Engenharia de Paramos.

O preço é de 16 euros e vamos procurar variar um pouco a ementa.

Marcações até ao dia 25 de Setembro para os telefones: 964 024 918 ou 227 330 800.

Américo Loureiro
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Nota do editor

Último poste da série de 13 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P14997: Convívios (701) 1º encontro da tabanca de Ferrel, 12 de agosto de 2015 - Parte I: ex-dois alferes milicianos do mesmo batalhão, o BCAÇ 619 (Catió, 1964/66) reencontram-se e abraçam-se meio século depois

Guiné 63/74 - P15006: 3 anos nas Forças Armadas (Tibério Borges, ex-Alf Mil Inf MA da CCAÇ 2726) (5): Invasão a Conakry e, Entre Cacine e Cameconde

1. Parte V de "3 anos nas Forças Armadas", série do nosso camarada Tibério Borges (ex-Alf Mil Inf MA da CCAÇ 2726, Cacine, Cameconde, Gadamael e Bedanda, 1970/72).


3 anos nas Forças Armadas (5)

Invasão à Guiné Konakry

Estava eu de férias em S. Miguel quando ao ler os jornais comecei a ver toda a literatura Salazarista. Histórias rocambolescas. Eu que estava despolitizado, achei ridículo. Eu que estava na Guiné e nada daquilo condizia com a realidade.

Ao regressar a Cacine estava o grupo de comandos africanos que tinha tomado parte na operação. Segundo diziam eles, esperava-se retaliação por parte de Konakry. O que é certo é que o tempo se foi passando e nada aconteceu. Segundo contaram, a operação foi nocturna, em barcos. Não destruíram os Migs, libertaram os militares prisioneiros portugueses mas deixaram lá um pelotão que fugiu para se aliar as tropas de Sekou, e não apanharam Amílcar Cabral. As informações que o General Spínola possuía saíram algumas incertas mas na generalidade foram bem sucedidos.

A Operação Mar Verde é uma acção singular entre todas as realizadas durante a guerra, nos três teatros de operações. Na clássica divisão dos manuais militares, que consideram três grandes grupos de operações - convencionais, especiais e irregulares -, ela pertence ao grupo das irregulares, e foi neste âmbito a de maior envergadura, complexidade e impacte internacional.

Foi realizada para obter efeitos políticos directos através da execução de um golpe de Estado em país estrangeiro, a Guiné-Conacri, por militares portugueses a actuarem com uniformes e equipamentos das forças desse país e em conjunto com elementos estrangeiros oposicionistas ao Governo, prevendo a eliminação de um chefe de Estado, Sekou Touré.

Como escreve o comandante da operação, o capitão-tenente da Marinha Portuguesa Alpoim Calvão, no seu livro "De Conacri ao MDLP", que constitui a base de informações que sobre ela se conhece, a proposta que fez ao Comandante-Chefe das Forças Armadas da Guiné tinha por objectivo principal a execução de um golpe de Estado na Guiné-Conacri, sendo os objectivos secundários a captura do líder do PAIGC, Amílcar Cabral, e a libertação dos militares portugueses prisioneiros que se encontravam em Conacry.

A operação, que nunca foi assumida por Portugal, aproveitou a existência de oposicionistas ao regime de Sekou Touré, disponíveis para participarem numa acção deste género, e visou a instalação, em Conacri, de um regime mais favorável às posições portuguesas. Para atingir este fim, foram equacionadas duas alternativas, uma prevendo a instalação no território da Guiné-Bissau de bases a partir das quais esses oposicionistas pudessem realizar acções de guerrilha no seu país, e a outra considerando o lançamento de uma operação rápida e decisiva. A análise de vantagens e inconvenientes levou os autores da proposta a optar pela segunda alternativa.

Seguiu-se um período de preparação essencialmente de âmbito político e das informações estratégicas, que envolveu o Governo de Lisboa, o Governo da Guiné e os serviços de informações de vários países, com a participação decisiva da DGS.

Por fim, realizou-se a operação militar propriamente dita, com o planeamento, a reunião dos meios, o gizar da manobra e a execução.

Este Comando às refeições comia um peixe grande inteiro e uma terrina de arroz.


Entre Cacine e Cameconde

O patrulhamento diário entre Cacine e Cameconde, passando pela Tabanca Nova, era uma tarefa diária de um dos dois pelotões sediados em Cacine. Esta tarefa abrangia todos os quatro pelotões ao dar-se a rotação mensal de Cacine para Cameconde. O maior perigo era transformar esta obrigação em rotina. Normalmente o perigo aparece durante a rotina e como tal era preciso estar sempre alerta.

O pelotão de milícias era o primeiro neste trajecto pois a picagem da rota estava à sua responsabilidade. Saíam da aldeia, onde moravam, mais cedo do que o pelotão de soldados que depois da formatura tomavam os seus lugares quer nos Unimogs ou Daimlers, quer na GMC que ia com lastro de sacos de areia, não fosse alguma mina rebentar.

A situação estratégica de Cacine era favorável a não acontecer algo de grave a não ser por flagelações e mesmo assim ficava fora do alcance das armas da altura. Aquela zona mais aberta no terreno estreitava para além da Tabanca nova, predominando uma floresta densa e intransponível. No meio duma floresta densa abria-se um círculo no qual residia o destacamento de Cameconde. Este era a defesa da retaguarda de Cacine que virada para o rio tinha como defesa natural as águas. Para entrar em Cacine pela retaguarda teria que se passar por Cameconde que numa hipótese de ataque a Cacine as hostes inimigas ficariam encurraladas. Esta deve ter sido a razão mais forte de Cacine nunca ter sido atacado.




Tabanca Nova ou Aldeia Nova

Entre Cacine e Cameconde existia um pequeno aldeamento que foi denominado Aldeia Nova em virtude da política do General Spínola albergar toda a população em novos modelos de tabancas. Estas eram feitas de blocos, palha misturada com barro ou terra, cobertas com chapas de zinco. Muitos nativos depois cobriram o zinco com a cobertura das suas tão naturais palhotas pois o calor em chapa de zinco dava para esturrar.

Nesta localidade fazíamos sempre uma breve paragem. Aconteceu numa dessas paragens que o soldado que ia na GMC tendo por responsabilidade a metralhadora Browning disparou uma rajada que por sorte não apanhou ninguém.




Cameconde

Cameconde era o último reduto do Sul da Guiné. Para além de Cameconde ficavam uns trilhos que iam dar a terras fora do nosso controlo (Cacoca ou Quitafine). Este destacamento já ficava ao alcance dos morteiros dos turras e como tal ao anoitecer chegava a hora “sexual”. Banho tomado, ouvido à escuta e todos os dias era esta tensão do ser ou não atacado à morteirada. Este destacamento possuía bons abrigos, feitos de betão ou cimento armado, uma boa camada de areia por cima e com troncos de árvores o que de certa forma dava para proteger de granadas que viessem a cair em cima.
Este destacamento ficava no meio do mato numa clareira aberta mesmo para implantar tropas neste ponto estratégico. Num ângulo do trilho que vinha da aldeia nova e que se desviava para o interior, Cameconde era uma autêntica prisão no meio da floresta. A guerra morava nesta zona.
Os patrulhamentos faziam-se no trilho que dava para além de Cameconde. Tudo era verde, um verde bonito, com as mais diversas aves a chilrear, bonitas, com os bandos de macacos que repentinamente nos assustavam e que ao longe pareciam cães a ladrar.
No início todos os ruídos eram estranhos mas aos poucos fomo-nos habituando ao mundo que nos rodeava. Lembro-me uma vez que ao ver um bando de macacos empoleirados nas árvores atirei um tiro acertando na mão dum deles. Toda a gente se atirou para o chão. E como gostava de desvendar fomos sempre em frente até uma zona em que ouvimos gente a falar. Segundo o comandante das milícias era uma aldeia que ficava ali.


Acordando depois de uma noite protegido com o mosquiteiro e a ventoinha ao fundo da cama e por dentro do mosquiteiro, tal era o calor. Muitas vezes acordava repentinamente com a ventoinha a bater-me nos pés. Outras vezes acordava com os pés fora do mosquiteiro e cheios de mosquitos. Sei que tomava os meus comprimidos e nunca apanhei doenças tropicais.


O corte do cabelo era obrigatório e para isso havia barbeiro na companhia. Cercados, sem nada para fazer, as brincadeiras faziam parte do dia a dia. Imitar o barbeiro era uma delas.



Como nem sempre a cerveja sabia bem, dependia do momento, antes de sair para um patrulhamento colocava no congelador do frigorífico, que trabalhava a petróleo, umas três latas de leite, vindos da Holanda.



Em Cameconde havia a artilharia pesada, o obus 14, um meio essencial na nossa defesa e que segundo informações que tínhamos metia muito respeito ao outro lado da barricada. Atingia uma distância muito boa e para bater zonas mais perto dispúnhamos do morteiro 80 e 60, cujas granadas varriam a zona periférica do destacamento. Para colocar a granada no obus 14 eram normalmente dois homens que o faziam. Era um rebuçado com 45 kg. Estas armas de artilharia estavam protegidas com bidões cheios de terra ou areia.
Na nossa companhia os diversos sectores, artilharia, Daimler e companhia que englobava comunicações, mecânica e pelotões, eram independentes na rendição. Evidentemente todos sob o comando do capitão.






Como tinha a especialidade de minas e armadilhas, o paiol estava por minha conta. A requisição de munições era feita na medida das necessidades, com antecedência. Ao chegar a Cacine havia muitas munições fora de prazo e já com ferrugem pelo que adquiri novo material. Com o material velho comecei a minar Cameconde, um nada dentro da floresta.

E chegou a nossa vez de sermos rendidos.

(Continua)

Texto e fotos: © Tibério Borges
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Nota do editor

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