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quarta-feira, 25 de maio de 2016

Guiné 63/74 - P16133: O nosso livro de visitas (189): Morreu, em 17/4/2016, o meu pai, Cherno Sanhá, formado em Cuba, em engenharia de telecomunicações, filho do rei de Badora (Luís Causso Sanhá)

Guiné > Zona leste > Sem data nem local > Mamadu Bonco Sanhá, régulo de Badora, tenente de 2ª linha, comandante da companhia de milícia do Cuor.

Segundo informação do filho Cherno Sanhá, esta foto deve ser de finais de 1960 ou princípios de 1970, quando o tenente Mamadu foi condecorado com a cruz de guerra. Deveria ter uns 40 e poucos anos.

Foto: © Cherno Sanhá (2012) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados,


1. Mensagem de Luís Causso Sanhá

Data: 12 de maio de 2016 às 16:31

Bom dia, Luís.
Meu nome é Luís Causso Sanha, eu sou o filho de Cherno Sanhá, estou escrevendo este e-mail para informá-lo da morte de meu pai em 2016/04/17.


 2. Mensagem de 15 do corrente, enviado ao Luís Causso Sanhá:

Cherno:

A morte do nosso pai, qualquer que seja a idade ou as circunstâncias, é sempre uma notícia dolorosa... Lamento muito que o seu pai acabe de falecer, há poucas semanas... Mas precisava que o Luís me ajude a identificá-lo.. Que idade tinha o seu pai?

Será que estamos a falar do filho do grande régulo que eu conheci, em Bambadinca, em 1969/71, o Mamadu Bonco Sanhá ? Se sim, tem aqui um link. (*)
Veja se me pode esclarecer a minha dúvida. Mas presume que seja a mesma pessoa, o filho do grande régulo de Badora. Nesse caso, você é neto.

Mantenhas, 
Luís Graça


3. Resposta de hoje do Luís Causso Sanhá:

Boa tarde, desculpe pelo atraso em responder seu e-mail. 
É o mesmo filho do rei de Badora, sim. (**)


4. Comentário do editor com resposta ao nosso leitor, neto do Mamadu Bonco Sanhá:

Olá, Cherno, obrigado pelo teu esclarecimento. 
O pai do teu pai era o régulo de Badora, o grande Mamadu Bonco Sanhá que eu conheci muito bem em Bambadinca, regulado de Badora, em 1969/71, comandante da companhia de milícia do Cuor, com o posto de tenente de 2.ª linha. Vê aqui as cinco ou seis referências que temos sobre ele, no nosso blogue.

O teu pai, Cherno Sanhá,  um dia contactou-nos por email e mandou-nos o seu número de telemóvel:
Cherno Sanhá > Telemóvel: (+245) 727 6999. Vivia, portanto, na Guiné-Bissau e,  a através de um amigo comum, o Cherno Baldé, soube que se tinha formado em Cuba, em 1983, em engenharia de telecomunicações, área onde trabalhava em Bissau, depois de ter passado pela rádio e ter vivido em Espanha.

Nunca cheguei a falar com ele ao telefone, trocámos apenas mensagens. Disse-me que era o filho mais velho, A última foi a desejar-nos votos de bom ano 2016, e a pedir o contacto do Mário Beja Santos, "grande amigo do meu pai, Régulo de Badora, Mamadu Bonco". Ele sabia que o Beja Santos tinha sido comandante do Pel Caç Nat 52 (Missirá e Bambadinca, 1968/70). Ficou  de me mandar mais fotos do seu pai, Mamadu Bonco Sanhá, o que nunca chegou a acontecer, possivelmente por razões de saúde. Lamento muito a sua morte. A vida tem sido dura para com os nossos amigos guineenses. Vou dar a notícia, no blogue.

Mantenhas. "Un saludo" (Vejo que vives em Espanha ou num país de língua castelhana, "es verdad"? Mas, reparando melhor, usas o endereço de email do teu pai).


5. Mais informação sobre o Cherno Sanhá [, foto de 2016, à direita] e  o seu pai Mamadu Bonco Sanhá:

Em conversa com o Cherno Baldé (que teve a gentileza de me telefonar de Bissau, por volta de outubro de 2012, soube mais o seguinte acerca de Mamadu Bonco Sanhá e do seu filho Cherno Sanhá: 

(i) a residência oficial do tenente Mamadu era em Madina Bonco; 

(ii) muitos dos papéis dele perderam-se, ficaram nas mãos das mulheres, mas a foto deve ser de 1970 ou por aí; 

(iii) o Cherno Sanhá deve ter uns 20 irmãos; 

(iv) o tenente Mamadu nunca teve "50 mulheres", embora tivesse bastantes como régulo que era, mas algumas delas eram dos irmãos que faleceram antes dele; 

(v) o Umarau Baldé [, já falecido, da CCAÇ 12] não era filho do Mamadu Bonco Sanhá: 

(vi) o Cherno Sanhá, que tem 56 anos, fez a 4.ª classe em Bambadinca, foi aluno da profª Dona Violeta, residia em Bambadinca nessa altura, mas tinha nascido em Madina Bonco; 

(vii) fez o liceu em Bissau; 

(viii) formou-se em Cuba, em 1983, em engenharia de telecomunicações; 

(x) trabalhou na rádio nacional durante uns 3 anos; 

(xi) andou por Espanha na sequência da guerra civil em 1998/99; 

(xii) vivia  em Bissau, e trabalhava numa empresa de telecomunicações [, a Guinetel, se não erro]: 

(xii) conhecia alguns dos nossos grã-tabanqueiros de Bissau: o Pepito, o Patrício Ribeiro, o Cherno Baldé...
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quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Guiné 63/74 - P10512: As Nossas Tropas - Quem foi Quem (11): Tenente de 2ª linha Mamadu Bonco Sanhá, régulo de Badora, comandante da companhia de milícia do Cuor (Cherno Sanhá)



Guiné > Zona leste > Sem data nem local > Mamadu Bonco Sanhá. Segundo informação do filho Cherno Sanhá, esta foto deve ser de finais de 1960 ou de 1970, quando o tenenente Mamadu foi condecorado com a cruz de guerra. Deveria ter uns 40 e poucos anos.

Foto: © Cherno Sanhá (2012) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados,


1.  No passado dia 5 de setembro, recebi a seguinte mensagem do nosso leitor, Cherno Sanhá, que presumo viva (ou tenha vivido em Espannha), a avaliar pelo endereço de correio eletrónico: cherno2009@yahoo.es

 Bom dia!

É com grande satisfação que pude hoje ler o vosso blog,é muito importante e enriquecedor.
Sou filho do Mamadu Bonco Sanhá,vou tentar contribuir com mais informações sobre o meu pai e enviar algumas fotografias dele.

Um grande abraço.

Cherno Sanhá


2. Comentário de L.G.:

Na altura eu não associei o nome, Mamadu Bonco Sanhá, ao todo poderoso cabo de guerra e régulo de Badora, homem grande de Bambadinca,  fula, que eu conhecera no meu tempo (1969/71). Hoje, 10 de outubro, recebo um outro mail com uma das prometidas fotografias do pai do Cherno Sanhá (Pelo indicatiivo  do telemóvel, 00 245, vejo que ele afinal vive na Guiné-Bissau):

Caros Luis Graça,

Junto envio uma foto do meu pai Mamadú Bonco Sanhá.
Cumprimentos
Cherno Sanhá
Telemóvel: (+245) 727 6999



3. Comentário de L.G.:

Meu caro Cherno:  De repente, ao olhar esta foto amarelecida pelo tempo, fez-se-me luz no "meu computador central", reconheci de imediato aquela cara: era ele, o tenente de 2ª linha Mamadu, ou simplesmente o tenente Mamadu, como os 'tugas' o tratavam, com deferência e respeito,   comandante da companhia de mílícia do Cuor...

Era ele, fardado, com os respetivos galões, e os óculos escuros que sempre lhe conheci. A farda, branca, devia ser a da administração colonial, a das cerimónias oficiais, a de régulo. Régulo de Badora.

Vestido de farda, branca, como na foto, não me lembro de o ter visto.  Rebobinando os filmes das minhas memórias de Bambadinca, estou a vê-lo, sim, ora de camuflado, ora com as vestes tradicionais dos homens grandes, a chabadora, e quase sempre, se não sempre, montado na sua motorizada de 50 cm3, de marca japonesa (talvez uma Kawasaki), oferta pessoal - segundo se dizia -  do Governador Geral da Província e e Com-Chefe, António Spínola (, facto que nunca pude confirmar).

Habituei-me a vê-lo,com alguma frequência, na parada do quartel de Bambadinca, junto ao comando do batalhão ali estacionado no meu tempo (primeiro, o BCAÇ 2852, e depois o BART 2917), ou seja, no período que medeia entre agosto de 1969 e março de 1971.

Nunca fiz, que me lembre, nenhuma operação com ele. De resto, não era habitual os pelotões de milícias participarem nas nossas operações, apenas os Pel Caç Nat (52, 54, 63)...

Também era voz corrente que tinha uma cruz de guerra, por feitos valorosos em combate, não sei onde nem quando. O que também nunca soube era onde vivia, se em Bambadinca ou nalguma tabanca dos arredores.

Dele também se dizia - seguramente com os exageros próprios das 'bocas'  da caserna  - que o todo poderoso e temido régulo de Badora tinha 50 mulheres, uma em cada aldeia do seu regulado, e que só em cabeças de gado deveria ter umas centenas. Mulheres e cabeças de gado  faziam parte do 'status' de um homem grande.

Dizia-se também que tinha alguns filhos na CCAÇ 12, como seria o caso do nosso infortunado  e saudoso Umaru Baldé, o 'puto' [,foto acima, à esquerda; crédito fotográfico: Benjamim Durães]...

Nunca lhe perguntei, ao Umaru,  nem nunca lhe perguntaria...Lidei, privei com os fulas, fiquei nas suas tabancas, mas também respeitei a sua privacidade, a sua cultura, o seu modo de ser e de estar... Com os balantas, infelizmente, não consegui criar qualquer empatia... A barreira da língua e da farda, além da pertença a uma companhia fula (, a CCAÇ 12,), eram obstáculos intransponíveis...

Havia tensão entre os fulas e os balantas de Badora... Julgo que desgraçadamente "ajustaram contas" entre eles depois da nossa saída... Os malditos demónios étnicos ficaram na "caixinha de Pandora" que entregámos ao PAIGC... (E os guerrilheiros tinham uma caixinha destas, com outros ingredientes)...

Eu, que sempre lidei com fulas, e fiz amigos entre eles, também tive que gerir sentimentos contraditórios, em relação a este povo e aos seus filhos... Sempre fiz uma distinção entre os seus "chefes" tradicionais, de um modo geral aliados das NT, e os seus pobres "súbditos", a grande maioria dos quais eram também  meus/nossos soldados.

Desgraçadamente o aliado dos 'tugas', o nosso Tenente Mamadu,  foi fuzilado em Bambadinca depois da independência, já em 1975: o seu "crime" terá sido apenas o de ter apostado no "cavalo errado" do jogo de xadrez geopolítico que se travava na Guiné... Não sei em que circunstâncias foi julgado, condenado e executado. Talvez o Cherno Sanhá nos possa (e queira) esclarecer melhor este último e trágico episódio da vida do seu pai e nosso camarada de armas.

Quanto às autoridades militares de Bambadinca do meu tempo,  faziam dele quase um mito... Veja-se por exemplo o que se pode ler na história do BART 2917 (1970-72):

(...) "No Sector L1 podemos considerar duas raças (sic) distintas: para Leste da estrada Bambadinca-Xitole onde predomina a raça Fula, e para Oeste da mesma estrada onde predominam as raças Balanta e Beafada.

"A população Fula de um modo geral é nos favorável, sendo de destacar o regulado de Badora, que tem como Chefe / Régulo um homem de valor e considerado pela população como um Deus. Esse homem é o Tenente Mamadu, já conhecido do meio militar pelos seus feitos valorosos e dignos de exemplo. Da outra população, fortes dúvidas se tem, especialmente as dos Nhabijões, Xime e Mero" (...).

Enumera-se depois o seu currículo, apresentado em termos grandiloquentes e laudatórios:

(i) Régulo do Badora; 

(ii) Vogal do conselho logístico da Província; [, ao lado, por exemplo, de outro grande aliado dos portugueses, o régulo manjaco Joaquim Baticã Ferreira]

(iii) Comandante da Companhia de Milícias do Cuor; 

(iv) "Intitulando-se Fula, é considerado pelos Mandingas e Beafadas como Beafada, em virtude da ascendência materna"; [, segundo Beja Santos, devia ser parente dos Soncó do Cuor, "os mais ardorosos guerreiros da Guiné";  em carta ao comandante Avelino Teixeira da Mota, ele escreveu o seguinte: (...) "Quando tiver tempo e paciência, gostava muito que me indicasse literatura sobre este dinamismo da islamização, que foi animada pela presença europeia, pela submissão dos infiéis beafadas e dos fula-pretos animistas. Também no estudo do Carreira descobri que Boncó Sanhá (seguramente familiar do actual tenente Mamadu Sanhá, régulo de Badora) era sobrinho de Infali Soncó. (...)]



(v) "Pelos seus actos de valentia é condecorado com a Cruz de Guerra"; 

(vi) "Régulo justo e especialmente preocupado com a segurança das suas populações"; 

(vii) O seu prestígio parece ir muito "para além dos limites do regulado de Badora"; 

(viii) "É um excelente colaborador das NT, parece representar o movimento dos Fulas Nativos" (...).

Fica aqui o nosso gesto de apreço pela memória de um homem  que foi um importante aliado das NT, na zona leste, e que pagou com a vida essa aliança.  Um abraço para o Cherno Sanhá que ao fim destes anos todos nos vem surpreender com uma foto do seu pai, seguramente rara e indiscutivelmente valiosa para todos aqueles de nós que, em Bambadinca, conheceram o "tenente Mamadu".  LG

4. Nota posterior de L.G.:

Em conversa com o Cherno Baldé (que teve a gentileza de me telefonou de Bissau e aceitou o meu convite para integrar o nosso blogue), soube mais o seguinte acerca de Mamadu Bonco Sanhá: (i) a residência oficial do tenente Mamadu era em Madina Bonco; (ii) muitos dos papéis dele perderam-se, ficaram nas  mãos das mulheres, mas a foto deve ser de 1970 ou por aí; (iii) o Cherno deve ter uns 20 irmãos; (iv) o tenente Mamadu nunca teve "50 mulheres", embora tivesse bastantes como régulo que era, mas algumas delas eram dos irmãos que faleceram antes dele; (v) o Umarau Baldé não era filho do Mamadu Bonco Sanhá: (vi) o Cherno Sanhá, que tem 56 anos, fez a 4ª classe em Bambadinca, foi aluno da profª Dona Violeta, residia em Bambadinca nessa altura, mas tinha nascido em Madina Bonco; (vii) fez o liceu em Bissau;  (viii) formou-se em Cuba, em 1983, em engenharia de telecomunicações; (x) trabalhou na rádio nacional durante uns 3 anos; (xi) andou por Espanha na sequência da guerra civil em 1998/99; (xii) vive hoje em Bissau, e trabalha numa empresa de telecomunicações: (xii) conhece alguns dos nossos grã-tabanqueiros de Bissau: o Pepito, o Patrício Ribeiro, o Cherno Baldé... Aguardo que ele me mande uma foto sua, atual. Aprecio a coragem dele por dar a cara e vir aqui recuperar a memória e a honra do seu pai.
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sexta-feira, 26 de novembro de 2021

Guiné 61/74 - P22753: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (80): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Novembro de 2021

Queridos amigos,
É bem provável que este fim de comissão coincida com a concretização de trabalho de Paulo em Bruxelas, seria uma verdadeira revolução, os cinquentões apaixonados juntos no ninho. Esta carta com apontamentos do quase final da comissão também deixa transparecer que Paulo, num curto lapso de tempo, terá que tomar decisões, é funcionário público, terá que pedir licença registada, seguramente que será deferido, são casos tratados como conveniência de serviço; dois dos filhos singram na vida, mas há aquele Ricardo que sofre de Síndrome de Asperger, é muito agarrado ao pai, há que adotar um procedimento de o deixar bem acompanhado, talvez mesmo haverá a necessidade de ele ir para Bruxelas, tudo isso vai pesar nas decisões de Annette e Paulo. Acontece que Annette trouxe uma questão nova para o romance: será que a comissão do Paulo acabou exatamente no dia em que ele desembarcou no Cais da Rocha do Conde de Óbidos? É possível acabar uma ligação que teve afetos tão poderosos? Não houve um depois? Então o Paulo não voltou à Guiné? Não seria melhor a Rua do Eclipse prosseguir por esse mar fora, dado que é notório a relação inquebrantável? Paulo cisma, é preciso ser prudente, tudo vai do trabalho que lhe vão propor em Bruxelas, e, francamente, agora não há caderninhos viajantes, há escassas memórias, talvez Annette pudesse encontrar agora um remate inspirador para o fim do livro. Vamos esperar.

Um abraço do
Mário



Rua do Eclipse (80): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Ma chérie, aí estarei amanhã ao fim da tarde, como, infelizmente, tenho viagem marcada dois dias depois, permito-me fazer seguir pelo correio todo o restante material que guardei do final da minha comissão em Bambadinca. Entrego-te com muito carinho o caderninho viajante que andava sempre comigo, aquelas últimas viagens no período de sobreposição com o Nelson Reis, as últimas fotografias tiradas nas tabancas em autodefesa, comoveu-me profundamente os abraços recebidos por chefes de tabanca e mesmo do régulo de Badora, de nome Mamadu Sanhá, andava sempre com os seus galões de tenente e viajava até Bambadinca numa motoreta. Registei que estava a partir e chegou Dauda Bari, era um cabo Fula que viera de Gandembel. Registei um comentário de Sadjo Seidi que se queixava das aulas de ginástica da escola, achava que já não tinha idade para aprender mais letras. Irei reencontrá-lo décadas depois, não esquecera o seu comentário, e manifestava pesar por não ter estudado. Como te disse na última carta, fiz um telefonema a Cherno Suane, que tu conheces, ele trabalha num estabelecimento de eletrodomésticos de um senhor que se chama Adolfo Brilhante, perto do Largo de São Paulo, pedira-lhe se ele podia escrever umas notas sobre os episódios da nossa vida entre julho e agosto de 1970, sabendo eu de antemão que o Cherno depois do seu duplo traumatismo craniano tinha falhas de memória. Apareci na loja depois de ter feito ginástica e fomos os dois para um café-restaurante ali ao pé chamado Pérola de São Paulo, o papel do Cherno segue nesta carta, ele relata emboscadas em Samba Silate, a nossa permanência na ponte de Undunduma, patrulhamentos em direção a Taibatá, noites na Missão de Sono, os dois dias que passámos em Mansambo, a vigilância que fazíamos na estrada alcatroada do troço Amedalai – Ponta Coli – Xime.

O Cherno tem um curioso contrato com o senhor Adolfo, este cede-lhe uma casa ali no Largo de São Paulo que o Cherno enche de gente que vem ou vai para a Guiné, um dia fui lá visitá-lo com o Abudú Soncó, a certa altura pensei que estava num terminal de aeroporto. E sempre com a sua voz ciciante e com aqueles olhos que volteiam e revolteiam, penso sempre que é uma questão de timidez não me olhar fixamente, falou dos dois últimos dias que passei em Bambadinca, não sei porquê perguntou-me se eu me lembrava de Damba Trilene, fui sincero com ele e disse-lhe que não me lembrava, depois fiquei a saber que fora fuzilado depois da independência, gritara desalmadamente que não tinha feito mal nenhum. É nisto que o Cherno me pergunta se o livro que eu estou a escrever já está pronto, e então perdeu a timidez quando eu lhe disse que o livro estava avançado, fez-me inúmeras perguntas sobre pessoas, se estavam incluídas no meu trabalho, fiquei atónito quando ele me perguntou se eu ia dizer que Serifo Candé fizera parte da 3.ª Companhia de Comandos, aquele meu amigo do coração que eu fora visitar à tabanca dele em 1991 e que julgou que eu o vinha buscar, como é que tu me deixas aqui a passar fome, não tenho comida para dar aos meus filhos? Eram pormenores sem conta, procurei suavemente explicar ao Cherno que não podia entrar em tanto detalhe, era um livro sobre a minha comissão, jamais poderia esquecer a lealdade e a fidelidade de todos aqueles que tinham combatido ao meu lado, mas este tipo de livros tem que respeitar as recordações. E pela primeira vez na vida o Cherno repreendeu-me: “Escrevi aqui tudo de que me lembrei porque pensava que tu querias que toda a gente ficasse a saber que combateste com um grupo de africanos que acreditaram sempre em ti, por isso nós devíamos constar da história desse teu livro”. Fiquei com a garganta seca, prometi-lhe que iria rever todo o trabalho já passado a escrito, estamos os dois de pé, e neste exato momento, estou na véspera da tarde da minha partida, ando na companhia do Cherno, do alferes Reis e do furriel Pires, despedi-me dos comerciantes de Bambadinca, visitei as famílias dos soldados, fui aos Correios agradecer todas as gentilezas de D. Leontina, foi penoso despedir-me de D. Violete e da sua mãe, subimos a rampa de Bambadinca e Cherno, como é seu hábito, ajuda-me carinhosamente a arrumar todos os meus trastes num caixote que foi feito na carpintaria, anda por ali o jovem Mamadu Soncó que teima em que eu o leve para Lisboa, continuo a olhar para o Cherno, agora seguro-lhe as mãos, já abracei quem fica no quartel, o rosto de Mamadu Soncó é uma máscara de inquietação, sei que me vais esquecer, eu estudei português, matemática, desenho e ciências naturais, deixa-me ir estudar… Fiz-lhe promessas, fui-lhe escrevendo ao longo do tempo, encontrei casualmente um aerograma que ele me enviou em setembro de 1973, já tinha feito a quarta classe, continuava a estudar, trabalhava como escriturário na Polícia Militar, sabia datilografia. Continuando a olhar este meu irmão Cherno Suane, estamos numa coluna que vai em direção a Xime, despedi-me de quem está na ponte de Undunduma, de quem faz vigilância nas obras do alcatroamento da estrada, cumprimentei quem me esperava em Amedalai, alguém subiu para uma viatura para me contar que o PAIGC celebrara o 3 de agosto flagelando o Enxalé, foi fogo de pouca monta porque houve a reação do fogo de obus do Xime.

Estou agora a despedir-me do Cherno, ele vai voltar para o local de trabalho e eu vou apanhar o Metropolitano até ao Saldanha, o pelotão despede-se de mim e eu dele, depois de um aperto de mão a mão direita vai até ao coração, mais uma vez pedi a todos que ajudassem o alferes Reis, ajudam-me a levar a bagagem para dentro da lancha, mostro a guia de marcha, mandam seguir. E é neste exato momento , meu querido Cherno, que eu dei comigo a pensar como iria cumprir os meus sonhos, os olhos não param de se deslumbrar com aquele Geba que parece uma folha dourada, os tufos de vegetação de um lado e do outro, já passámos a embocadura do Corubal, então sento-me, rezo, oiço o ronronar dos motores, venho à amorada e avisto o Ilhéu do Rei, desembarcamos no Pidjiquiti e alguém me leva com a mala para o Vaticano III, um albergue de curta permanência já dentro do quartel de Santa Luzia, a mala seguiu para Brá, para o Depósito de Adidos, anoiteceu, sinto que todos os perigos da guerra estão passados, agora tenho que prospetar o futuro, mas há uma sensação muito dolorosa, minha adorada Annette, começara, eu estava a sentir, aquela dolorosa separação dos meus bravos soldados.

Não sei o que me reserva a reunião com o Diretor da Confederação Europeia dos Sindicatos. Falei telefonicamente com Paolo Adorno e Michel Renard, eles suspeitam que me vão propor um contrato até cinco anos, renovável mais um ano, intuem que me vão propor os pelouros dos Consumidores e da Saúde, já sabem que rejeito categoricamente as áreas da Concorrência e da Agricultura. Das informações que aqui pude obter, é possível obter uma licença registada, por conveniência de serviço em organizações comunitárias, vou ver as condições financeiras que me oferecem, espero que o destino nos prepare uma bonita surpresa. Parece que estou a sofrer daquela inquietação que relatei acima, quando eu sabia de ciência certa que já nada tinha a ver com os meus bravos soldados, não via ser difícil suspender todas as minhas colaborações, poderei até conservar alguns artigos em jornais e revistas, atendendo ao acesso a informações que no futuro disporei. Há a situação dos meus filhos, o Henrique tem presentemente trabalho, vejo-o muito estabilizado, ele e a mulher constituem um casal que vive em rigor orçamental; o Ricardo está presentemente desalentado, ele precisa muito de mim, gostaria de conversar largamente contigo se era possível encontrarmos algo em Bruxelas em que ele se inserisse perfeitamente, a Rita vai de vento em popa. Não quero acrescentar mais nada a esta carta, sei que amanhã vou ter a grande alegria de estar contigo, e que no dia seguinte, muito provavelmente, te transmitirei notícias que te encherão de felicidade. É bem engraçado escrever estas coisas e saber que tu as vais ler algum tempo depois de termos vivido o nosso presente, não achas? Bien à toi, bisous milles, comme toujours, Paulo.


Vejo vezes sem conta a rampa de Bambadinca, aqui cheguei extenuado, vindo de Missirá ou Mato de Cão, muito provavelmente com o Unimog 411 do outro lado da bolanha, pronto para receber bidons de gasóleo ou petróleo, sacos de cimento, rolos de arame farpado, as vitualhas possíveis, aqui se chegava e um pequeno grupo dividia-se com obrigações: uns para as munições, outros para o material de Engenharia, aqueloutros para equipamentos de transmissões, questões relacionadas com a manutenção de viaturas, o economato, o abastecimento alimentar, sempre discutido, por vezes com gritaria, não há isto nem há aquilo, tem latas de chouriço e barricas de pé de porco, umas latas de feijão-verde, e viva o velho. Por vezes tínhamos sorte, disponibilidade de viaturas àquele arremedo de cais, entrar na canoa de Mufali Iafai com as pernas na lama até às coxas, e nunca esqueço a noite de 28 de maio de 1969, viemos de Missirá a trote alta noite para apoiar os flagelados de Bambadinca, o Zé Maria Tavares trouxe-me até aqui, o Geba estava na vazante, tinha uns bons quilos de lodo em cima da farda, mas fiquei feliz, havia um pequeno sinistrado depois de todo aquele angustiante foguetório.

Aqui está a erosão do tempo, é capaz de ser uma daquelas fatalidades das alterações climáticas, a rampa achatou-se, até parece que a laterite se descoloriu, era um caminho vistoso até ao cais, passados todos aqueles anos dói que se farta ver a incúria e o abandono, todos aqueles edifícios podiam ser úteis para as populações, os armazéns estão destruídos, o porto desapareceu, fiquei especado junto à casa de Mufali Iafai, o jovem faleceu e o caminho da bolanha de Finete também desapareceu.

Quantos telefonemas vim fazer para Lisboa na estação dos CTT, era um edifício impecável, tinha pessoal garboso, gente atenciosa, vinha à procura de selos também, não só para a minha correspondência, mas havia quem me solicitasse, por hábitos filatélicos, as últimas edições. À chegada ou à partida cumprimentava este pessoal, de cortesia esmerada.

E também quantas vezes entrei nesta escola para cumprimentar Dona Violete e acertarmos uma hora do chá, ela fazia sempre questão, e apareciam papéis sobre a história da Guiné e recordações dos tempos em que ela fora professora em Gã Gémeos, no início da década de 1950, era um encanto ouvi-la e devo-lhe a iniciação dos estudos deste país fascinante, preso ao meu coração.

Neste dia parto do Xime na lancha de desembarque grande Alfange. Era um cais sólido, preparado para receber pesadas cargas, a navegabilidade do Geba ficou alterada a partir de outubro de 1969, os barcos mais possantes atracavam aqui, só as embarcações civis seguiam até Bambadinca. Ironia do destino, esperaram a minha transferência para Bambadinca para pôr este cais e porto operacionais, aguentei a pé firme as idas a Mato de Cão, ininterruptamente, de agosto de 1968 a outubro de 1969. O cais morreu, o porto também, ficou esta camada de alcatrão que a natureza se encarrega de atapetar, o Xime parecia fadado, com a independência, a ser um porto influente, ali perto está um silo monumental, que deve ter custado uns bons milhões de dólares, nunca foi usado, pode ser exibido como um dos elefantes brancos de gente que sonhava em grande esquecendo que era preciso cuidar dos pequenos.

Este homem que sorri com riso franco chama-se Samba Gebo, assim que me viu chegar a Bambadinca, antigo companheiro de armas, nunca mais me largou. Viemos até à velha ponte do rio de Undunduma, ali perto estava um destacamento infecto onde passei muito sobressalto, pelo temor de uma flagelação brutal, felizmente que nunca aconteceu. A guerrilha do PAIGC atacara Bambadinca vindo por aqui, a partir desse momento criou-se um destacamento onde passávamos a noite e se faziam uns pequenos patrulhamentos de dia, à volta de Amedalai.

Guardei as melhores recordações da Pensão Central, aqui almoçava e jantava durante os meses que fiz cooperação, em 1991. Comida gostosa, preços económicos, por vezes cooperantes interessantíssimos, caso dos holandeses do saneamento básico, os profissionais de saúde da Medicina Tropical, e numa mesa ao fundo, sempre com o seu sorriso doce, Dona Berta, uma senhora que fez milagres aí por 1977, quando não havia praticamente comida em Bissau e aqui nunca faltou a sopa, o prato e a sobremesa aos cooperantes. Um mistério que nunca se irá apurar.

A Fundação Mário Soares recuperou entre o material calcinado pelo vandalismo das tropas senegalesas imagens de rara beleza, que subsistiram das fogueiras feitas por estes colaboradores de Nino que destruíram a maior parte do acervo histórico da Guiné-Bissau. É uma imagem que foi publicada no Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, um Mandinga prepara uma esteira.

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Nota do editor

Último poste da série de 19 DE NOVEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22730: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (79): A funda que arremessa para o fundo da memória

sexta-feira, 26 de julho de 2013

Guiné 63/74 - P11872: Notas de leitura (505): "Coisas de África e a Senhora da Veiga" por José Pais (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Abril de 2013:

Queridos amigos,
A prosa de José Pais é para não esquecer, há que a registar e fazer chegar ao maior número possível de combatentes. É uma das grandes pérolas que encontrei em edições de autor.
Peço a quem tem um exemplar de “Histórias de Guerra: Índia, Angola e Guiné”, de José Pais, Prefácio, 2003, que tenha a bondade de me emprestar. A editora já faliu e o livro está esgotado.
Talvez se pudesse juntar tudo e a família autorizar uma edição, o que ele escreve é uma mistura inacreditável do varonil e do sentimental, trata o pungente e a grandeza militar com sábias frases curtas, vê-se bem quando está a sentir as suas narrativas.

Um abraço do
Mário


“Coisas de África e a Senhora da Veiga”, por José Pais (2)

Beja Santos

O capitão José Custódio Pais ia na sua quarta comissão, foi enviado para a Guiné, primeiro foi colocado em Bissau, não gostou da papelada e ofereceu-se para o mato, o comandante-chefe escolheu-o para comandar a CCAÇ 14, em Farim. É por isso que as recordações que ele passou a escrito e constam em “Coisas de África e a Senhora da Veiga” estão centradas neste período. José Pais domina a arte do conto, ciranda em torno de uma questão nuclear, é de uma controlada secura nas descrições, não abdica da sinceridade, por isso a sua prosa é admirável, merece lugar cimeiro na literatura da guerra.

Já se falou das paixões da Xuxa pelo soldado Marquito, como tudo acabou em bem e deu o pontapé de saída para mais 27 casamentos, tudo em prestações suaves. A história seguinte intitula-se “Cherno Sissé”, um malogrado combatente cujas agruras não acabaram em Portugal. Numa operação bem-sucedida em que se capturou inúmero material, Cherno tropeçou numa armadilha acoplada a uma mina antipessoal e ficou esfacelado. Salvou-se por milagre mas ficou sem uma perna e um olho e com um braço retorcido. Ficou em Lisboa, deram-lhe um pardieiro no bairro da lata da Cruz Vermelha. Cherno começou a chamar os filhos, sucederam-se as desgraças. Ainda chegou a ir à Gâmbia visitar a família, regressou com uma filha. Um dia pediram a nosso capitão para ser sua testemunha abonatória, fora assaltado em casa, em pleno dia, foi ao quarto buscar a espingarda e abateu um dos gatunos. Ia sendo morto pela populaça, com um varão de ferro vazaram-lhe o olho que lhe restava. “Lá fui à Boa Hora e lá tentei explicar ao meritíssimo juiz o que é ter servido o Exército Português 27 anos, o que é ter sido combatente operacional durante 9 anos seguidos, o que é ser ex-combatente desprezado e o que representa para um homem destes a perda da dignidade pessoal, face à vida”. O meritíssimo aplicou-lhe três anos e meio na prisão de Caxias. “Cherno Sissé, primeiro sargento do Exército Português na reforma, duas cruzes de guerra, duas vezes promovido por distinção, medalha da Torre e Espada de Valor, Lealdade e Mérito com Palma, passados dois anos de cadeia saiu em liberdade condicional. Voltou para casa de onde agora quase nunca sai. Comprou uma pistola que mantém carregada debaixo do travesseiro. A casa de Cherno Sissé continua a ser porto de abrigo dos fugidos da Guiné e dos que têm fome. Lá vão pedir conselho ao Homem Grande da Catorze de Farim que a Pátria Portuguesa usou e deitou fora”.

Segue-se a história de Seidi Sanhá, a viúva de um fuzileiro. Seidi foi casada com um alferes comando do Batalhão de Comandos Africanos, João Bacar Sanhá. Depois do 25 de Abril deram-lhe um mês de licença, trinta dias depois apresentou-se garbosamente fardado no seu camuflado justo, levaram-lhe para o clube militar de Santa Luzia, encostaram-no ao paredão da piscina vazia com mais 11 camaradas. Apavorada, a viúva fugiu com os filhos, abalou para Dakar. “É mulher-a-dias em Lisboa há 12 anos, tantos quanto dura o seu fadário. Já bateu todas as portas, a todos os ministérios. Como tem o 5º ano, já fez dezenas de requerimentos (…) Está cansada, muito cansada, e quer regressar para junto dos filhos, já homens e sem emprego que ninguém dá trabalho a filhos de um porco fascista do exército colonial, mas não tem dinheiro para o avião. Seidi Sanhá é a vergonha viva de Portugal desavergonhado e indigno que gasta milhões com a Bósnia e o Kosovo e que despreza quem o serviu até à morte”.

O derradeiro conto é autobiográfico “Como tudo começou e acabou”. Fala da sua vocação, recorda a sua mãe extremosa e partiu para a Índia, como alferes. Anos volvidos, com trabalhos e fadigas passados, arribou à Guiné, deram-lhe papelada a rodos, montou uma logística para evitar roubos no cais do Pidjiquiti. Fartou-se e pediu para ir para o mato. Disseram-lhe que a companhia tinha bom pessoal, estava muito desfalcada e o capitão anterior não tinha arte para o ofício. Verificou que o desconforto dos seus subordinados era degradante:
“– Quem é o mais antigo? – Perguntou o capitão. 
– Sou eu – Disse um deles. 
– Tens oito dias para limpar e caiar isto tudo. Agarras no teu grupo de combate e logo que esteja tudo pronto apresentas-te. Não ficas dispensado do serviço. Vocês sabem jogar bridge? Que não. Nenhum sabia – eu venho cá jantar convosco duas vezes por semana sem avisar. Jogar à batota é terminantemente proibido”.

Descobriu muita corrupção e mão baixa. Chamou os furriéis e distribuiu missões, bem-feitorias mais do que urgentes. Pediu à mulher do alferes da intendência que desse aulas ao pessoal, queria todos os militares a fazer exame da terceira classe. Cortou a direito quando se inteirou que havia um sargento que fazia negócio com os soldados, explorando-os, levantou-lhe um processo e puniu-o com o máximo da sua competência. Já lhe chamavam o capitão Mandinga pelo facto de todas as semanas retirar um versículo do Corão e o afixar por cima da escala de serviço, à porta da companhia.

Passados meses, caiu numa mina e só não morreu por milagre da Senhora da Veiga. “Sentiu um grande estrondo, viu tudo vermelho, subiu no ar e caiu estatelado. Viu logo que estava muito mal e que dificilmente se safaria.

Acorreu o Queta, cabo enfermeiro experiente. 
– Tem cuidado que pode haver mais minas – Disse-lhe o capitão ainda consciente. 
– Não faz mal nosso capitão – Disse o Queta valentemente. 
– Pede sangue para Farim, ORH+. Não me dês água. Tenho a barriga furada. Vou ter muita sede. Se me dás água, matas-me. 
– Fica descansado nosso capitão. Eu sabe.

Deu-lhe a morfina, fez-lhe o garrote, pôs-lhe um penso na femoral arrancada que esguichava sangue como uma torneira.

Em flashes, viu o filme da sua vida e rezou à Senhora da Veiga que o salvasse.

Veio o médico de Farim com dois colchões na camioneta onde o deitaram por causa dos solavancos e quando chegaram a Farim puseram-lhe a correr sangue dos seus soldados Mandingas, entretanto recolhido (…) Meteram-no no avião, foi operado uma hora depois. Quando despertou, passados dois dias, deram-lhe uma carta da sua Mãe, datada da véspera do acidente.

“Meu querido filho 
São três da madrugada e tive um pressentimento que não estás bem. 
Levantei-me e fui para a Igreja rezar à Senhora da Veiga…"

" Passadas quatro horas, caia na mina! E foi assim que tudo acabou. 
A Senhora da Veiga fez o milagre”.
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Nota do editor

Último poste da série de 22 DE JULHO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11860: Notas de leitura (504): "Travessia", por Costa Monteiro; "Coisas de África e a Senhora da Veiga" por José Pais (Mário Beja Santos)

terça-feira, 28 de outubro de 2008

Guiné 63/74 - P3366: PAIGC - Docs (2): O grande marabu Cherno Rachide, de Aldeia Formosa: um agente duplo ? (Luís Graça)



Pasta: 07197.164.011
Assunto: Relatório da viagem a Hamedalaye e Sansalé
Termos de referência: Relatório da viagem a Hamedalaye e Sansalé: encontro com Daouda Camara, missão a Cacine, dificuldades em contactar Pedro Duarte, informações sobre os elementos de confiança do partido e elementos da PIDE, dados militares de Cacine, Gadamael e Catió.
Data: s/d
Observações: Doc. incluído no dossier intitulado Relatórios XIII.
Nível 2: 04.PAI/PAIGC Nível 3: Relatórios/Directivas
Fundo: Relatórios/Directivas

formato .pdf 07197.164.011

Fonte: Fundação Mário Soares > Dossiês > Guiledje · Simpósio Internacional · Bissau, Guiné-Bissau · 1 a 7 de Março de 2008 > Arquivo Amílcar Cabral > PAI/PAIGC > Relatórios/Directivas



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PAIGC > Docs (2) > Relatório da viagem (*)
Tr. do francês: L.G. (**)

Chegados a Hamedalaye [Amedalai, na Guiné-Conacri], recebemos instruções do camarada Secu Na Bayo para nos encontramos em Sansalé e contactar as organizações militares e administrativas [do Partido], afim de nos conduzirem até ao pé da fronteira.

Em Sansalé, depois das formalidades, obtivemos instruções respeitantes à nossa estadia.

Em Tanéné fomos recebidos pelo camarada Tomás Queta, chefe da aldeia. Por seu intermédio, conseguimos falar com o camarada do Partido, Daudá Camará, de Cacoca. Depois de uma longa sessão informativa sobre a vida do Partido no chão dos nalús e mais particularmente sobre a sua organização do interior da região, o camarada Daudá Camará mereceu a nossa confiança. E foi assim que nós o encarregámos de uma missão junto do camarada Pedro Duarte, em Cacine.

No regresso, recebemos as seguintes informações:

(i) É difícil contactar o Duarte, é vigiado dia e noite por um Alferes Indiano, que trabalha no mesma repartição com o seu adjunto, um caboverdiano de nome Carvalho, que é um grande inimigo da nossa causa, juntamente com o régulo de Cacine, de seu nome Tomás Camará, igualmente nefasto.

(ii) A casa do Duarte é guardada dia e noite por soldados africanos; já não tem jipe de serviço, desloca-se agora num jipe do exército. A sua mulher, que o denunciou, regressou a 7/12/1961;

(iii) Todos os régulos nalus foram convocados a Cacine, para receber as seguintes informações: Supressão do sistema de registo de denominação indígena; deixa de haver distinção entre brancos e negros, tanto os grandes como os pequenos devem passar a possuir um bilhete de identidade de cidadão português; este bilhete de identidade deve ser pago, mas ainda não foi fixado o respectivo preço. Supressão do imposto indígena. O preço dos produtos agrícolas passam a ser fixados pelos proprietários (sic). As regiões convocadas foram Catió, Cacine, Buba, Fulacunda, Gadamael, Bedanda, Cacoca, Quitafine, Sanconhá, Camissoro, etc.,

(iv) Que é preciso ter muito atenção a Álvaro Queta, de Sanconhá, Munini Camará (Lumba jodo), de Cacoca, que são elementos muito perigosos da PIDE. Circulam por todas as regiões (do sul).

(v) Os elementos de confiança do Partido são: em Cacoca, Daudá Camará, Abdulai Conté, Mbadi Bonhequi ; em Cacine, Laminé Camará, o relojoeiro, e Cassamá, motorista; em Missidé (Quebo), Aliu Embaló, e o grande marabu Cherno Rachid. [Negritos de L.G.] (**)

Informações de carácter militar:

A entrada da Cacoca é guardada por elementos da polícia administrativa [cipaios] dos quais 8 são africanos e um europeu. Entre os africanos, figuram: Lopes (Malagueta), Lassana Turé, Alséni Jaló, Samba Sanhá e José, que são muito violentos,

(i) Em Cacine encontram-se estacionados 140 portugueses, com o seguinte equipamento: 2 jipes, 2 anti-aéreas, 1 grande canhão (sic), 2 cargas de napalm; a pista de aviação é alcatroada, pode receber aviões modernos e é guardada, dia e noite, por saoldadoa europeus;

(ii) Gadamael: 50 soldados equipados com 2 canhões, 1 jipe e 1 anti-aérea.

(iii) Catió: aqui encontra-se a sede da PIDE. Os soldados são em pequeno número.

(iv) Missidé (Quebo): 80 soldados europeus, equipados com 1 camião, 1 jipe, 1 antiaérea, 1 canhão (*).

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Notas de L.G.:

(*) Vd. primeiro poste desta série > 19 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3330: PAIGC - Docs (1): Comunicado de 27 de Abril de 1964 sobre a vitória na batalha do Como (Amílcar Cabral)

(**) O documento, dactilografado, é redigido em francês, com errros ortográficos e de dactilografia. Julgo que às vezes o autor do relatório usa o sistema francês de registo de nomes (Nom + prénom). Nalguns casos, alterei, sendo o apelido (nom) antecido do nome próprio (prénom): por ex., Dauda Camará (no relatório, Camara Daouda)...

No que diz respeito, ao armamento identificado nos nossos quartéis, é bem possível que o autor se queira referir ao obus quando fala de canhão grande, e possivelmente a canhão sem recuo quando fala simplesmente de canhão... Também é possível que tenha confundido a metralhadora pesada e antiaérea...

(***) É um pouco surpreendente, pelo menos para mim, esta confissão do autor do relatório. Não sei se estamos a falar da mesma figura, do dignatário religioso que vivia em Aldeia Formosa, que eu conheci, em Bambadinca, e que no meu tempo (Junho de 1969/Março de 1971) era tido como um dos poderosos aliados dos portugueses, ouvido amiudadas vezes pelo Spínola (dizia-se)...

Havia, por ooutro lado, a lenda de que Aldeia Formosa (Quebo) nunca era atacada pelo PAIGC por deferência, respeito ou temor da figura do Cherno Rachide, ou- segundo outra versão, mais popular entre os meus soldados fulas - devido ao poder (mágico-religioso) do Cherno Rachide, que com os meus mezinhos fazia gorar todas as tentativas de ataque dos turras... Nunca estive em Quebo nessa altura, não posso confirmar ou infirmar nenhuma das versões (ou lendas).

Sobre o Cherno Rachid, vd. postes de:

2 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2714: Antropologia (5): A Canção do Cherno Rachide, em tradução de Manuel Belchior (Torcato Mendonça)

4 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1815: Álbum das Glórias (14): o 4º Pelotão da CCAÇ 14 em Aldeia Formosa e em Cuntima (António Bartolomeu)

18 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCCX: O Cherno Rachid da Aldeia Formosa (Antero Santos, CCAÇ 3566 e CCAÇ 18)16 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXVIII: Um conto de Natal (Artur Augusto Silva, 1962)

18 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCCX: O Cherno Rachid da Aldeia Formosa (Antero Santos, CCAÇ 3566 e CCAÇ 18)

15 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LVII: O Cherno Rachid, de Aldeia Formosa (aliás, Quebo) (Luís Graça).

Sobre o Islão e a Guiné Portuguesa, vd. também o texto de Francisco Garcia:FRANCISCO PROENÇA DE GARCIA > Os movimentos independentistas, o Islão e o Poder Português (Guiné 1963-1974)

quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

Guiné 61/74 - P22920: (Ex)citações (399): Ética na guerra? O caso do "matador" do comandante de bigrupo Mário Mendes (1943-1972): "Não se mata um homem de costas", disse ao António Duarte, o apontador da HK 21, do 4º Gr Comb da CCAÇ 12... (Seria o Cherno Baldé?)


Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > Contuboel > CIM de Contuboel > 1969 > CART 2479 / CART 11 (1969/70) > > O Valdemar Queiroz, com os recrutas Cherno Baldé, Sori (Jau ou Baldé) e Umaru Baldé (que, feita a recruta, irão depois para a CCAÇ 2590, futura CCAÇ 12, a partir de 18 de junho de 1970). Estes mancebos aparentavam ter 16 ou menos anos de idade (!). Eram do recrutamento local e, originalmente, não falavam português. Terá sido este Cherno Baldé o "matador" do Mário Mendes? Em 1969/71, havia dois soldados com este nome, ambos fulas, um deles o sold nº 82115269 Ap Metr Lig HK 21, da 1.ª secção do 4.º Gr Comb (que eu, Luís Graça, integrei muitas vezes ao longo da comissão).

Foto (e legenda): © Valdemar Queiroz (2014). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. C
omentário de António Duarte [ex-fur mil da CART 3493, a companhia do BART 3873, que esteve em Mansambo, Fá Mandinga, Cobumba e Bissau, 1972-1974; foi transferido para a CCAC 12 (em novembro de 1972, e onde esteve em rendição individual até março de 1974; economista, bancário reformado, formador, com larga experiência em Angola; tem mais de meia centena de referências no nosso blogue] (*)


Boa noite Camaradas.

O homem do PAIGC, Mário Mendes, lidera a operação de colocação de minas. Mata e provoca feridos à CCAÇ 12  e, passado mais de um ano,  morre às mãos da mesma companhia de caçadores.

Casualidades da guerra, bem tristes por sinal. Há uma curiosidade sobre a morte do Mário Mendes. À época eu pertencia à companhia de Mansambo, a CART 3493 / BART 3873 e assisti a uma conversa entre o furriel que comandava a secção de HK 21 e o soldado fula que o abateu, em Bambadinca. 

A CCAÇ 12 estava no mato e detetou a presença de tropa do PAIGC. Ficou também claro que a CCAÇ 12 estava detetada, Os dois grupos evoluíram com muito cuidado e, a determinada altura, penso já perto da Ponta Varela,  a CCAÇ 12  abandonou o trilho e emboscou dentro do mato, ficando a HK 21  apontada na direção de onde se pensava que poderiam vir as tropas do PAIGC. 

Passados alguns minutos vem ao trilho um homem deles, que se ajoelhou e percebe-se que tenta "ler" as pegadas. Os restantes estavam emboscados no lado inverso ao da CCAÇ 12. O furriel faz sinal ao nosso militar para abrir fogo. Para espanto dele, em vez de disparar e apanhar o guerrilheiro em causa,  debruçado e de costas, o homem do quarto pelotão emite um ruído do género "pst pst", o guerrilheiro volta-se e nesse momento é abatido. 

Justificou-se então o nosso apontador, que ele nunca mataria um homem pelas costas.

Entretanto fui para a CCAÇ 12  em janeiro de 73 e tive a oportunidade de confirmar com o próprio e reafirmou-me que não matava ninguém pelas costas. 

Em síntese um código ético pouco compatível com a guerra.

Um abraço
António Duarte
Ex fur atirador, CART 3493 e CCAÇ 12 (Mansambo e Xime, dez 71 /jan de 74)


18 de janeiro de 2022 às 19:32

2. Comentário do editor LG:

O nosso coeditor Jorge Araújo já aqui deu mais informação detalhada sobre este encontro fatal do Mário Mendes. (***)

O comandante de bigrupo Mário Mendes (1943-1972)  morreu em 25 de maio de 1972, 5.ª feira, no decurso da Acção Gaspar 5, realizada por seis Grupos de Combate,  três da CART 3494 e outros três da CCAÇ 12. 

O encontro fatal deu-se em Ponta Varela, tendo sido capturada a sua Kalashnikov, três carregadores da mesma arma e ainda documentação que dava conta do calendário de acções planeadas para a zona, atuava no Sector 2, da Frente Xitole-Bafatá (, nomenclatura do PAIGC), em particular no triângulo Xitole-Bambadinca-Xime.  (****)

Quem teria sido o "matador" do Mário Mendes?

No meu tempo, no 4º Gr Comb da CCAÇ 12 (Bambadinca, julho de 1969 / março de 1971), a HK21 fazia parte da 1.ª secção. E o apontador era o Cherno Baldé, fula (F):

4.º Gr Comb | Comandante: alf mil  cav 10548668 José António G. Rodrigues [, já falecido, vivia em Lisboa]

1.ª secção | fur mil 15265768 Joaquim Augusto Matos Fernandes [, engenheiro técnico, vive no Barreiro; destacado para o redoordenamento de Nhabijões, logo em finais de 1969; substituído, em muitas ocasiões, pelo fur mil arm pes inf, Luís Manuel da Graça Henriques]

1º Cabo 18861568 Luciano Pereira da Silva [, morada actual desconhecida];
Soldado Arvorado 82115469 Samba Só (F)
Soldado 82109869 Samba Jau (Mun Metr Lig HK 21) (F)
Sold 82115269 Cherno Baldé (Ap Metr Lig HK 21) (F)
Sold 82117569 Mamai Baldé (F)
Sold 82117869 Ansumane Baldé (Ap Dilagrama) (F)
Sold 82118269 Mussa Jaló (Ap Dilagrama) (FF)
Sold 82118969 Galé Sanhá (FF)

2.ª secção (a do Mort 60 e do dilagrama) era comandada pelo  fur mil at inf 11941567 António Fernando R. Marques [, vive em Cascais, empresário reformado] e  3.ª secção (a do LGFog 8,9) pelo 1.º Cabo 00520869 Virgílio S. A. Encarnação [, vive em Barcarena]:

É de todo provável que o Cherno Baldé, sold nº 82115269 tenha sido louvado (ou até ganho uma cruz de guerra) por este feito. Mas havia outro Cherno Baldé, também fula, soldado 82109669, Mun Metr Lig HK 21, que pertencia à 3.ª secção do 3.º Gr Comb (comandado pelo alf mil at inf Abel Maria Rodrigues [, bancário reformado, Miranda do Douro]. 

A 3.ª secção era comandada pelo fur mil at inf n.º 06559968 José Luís Vieira de Sousa [, natural do Funchal, agente de seguros reformado]. 
___________

Notas do editor:


(***) Vd. poste de:

17 de maio de  2017 > Guiné 61/74 - P17368: Efemérides (251): ... em abril de 2017: o 13º aniversário do nosso blogue, o XII Encontro Nacional da Tabanca Grande, os 43 anos do regresso da minha CART 3494, o 25 de Abril e o fim da guerra, o meu batismo de fogo há 45 anos em emboscada comandada pelo Mário Mendes (que viria a ser abatido um mês depois)...enfim, os nossos encontros e desencontros (Jorge Araújo)

21 de dezembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16865: (D)o outro lado do combate (Jorge Araújo) (3): Mário Mendes (1943-1972): o último cmdt do PAIGC a morrer no Xime... Elementos para a sociodemografia do seu bigrupo em 1972: tinha 27.9 anos de idade e 8.9 anos de experiência de conflito...

domingo, 11 de janeiro de 2015

Guiné 63/74 - P14138: História do BART 3873 (Bambadinca, 1972/74) (António Duarte): Parte XX: setembro de 1973: (i) declaração unilateral da independência; (ii) início do Ramadão: o Islão como forte barreira antissubversiva; (iii) propostos como candidatos a peregrinação a Meca os régulos do Xime e Badora; (iv) morte do Cherno Racide, e AldeiaFormosa





Guiné > Zona Leste > Setor L1 > Bambadinca > CCAÇ 12 (1969/71) >  Julgo que  estas imagens têm alguma coisa a ver com a visita que o Cherno Rachide fez a Bambadinca, no meu/nosso tempo (c. 1970)...Infelizmente as fotos do meu camarada Arlindo Roda não trazem legenda (nem data)... ... A personagem central, vestida de branco e "gorro" preto, que parece estar a presidir a uma cerimónia religiosa islâmica,  pode muito bem ser o Cherno Rachide que eu conheci em Bambadinca... 

Recordo-me de as NT lhe terem armado uma tenda, no recinto do quartel de Bambadinca, para ele receber condignamente não só as autoridades locais, civis e militares, como também os seus fieis...  Ele virá a falecer, em Aldeia Formosa, em setembro de 1973. O Cmnd do BART 3873 organizou uma coluna de transporte (!) para os seus fiéis poderem ir prestar-lhe a última homenagem em Aldeia Formosa!,,,  No meu tempo, o troço Saltinho-Aldeia Formosa estava interdito... 



Fotos: © Arlindo Roda (2010). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: LG]


1. Continuação da publicação da História do BART 3873 (que esteve colocado na zona leste, no Setor L1, Bambadinca, 1972/74), a partir de cópia digitalizada da História da Unidade, em formato pdf, gentilmente disponibilizada pelo António Duarte (*)

[António Duarte, ex-fur mil da CART 3493, a Companhia do BART 3873, que esteve em Mansambo, Fá Mandinga, Cobumba e Bissau, 1972-1974; foi transferido para a CCAC 12 (em novembro de 1972, e não como voluntário, como por lapso incialmente indicamos); economista, bancário reformado, formador; foto atual à esquerda].


O destaque do mês de setembro de 1973 (pp. 67/69) vai para:

(i) declaração unilateral, por parte do IN, da independência da Guiné-Bissau, "ato político que não teve eco no seio da população controlada pelas NT";

 (ii)  início do Ramadão: o Islão como forte barreira antissubversiva;

(iii) propostos como candidatos à peregrinação a Meca os régulos do Xime e Badora [, Mamadu Bonco Sanhá, tenente de 2ª linha];

(iv) morte do Cherno Rachide, de Aldeia Formosa
















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Nota do editor:

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Guiné 63/74 - P7269: Operação Saudade 2010 (Mário Beja Santos) (5): Páginas de um diário quase improvável, antes de viajar para a Guiné (3) 1 de Novembro

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Novembro de 2010:

Queridos amigos,
Há muito tempo que não fazia um exercício destes. Não é petisco nenhum, são carambolas da memória, anda-se de pinça em riste, à procura das emoções vividas. A chatice é que estou atolado de trabalho, até partir. E a Guiné já está a mexer comigo. Hoje fui buscar vários quilos de roupa para entregar à filha do Abudu, vai ser uma das primeiras missões deste recoveiro. E há chamadas, contactos ainda a estabelecer. E há o medo de que falava o Torcato, talvez o mais insidioso de todos: o que é que se vai dizer, passado todo este tempo? Como é que é possível não deflagrarem várias granadas ofensivas e defensivas naquilo a que se chama o coração e os sentimentos?
Glosando o que a minha irmã escreveu num daqueles bilhetes-postais, eu tenho que aguentar a viagem a que me impus, não foi ninguém que me empurrou, de cá para lá.

Um abraço do
Mário


Operação saudade 2010 (5)

Páginas de um diário quase improvável, antes de viajar para a Guiné (3)

Beja Santos

Os bilhetes-postais, os telefonemas, os livros

1 de Novembro

Faço vigília pelos meus mortos, os do sangue, os da mais terna amizade, aqueles de quem serei devedor para todo o sempre. Incómoda foi a hora em que decidi abrir a caixa de sapatos com os bilhetes-postais recebidos na Guiné, até aqueles que enviei para os meus mortos. Todas estas imagens desinquietam, me transferem prematuramente para a aventura que vou viver, dentro em breve.

Primeiro os bilhetes que a Manuela me enviava frequentemente, fosse a que pretexto fosse. 3 de Março de 1979, com a fachada da Estação do Rossio, a minha irmã recomenda-se: “Um dia de Páscoa o melhor possível é o que sinceramente te desejamos. Que Deus te vá dando forças para suportares tudo o que seja imposto. A 10 de Agosto desse ano, a minha mãe, a caminho de São Pedro do Sul, na companhia do Rodolfo, o meu sobrinho, com a biblioteca da Universidade de Coimbra, despede-se como sempre: “Beijo da tua mãe que nunca te esquece, Ângela”. Há bilhetes para todos os gostos, bilhetes policromos, do tipo arte pop, castelos, aldeias típicas e santinhos como aquele que a minha mãe me envia em Fevereiro de 1969, recordando um ano antes, as férias que passara nos Açores, na minha companhia. Leio e releio o que me dizem Junho de 1970 a minha irmã com uma imagem da Basílica de Fátima: “Viemos de passeio no nosso Fiat 850 Especial, o teu cunhado fez exame de condução com 27 lições e comprou o carro novo no dia. Desejo-te um rápido e feliz regresso”. A gratidão que devo à minha irmã não tem preço. Meticulosamente, aos sábados à tarde, ela ia visitar todos os feridos que estavam no Hospital Militar, levava-lhes comida e muito carinho. O marido e os filhos ficavam no carro enquanto ela atravessava aqueles corredores com gente com membros amputados, cegos, em cadeiras de rodas. Ela fez a comissão toda com uma devoção fraternal e um grande espírito de dádiva, muito próprio das enfermeiras.

Escrevo à minha mãe em 20 de Janeiro de 1967 e mando-lhe um bilhete-postal com uma plantação de chá em S. Miguel. Comunico-lhe que vou para exercícios finais para a Lagoa do Fogo. E é da Lagoa do Fogo que a minha amiga Cremilde Tapia me envia notícias, pedindo-me para ser perseverante e cumprir a vontade de Deus. Chega mesmo a dizer que quando acabar a comissão na Guiné irei passar por lá. Como aliás aconteceu, o Carvalho Araújo lá foi arrastado do cais do Pidjiquiti até à Ponta Caió, depois atirou-se pela noite escura em direcção a Cabo Verde, contingentes foram largados na ilha do Sal e depois em S. Vicente. A etapa seguinte foi o porto de Ponta Delgada, tinha os amigos todos à minha espera. O mais emocionante foi o barco a avançar lentamente sobre aquele esporão de cimento onde uma multidão de mulheres trajando de negro aguardava filhos, maridos e irmãos. De um silêncio sepulcral passou-se à estridência máxima enquanto de lá para cá, e de cá para lá, se faziam os reconhecimentos da voz do sangue.

A Lagoa do Fogo, ilha de S. Miguel

Plantação de chá, ilha de S. Miguel

Estação do Rossio em 1969

Não sei o que hei-de fazer destes bilhetes-postais. Procurei-os como teias de todo esse tempo que me parecia já descodificado, reconhecido, escancarado. É mentira, somos mnésicos, mas há sempre sombras, leituras dúplices. É um dos sabores da velhice, redescobrir lembranças do passado, poças de água que resistiram aos escaldões do vento suão.
Agora importa conversar, saber o que se vai passar na Guiné.

Começo pelo Cherno.
- Cherno!
- Pronto, às ordens!
- Cherno, já conseguiste encontrar o Doutor (Doutor é Quebá Sissé, cozinheiro, atirador e outras coisas mais, perdi-lhe o rasto, vive perto de Farim, pedi ao Cherno para o contactar)?
- Tumulu Soncó foi comprar tecidos a Zinguichor, passou por Farim, deixou recado. Boa notícia, Tomani Sanhá está vivo, vive perto de João Landim, a caminho de Mansoa. Com o telemóvel as coisas agora são mais fáceis, ficou combinado que vou seguir a tua viagem e a partir do dia 18 vou saber quando chegas a Bambadinca. No Cossé e em Badora, está tudo informado. Ninguém sabe do Campino, deve andar pelo Senegal. Tumulu deixou recado em Ziguinchor. A gente de Amedalai quer fazer-te uma festa, vais receber galinhas e panos.
- Cherno, não tenho palavras para te agradecer!
- Nosso alfero manda sempre, sempre. Pessoal da Guiné está à espera.

A seguir ligo para o Queta Baldé.

- Boa tarde, Queta.
- Boa tarde, boa tarde.
- Queta, já falei com o Mamadu, há muita informação a correr entre Bambadinca e o Xime, mas há nomes em falta, ninguém encontra Domingos nem o Príncipe Samba.
- Zé Pereira já foi encontrado. Está em Catió, vem para Bissau para te ver. Guardou sempre os louvores e a condecoração. Gostava de ser ajudado, não sei o que dizer, há muita tristeza, tens de partir preparado para o que vais ver.
- Vai-me dando notícias, meu bom Queta.

Amanhã vou ligar para Santa Helena e Bissau. Hoje já chega de emoções.

Remexi na bibliografia de tudo o que li na Guiné. Cheguei à conclusão que há títulos omissos. Agora sei bem porquê. Livros que não me tocaram, mesmo que fossem obras-primas. Foi o caso de “As Vozes do Silêncio”, de André Malraux. Para quem se lembra, o café Bento tinha uma pequena livraria ao fundo, ali encontrei relíquias. Recordo que na segunda visita a Bissau, em Julho de 1969, andava à procura de livros, perdera tudo no incêndio de 19 de Março, em Missirá. Malraux era para mim um grande escritor. Como, aliás, vim a confirmar quando, anos mais tarde, li "A Condição Humana" e as memórias que ele dedicou a Charles de Gaulle. Comprei “As Vozes do Silêncio” à toa, não me pude entender com aquela catadupa de análises. Dois exemplos: “O génio pode nascer de uma ruptura individual; a evolução e a mutação brusca dos valores provocam, contudo, em certas épocas privilegiadas, rupturas relativamente numerosas. Vários artistas tomam consciência, quase simultaneamente, de um desacordo fraterno entre cada um deles e a arte que admiram em comum; certas descobertas são retomadas por todos, como as descobertas técnicas do cinema o são hoje numa contradança inextrincável”. E mais adiante “É impossível compreender o papel desempenhado na nossa civilização pela ressurreição que ela suscita, senão descobrirmos que a arte que a pede surgiu das brechas da cristandade. Não do cristianismo, nem do pensamento religioso, mas da sociedade toda-poderosa que modelou a alma e o espírito dos homens, e cuja última expressão encontramos no que conservam do seu passado a Índia inquieta e o Islão”. Eu sei que isto é muito belo e seguramente profundo. Li na Guiné e não compreendi. E continuo a não alcançar esta forma de falar do absoluto e da permanência do acto criador. Paciência.
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 10 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7259: Notas de leitura (168): Crónica da Libertação, de Luís Cabral (5) (Mário Beja Santos)

Vd. último poste da série de 7 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7237: Operação Saudade 2010 (Mário Beja Santos) (4): Páginas de um diário quase improvável, antes de viajar para a Guiné (2) 31 de Outubro

domingo, 12 de janeiro de 2020

Guiné 61/74 - P20551: Questões politicamente (in)corretas (49): no 1º ano do consulado de Spínola, ainda havia ou não indícios da prática de trabalho forçado (, extinto por decreto, em 1961), por parte da administração e até do exército ?


Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Sector L1 (Bambadinca( > Mansambo > CART 2339 > Março / Maio de 1969 > Op Cabeça Rapada > Concentração de pessoal e viaturas no quartel de Mansambo. Foto do álbum de Torcato Mendonça (ex-alf mil, CART 2339, Mansambo, 1968/69)

Foto (e legenda): © Torcato Mendonça (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complemementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Sector L1 (Bambadinca( > Mansambo > CART 2339> Março / Maio de 1969 > Op Cabeça Rapada- Foto do álbum do Albano Gomes, que vive em Chaves, e que foi 1º cabo op cripto, CART 2339 (Mansambo, 1968/69).

Foto (e legenda): © Albano Gomes (2008). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complemementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

I. Seleção de comentários ao poste P20541 (*)

1. Fernando Gouveia:

Em março/abril de 69 estive de férias e não me recordo destas operações de desmatamento, no entanto assisti várias vezes a pequenas capinagens organizadas pelo Administrador da altura. As coisas eram sempre feitas da mesma forma: o Administrador recrutava à força, sem violência, os nativos de que precisava e levava-os para os locais a capinar, como junto à pista de Bafata e onde precisava.

Sempre foi do meu conhecimento, disso lembro-me bem, que pagava a cada elemento 15 escudos por dia, o que me faz pensar que alguns não gostariam da situação mas outros sim.

 2. Luís Graça:

Fernando, esse elemento informativo é importante:

"o Administrador recrutava à força, sem violência, os nativos de que precisava e levava-os para os locais a capinar, como junto à pista de Bafata e onde precisava. Sempre foi do meu conhecimento, disso lembro-me bem, que pagava a cada elemento 15 escudos por dia."

Neste caso foi um operação que envolveu quase toda a população masculina, válida, do regulado de Badora... Estamos a falar 7 mil homens, só na Op Cabeça Rapada I...

Aqui foi preciso seguramente a colaboração ativa do régulo de Badora, o poderoso Mamadu Bonco Sanhá, tenente de 2ª linha, comandante da companhia de milícia do Cuor.Vogal do conselho logístico da Província (, ao lado, por exemplo, de outro grande aliado dos portugueses, o régulo manjaco Joaquim Baticã Ferreira.)

Talvez o Torcato Mendonça, da CART 2339 (Mansambo, 1968/69)., que não tem dado, há muito, "sinais de vida", nos pudesse explicar algo mais sobre o planeamento e a execução da Op Cabeça Rapada...

3. Valdemar Queiroz:

Da minha CART11 'Os Lacraus' esteve um Pelotão (revezando-se),  destacado na segurança da construção de várias pequenas pontes na estrada/picada entre Nova Lamego-Cabuca, que em vários locais do percurso ficava intransponível no tempo das chuvas. 

Os pedreiros e ajudantes, talvez um total de cinco, eram todos indígenas contratados em Nova Lamego. Não me lembro se os próprios pedreiros eram os 'arquitectos a olho' ou traziam algum croqui de como deveriam fazer as pontes.

4. António J. Pereira da Costa:

Quanto à operação, parece-me que seria necessária para negar ao IN locais onde se acoitar.

Aqui põe-se a questão de saber se a Pop. estava ou não do lado das NT. Se assim fosse não se poria a questão de se saber se se tratava de "voluntários da corda" ou de trabalhadores indígenas assalariados gratuitamente.

Se não estavam francamente do lado das NT iriam voluntariamente obrigados, o que é difícil de provar. Uns iriam outros não, como sempre sucede em casos idênticos. Os que não quisessem ir, se fossem poucos, não poderiam manifestar-se; se fossem muitos, já estaríamos na 5.ª fase da subversão ou próximo dela...

Sei que houve múltiplas operações deste tipo, visando criar espaços para as passagens das estradas, criando "espaços de segurança" que impedissem o In de se aproximar a curta distância das colunas.

As desmatações para os trabalhos agrícolas eram levadas a cabo pela Pop e normalmente com a respectiva protecção.

5. Cherno Baldé:

Sobre este tema de trabalhos forçados, porque é disto mesmo que se trata, eu desafio ao Fernando Gouveia, a mostrar provas ou evidências que os trabalhadores recrutados a força e com violência sim, porque havia a violência psicológica e o medo, as pessoas eram coagidas e ninguém o fazia de livre vontade. De pagamentos nunca ouvi falar, talvez aos Régulos, não sei, não posso confirmar. O território de alto Casamansa que era quase despovoado até principios do séc. XIX, acabou por ser povoado por populações que fugiam em massa dos trabalhos forçados da parte portuguesa. Ainda hoje aquelas populações se identificam como fulas e mandingas de Gabu (Gaabunkés).

E nesses recrutamentos forçados feitos junto das familias, nem as crianças escapavam, pois cada familia tinha que indicar uma ou duas pessoas conforme o numero solicitado pelas autoridades coloniais. Uma vez, aconteceu comigo, entre 1973/74 no tempo da CCaç.3549, ser listado para a limpeza da estrada que ligava Fajonquito a Canhamina (3km), por falta de adultos disponíveis na familia, teria 13/14 anos. Já sabia da violência dos trabalhos de genero e recusei-me a ir e fui esconder-me no quartel junto dos meus amigos condutores. Depois, o Agente (Sipaio), foi lá a minha procura, tentando mostrar autoridade, mas foi corrido quase a pontapé pelo Dias o mais agressivo dos meus patrões e nunca mais me chateou. A partir desse acontecimento eu percebi que os soldados portugueses, obrigados a fazer a guerra na Guiné, não conheciam e não colaboravam com o sistema colonial de opressão contra as nossas populações o que por si constituia um grande paradoxo, pois em condições normais deveria ser ao contrário pelo facto de que estariam ali para defender o sistema de dominação colonial de Portugal sobre as populações nativas.

Das poucas vezes que conseguiram arrastar-me, por indicação do meu pai que não tinha outra alternativa, nem água, nem comida e muito menos dinheiro. No entanto muitos estavam convencidos que os brancos davam dinheiro para o efeito, mas que o Régulo e seu séquito se apropriavam do mesmo, facto que não posso confirmar em virtude da minha idade, na altura.

PS: Uma observação que gostaria de fazer relativamente a observação do José Nascimento é que a flora da região Sul da Guiné é muito diferente em relação ao resto do país pois devido a fertilidade do solo os arbustos e suas ramificações têm um ritmo de crescimento espantoso que em poucos dias atingem vários metros de comprimento. Quem viajou pelas estradas da zona sul, incluindo o triangulo Bambadinca-Xime-Xitole sabe do que estou falando.

6. António Rosinha:

Nunca se devia colonizar as pessoas, aliás os europeus em 1880 na Conferência de Berlim só pensavam nas riquezas do subsolo...mas uma coisa leva a outra.
Como é que um colonialista europeu, na África subsaariana, conseguiria convencer um "indígena" a trabalhar às suas ordens? Quando o indígena não sentia nem motivação social, política ou económica? Quando para a sua subsistência (alimentar, habitação, educação, saúde, desporto, vestuário...) estava tudo adquirido há séculos?

Digo eu que devia ser muito difícil convencer aquela sociedade pôr-se ao serviço de qualquer europeu. Claro que havia uma maneira, que era "a mal", outra maneira que era "a bem". Com ou sem dinheiro, só poderia ser a bem ou a mal.

Hoje após 50 anos livres dos europeus, os dirigentes africanos continuam a recorrer a "capatazes" europeus...e a investidores chineses, e de toda a ordem. Se não for a bem, vai a mal.

Sorte tiveram os Zulus que ficou lá muito ouro em cofre, todos os outros os cofres ficaram vazios.

7. Luís Graça:

Fernando e Cherno: 15 escudos na época (anos sessanta) era dinheiro... Os meus soldados da CCAÇ 12 ganhavam 20 escudos por dia (600 escudos ou pesos por mês)... tanto quanto um trabalhador rural indiferenciado no interior de Portugal (, e este só ganhava "à jorna", ou seja, nos dias em que trabalhasse...)

Os meus soldados tinham, além disso, mais 24$50, para comer, tal como eu: eles eram "desarranjados", recebiam em dinheiro; eu recebia, em "géneros", tinha direito a comer na messe... ou uma ração de combate (quando em operações)...

24$50 era igual para todos... do soldado ao general!

É evidente que se eu fosse um jovem fula da região de Bafatá ou da região de Gabu também queria ir para a tropa, que era "manga de ronco", e deixava de estar sujeito às pequenas prepotências dos chefes de posto, dos administradores, dos régulos e dos cipaios...

Isto não me impede de reconhecer que para a população de Badora era importante ter as estradas (Xime-Bambadinca-Bafatá e Bambadinca- Mansambo-Xitole- Saltinho) "capinadas"... Por elas circulavam não apenas os "tugas" mas também os fulas, os mandingas, os balantas, os comerciantes (europeus, libaneses, cabo-verdianos...).

Sei, de experiência própria, quanto nos custou, a todos, no setor L1, "reabriu", em setembro de 1969, grande parte do troço da estrada Bambadinca - Mansambo - Xitole - Saltinho, que estava interdito desde o último trimestre de 1968...

8. Cherno Baldé:

Hoje, mais lúcidos e libertos da propaganda dos Paigecistas, podemos reconhecer a importância das vias abertas no periodo colonial, mesmo com trabalho forçado, porque são as únicas que ainda existem. Mas, devemos dar as coisas o seu nome. Aqueles trabalhos de limpeza das estradas eram feitos por "voluntários" à força, recrutados com a ajuda ou imposição dos Régulos e seus agentes de repressão.
Se os trabalhos fossem pagos a 15 pesos, não seria preciso implicar as autoridades gentílicas, pois os innteressados seriam aos milhares e podiam até vir de outras regiões, porque os rendimentos que tiravam da terra e outros trabalhos eram muito inferiores. Se não, comparem os preços praticados na compra do amendoim que era o principal produto de renda na zona Leste, e o custo de produção para a obtenção de uma tonelada ou saco de 100 Kg.

9. Virgílio Teixeira:

Sobre a capinagem, também tivemos pessoal do recrutamento local a capinar as margens das pistas de aviação, quer em Nova Lamego, quer em S. Domingos, após as chuvas, Eram bastantes, talvez 20, não sei. Também faziam o arranjo, juntamente com as NT, do piso, que ficava todo esburacado, tenho fotos de uma operação destas.

Não me lembro se era trabalho forçado, nem sei quanto lhes pagávamos, não era da minha lavra este problema. Mas não era grátis, de certeza.

Agora um aparte meu, se o território era dos guineenses e por nós também utilizado, as pistas e estradas eram benéficas para todos, tropa e para a população toda, por isso também lhes competia trabalhar nas suas terras, penso eu!

10. Fernando Gouveia:

Para o Cherno e não só:

Concordo que havia violência psicológica e intimidação mas não violência física. Muitas vezes vi camionetas carregadas de africanos, a mando do administrador [de Bafatá] para executar trabalhos necessários, aos quais pagavam os tais 15 escudos (ou pesos, como se queira). Efetivamente quando lá no Comando do Agrupamento [2957, Baftá, 1968/70] precisavam de pessoal para esses trabalhos era só pedir ao Administrador e rapidamente aparecia uma camioneta cheia de gente.

Reafirmo que se alguns iam contrariados outros agradava-lhe irem ganhar os tais 15 pesos.(ponto final).

11. Luís Graça:

Cherno, nas tabancas, fulas, por onde passava e onde ficava uma semana ou mais, de cada vez, em reforço do sistema de autodefesa, a minha secção ou o meu grupo de combate, da CCAÇ 12 (BambadincA, 1969/71)M, era costume comprar, mesmo a custo, galinhas e frangos, a sete pesos e meio por bico (o equivalente hoje 2,22 €)...

Em 1969, recordo-me que os soldados da CCAÇ 12 (que eram praças de 2ª classe, oriundos do recrutamento local), recebiam de pré 600 pesos/mês (, equivalente, a preços de hoje, a 177, 51 €), além de mais uma diária de 24$50 (=7,25€) por serem desarranchados.

600 pesos deviam dar para comprar duas sacas de arroz de 100 kg cada... O arroz, que era a bse da alimentação dos guineenses, custava então 3 escudos /pesos o quilo...

15 escudos por um dia de trabalho (árduo), ao serviço da administração do concelho de Bafatá, dava para comprar 5 kg...

A questão que se pode pôr é: quem ficava com a massa ? Na Op Cabeça Rapada I, 7 mil capinadores durante 2 dias custariam à administração 210 mil escudos...Muita massa!... Havia cabimento orçamental ?

12. Valdemar Queiroz:

Lembro-me do 1º. Sarg. Ferreira Júnior, quando fomos para Paunca, devido a não haver instalações militares para a nossa CART 11, ter de requisitar casas civis para instalar a nossa tropa, dado que nos abrigos existentes já estavam ocupados pela tropa da outra Companhia e neles apenas reforçávamos a segurança de noite durante umas horas.

Falou-me da requisição ser feita ao abrigo de… (não fixei o nome do diploma) em situações de guerra. E assim foi feito e passamos a 'viver' na tabanca em moranças requisitadas à população.
Na situação da capinagem teria funcionado, também, com esta 'requisição do tempo de guerra' ??

Sete mil (capinadores) a 15 pesos pro dia era muito patacão.

13. Manuel Carvalho:

A propósito das populações serem obrigadas a trabalhar a mando das autoridades, é verdade, se não fossem a bem iam a mal e não precisavam de andar a bater todos os dias porque as pessoas tinham medo e umas vezes receberiam alguma coisa, outras alguém recebia por eles.

E não era só na África, aqui há muitas estradas nacionais, não estou a falar de caminhos, que no tempo dos nossos pais foram construidas com a colaboração das populações por onde elas passavam mais ou menos da mesma forma. Ou seja as autoridades das aldeias reuniam com a população e cada família tinha de dar uns tantos dias por semana de trabalho ou aqueles que tinham mais possibilidades forneciam animais, carros e até criados para transportar coisas.

E nós também não íamos para lá obrigados [, para a guerra do Ultramar,] e depois de mortos os nossos pais, se quisessem cá o corpo para fazer o funeral, tinham de pagar cerca de 15 contos, pelo menos até 68 foi assim.

Diziam eles que aquilo era nosso, mas eu nunca tive lá nada.

14. Cherno Baldé:

A tropa em geral, sobretudo no consulado do Gen Spinola, cumpria e era correcta nas suas relações com as populações onde estavam estacionadas e não só. Temos que saber separar a tropa (que foi obrigada a fazer a guerra) e a administração colonial que era do sistema e funcionava em conformidade. Eu tenho sérias dúvidas sobre os pagamentos feitos às populações recrutadas para trabalhos obrigatórios.

O mais provável é que seriam requisições, como refere o Valdemar Silva (O Régulo de Gabu), cuja opinião é ainda reforçada pelas observações do Manuel Carvalho. Pois o regime do Estado Novo era o mesmo em toda a parte, e a sua mesquinhez também, obviamente.

O Luis pagava as galinhas porque não tinha espirito colonialista, senão era só requisitar às autoridades gentílicas. que terias o suficiente para um banquete durante a semana, como faziam muitos.

15. Manuel Luís Lomba:


No tempo dos pré-Portugueses, o exército ocupante romano construía estradas para serventia militar (a via Antonino, etc.) e aplicava às populações servidas o ónus anual da "geira" - dois dias de trabalho gracioso, como cantoneiros, pela sua conservação.

Em 1965 e 1966 desempenhei-me um ano como "patrão" da APSICO em Buruntuma e pagava a capinadores, carregadores, etc o mesmo pré dos soldados, na base de 430 pesos/mês, abonados pelo Exército.

16. Luís Graça:

Só a Op Lança Afiada, de 11 dias, de 8 a 19 de março de 1969, em que se bateu todo o triângulo Bambadinca - Xime - Xitole, expulsando da margem direita do Rio Corubal o PAIGC e as populações sob o seu controlo (calculadas na época em 5 mil, entre balantas e biafadas), envolveu 375 carregadores.

Se eles fossem pagos a 15 pesos por dia, o exército terá desembolsado cerca de 60 mil pesos (60 contos), o que não era nada em termos de custo da máquina de guerra: um helicóptero custava só a módica quantia de 15 contos por hora, mais do que ganhavam, por mês, dois alferes...
Esta operação, tal como a primeira Op Cabeça Rapada, foi em março de 1969, e eu só cheguei à Guiné em finais de maio de 1969... Mas nunca mais, no meu tempo e no setor L1 (Bambadinca), se realizaram operações com esta envergadura e sobretudo duração... O conceito foi abandonado e, por outro lado, em nome da política da "Guiné Melhor", Spínola reprimiu muitos dos abusos ainda em vigor, quer da administração e da políicia administrativa, quer da PIDE ou do exército...

Faltam-nos testemunhos dos nossos 1ºs sargentos, encarregues da "contabilidade criativa" das nossas companhias... Eles é que podiam "abrir o livro"... Não me parecem que o tenham feito np devido tempo, nem que ainda o queiram fazer... Muitos deles já morreram... Eram todos mais velhos do que nós uns 15 anos...

De qualquer modo, suspeito que havia indícios da persistência do "trabalho forçado ou obrigatório" no 1º ano do consulado do Spínola, época em que se realizaram operações de envergadiura, mobilizando grande quantidade de civis como capinadores ou carregadores: caso da Op Cabeça Rapada I, II, III e IV e Op Lança Afiada...

Quanto ao PAIGC, foi useiro e vezeiro no recurso ao "trabalho forçado ou obrigatório": a população sobre a bandeira do PAIGC não só alimentava a guerrilha (trabalhando nas bolanhas...) como fazia o transporte de armas, equipamentos e mantimentos... É uma assunto pouco falado... Fica aqui o desafio ao Jorge Araújo, o nosso especialista da "guerra do outro lado"...